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ConversasNatalia Timerman: 'O amor é vital nesse cotidiano distópico'
Para a psiquiatra e autora do romance ‘Copo Vazio’, qualquer tipo de relacionamento amoroso é um antídoto para o terror imposto pela pandemia
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Natalia Timerman: ‘O amor é vital nesse cotidiano distópico’
Para a psiquiatra e autora do romance ‘Copo Vazio’, qualquer tipo de relacionamento amoroso é um antídoto para o terror imposto pela pandemia
Se a vida “normal” virou um pesadelo e não há nada que se possa fazer para mudar o mundo ao redor, o amor pode oferecer uma saída para a sanidade mental. A psiquiatra e escritora Natalia Timerman fala nas pequenas bolhas de afeto, que funcionam como antídotos, ainda que momentâneos, para o terror vigente. Para ela, abraçar os filhos tornou-se algo revigorante. “É uma coisa até animal, primitiva, como se a gente precisasse garantir alguma segurança básica”, afirma a Gama.
Natalia é autora de “Copo Vazio” (Todavia, 2020), o livro febre de verão que é hoje um hit nas redes sociais. Conta a história da paixão de Mirela por Pedro e como ele desapareceu sem explicação depois de três meses de relação. Mirela, sem chão, amarga uma dor de cotovelo que a leva a um loop mental infinito sobre o porquê daquele desaparecimento. Acompanhamos Mirella em sua interação com a avó de Pedro jogando Candy Crush no Facebook, a uma leitura de búzios, e até à casa de Pedro, onde ela vai procurá-lo depois de seu sumiço.
Ao mesmo tempo que pode irritar ver a protagonista arrastar-se atrás de um cara que nem era tão legal assim, é impossível não encontrar qualquer traço de semelhança com a vida real — atire a primeira pedra quem nunca fez um papelão depois de um fora. Em “Copo Vazio”, Natália consegue levar às páginas situações absolutamente familiares e compatíveis com esses tempos: Mirela sofre bloqueios e silenciamento nas redes sociais, o chamado de ghosting, a versão 4.0 do abandono clássico. Em 2021, se você não teve essa experiência, certamente conhece alguém que a viveu.
Natália partiu de uma semente autobiográfica — ela estuda auto-ficção em seu doutorado, analisando as obras do norueguês Karl Ove Knausgård e da italiana Elena Ferrante — e ouviu muitas histórias, de amigas e no consultório, um lugar privilegiado para quem escreve. É lá também que tem analisado a influência da pandemia no amor desta década de 20: como os contratos estão mais claros, como a fidelidade tem se imposto, como as pessoas têm encontrado respiros e pequenas doses de salvação nas expressões amorosas. “O amor é uma possibilidade de esperança”, diz na entrevista que você lê a seguir.
O amor é uma possibilidade de esperança, um sentimento que nos dá vontade de continuar
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G |O que você acha da ideia de que “só o amor salva”?
Natalia Timerman |O amor salva e não tem que ser necessariamente o amor pelo outro; pode ser o amor por você mesmo. Precisamos de amor. Me vem à mente uma afirmação da Hannah Arendt em “A Condição Humana”, em que ela fala que “o amor é uma das mais poderosas forças apolíticas que existem”. Apolítica porque ela entende a política como algo que se vive em conjunto. Quando ela fala de amor, ela está falando desse amor da intimidade, de parceiros e parceiras amorosos. Eu não sei se só o amor salva, mas ele salva. Nós precisamos de vida, dessa pulsão de vida.
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G |As pessoas estão mais abertas ao amor na pandemia?
NT |O amor agora tem sido vital no descanso desse cotidiano distópico que parece um pesadelo sem perspectiva de um futuro melhor tão cedo. A paixão, o amor, ou qualquer tipo de relacionamento amoroso que seja nos salva momentaneamente desse terror, como se fosse um antídoto. Ao mesmo tempo, percebo que as pessoas estão se sentindo culpadas por estarem bem. Outras, por não estarem, como se o que sentissem fosse um sofrimento menor. Primeiro, eu não acho que exista sofrimento menor. Segundo, esse sofrimento amoroso clássico é algo tão íntimo, tão individual. Na verdade, ele não mata. Parece que vamos morrer de amor e é como se fosse um certo alívio. Essa dor coletiva que nós estamos vivendo, por ora, não está oferecendo uma saída coletiva. A sobrevivência passa por essas pequenas bolhas de saúde, de amor, de pequenas alegrias que nós precisamos para conseguir atravessar. Muitas vezes a tragédia rompe essa bolha: quem não conhece alguém que tenha falecido com covid? Mas o amor é uma possibilidade de esperança, um sentimento que nos dá vontade de continuar. A [escritora norte-americana] Joan Didion fala isso em “O Ano do Pensamento Mágico”. Ela define o amor pelo companheiro que faleceu como a vontade de continuar. Nós precisamos disso hoje.
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G |As pessoas estão mais abertas a tolerar coisas no âmbito pessoal considerando que esse amor é ainda mais necessário?
NT |O convívio está muito mais difícil e as cartas estão sendo postas na mesa. Há casais que dizem estar superbem e outros que rompem. Tenho visto que tudo está muito intenso. Nunca as pessoas passaram tanto tempo juntas, família, casais. Vejo pelos meus filhos: diante das más notícias, abraçá-los hoje é algo revigorante. Parece que você está murcha, você vai e abraça e é uma coisa até animal, primitiva, como se a gente precisasse garantir alguma segurança básica.
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G |Você tem visto essa intensidade e essa resolução no consultório?
NT |Os contratos são muito mais claros. Tenho um paciente que conheceu uma pessoa por aplicativo, uma história recorrente, e tem que ter um pacto de confiança que a pessoa não está vendo outras pessoas. Se antes nós tínhamos DSTs, agora temos uma doença que é transmissível pelo ar, ao respirar, por estar lado a lado. A fidelidade se colocou antes da relação acontecer; os contratos são revistos e ressignificados. Quando uma pessoa diz que “para a gente se encontrar eu tenho que ter certeza que você não está vendo ninguém” essa pessoa está colocando o amor em primeiro plano, é uma aposta no amor. Por outro lado, pacientes que tinham o casamento aberto, e o relacionamento se sustentava nessas outras relações que cessaram por enquanto, se separaram.
Abrir mão do amor é abrir mão do futuro que se tinha sonhado com aquela pessoa
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G |“Copo Vazio” é um livro sobre amor, mas principalmente sobre uma dor de amor. E tem feito muito sucesso, não sai das timelines. O que você acha que isso diz sobre os nossos tempos?
NT |As boas histórias de amor são as que não deram certo. Se ele dá certo, não se sustenta narrativamente. Mas, acima de tudo, a dor de amor é algo universal e não só de agora. Desde a nossa constituição como sociedade burguesa e capitalista com centro de núcleo familiar, o amor virou quase uma característica identitária, um estado civil. O abandono é um medo muito arcaico que passa por aí também. Sobre os nossos tempos, a Tati Bernardi chegou a escrever “que saudade de sofrer por amor”, essa dor que não mata. Ela dói, marca, nos constitui, mas passa. A desilusão amorosa é tão grande porque ela reagudiza uma falta constitutiva e essencial. Desde o momento em que nascemos, nos construímos de faltas sucessivas, é a falta que permite que cresçamos. Quando a dor do amor acontece, ela é tão intensa que é como se estivesse acontecendo pela primeira vez, mas é um eco que acontece várias vezes em nossas vidas. No nascimento, no desmame, no ir para escola, a cada separação dos nossos pais vivemos um pouco essa falta. E precisamos nos reerguer, criar alguma coisa, crescer. Quando o parceiro ou parceira amorosa vai embora, ele reagudiza esse abandono. Por isso que dá a sensação de ser tão primitivo, a vergonha de sentir. Talvez as pessoas estejam compartilhando tanto porque estão se permitindo e pensando “que bom que não sou só eu”. Avançamos tanto em vários aspectos que sofrer por amor soa anacrônico.
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G |O ghosting atualizou o abandono?
NT |O ghosting é o abrupto, essa falta sem preparação nenhuma. Quando você oferece algo para alguém, esse alguém não pega, e o algo cai no chão e quebra. Isso tem acontecido mais por conta da internet, mas não é um fenômeno contemporâneo, é um fenômeno antigo, só que agora está mais intenso. Deixa a dor do abandono em carne viva, mais nítida. Para escrever sobre amor hoje, eu tinha que colocar as redes sociais, os aplicativos de relacionamento, porque o amor acontece nele. Começa no WhatsApp, no Instagram. Quem as pessoas são passa pelas imagens que elas querem ter; como elas se mostram é como elas querem ser.
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G |A tecnologia tem papel central nas dores de amor de hoje?
NT |Ela acentuou o arcaico e o contraste entre o aparentemente evoluído do tecnológico e o aparentemente anacrônico e arcaico do sofrimento amoroso. Mas somos contraditórios. Quem disse que vamos em direção a uma evolução? São coisas insuperáveis, nunca vamos ser sozinhos, ninguém é sozinho. Aprendemos com o outro, imitando os nossos pais, imitando outras pessoas. O discurso do empoderamento é muito importante, mas em certo sentido é impossível não depender de ninguém. Isso acaba colocando no indivíduo uma carga que, de antemão, ele não consegue suportar. Depender das pessoas não é um fracasso, depender das pessoas constitui como ser humano porque vivemos num coletivo, numa sociedade.
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G |Os personagens do seu livro viveram um caso de amor de três meses. Por que um relacionamento tão curto faz um estrago tão grande?
NT |Primeiro, a intensidade não tem a ver com o tempo. Naquele filme lindo, “As Pontes de Madison” (1995), são três dias e eles ficam se correspondendo pelo resto da vida. E aquilo fica muito forte, e é uma renúncia que marca a personagem até o fim. Segundo, o amor não tem a ver só com a pessoa que se ama ou acha que se ama. Ele tem a ver com as nossas expectativas, o que esperamos do amor, o que esperávamos da pessoa, o momento em que essa pessoa chegou em nossas vidas. Abrir mão do amor é abrir mão do futuro que se tinha sonhado com aquela pessoa. Por isso aquele capítulo “Se” do livro marca tanto, ele é uma dor que não aconteceu, é o que teria acontecido. Nos relacionamentos somos pavimentados pelo não. O “não” é o limite. O que aconteceu é só aquilo que aconteceu, é pouco perto do que poderia ter acontecido. E isso deixa a história perfeita para sempre. Seria mais fácil esquecer se ela tivesse se concretizado, porque ela seria real e não idealizada. O melhor amor é sempre aquele que você poderia ter tido e não teve – e não acontecer também dói.
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G |Fica a sensação de que temos um único grande amor apenas — e que, no livro, é Pedro. Você acredita que na vida é assim? Um único grande amor?
NT |Ou vários amores, é difícil dizer. Ele acabou sendo o grande amor para ela e talvez esse choro não seja só desse amor, mas de tudo o que não pode ser. Quando choramos por algo que não é, choramos por tudo que não é. É a totalização de todos os nãos que carregamos, essa bagagem de possibilidade que nós levamos. Não pode dar spoiler, mas tem a questão da filha, da Camila, que não se sabe se é do Pedro, mas pode ser que seja. Alguém me escreveu e falou assim: “Por que você não escreve o segundo volume a partir da Camila, a menina que não sabe quem é o pai?” Quem sabe um dia.
Falar sobre luto é falar sobre amor. Só fazemos o luto de quem amamos e de quem éramos para a pessoa
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G |Como você aproveita a sua experiência como psiquiatra e psicoterapeuta na literatura?
NT |Não tem como a minha experiência clínica não oferecer um material rico para a literatura, tenho acesso a muitas histórias, é um lugar privilegiado para escutá-las. A pessoa tem que se abrir, tem que contar os segredos e percebe-se algumas coisas, tipo pessoas na rua que você olharia e jamais pensaria que é inseguro — embora todo mundo seja e quem menos parece ser às vezes é quem mais é. Tem também a experiência de quem faz análise. Várias e várias pacientes viram para mim e falam: “Nossa, você não aguenta mais ouvir isso, né?”, como um pedido de desculpas. No livro, essa fala é uma desculpa ao leitor. Se você não estiver aguentando mais, eu também não estou. Muitos sentem raiva dela [de Mirela, a protagonista], né? “Por que você está fazendo isso? Sai dessa.” E o legal é justamente o absurdo. E, poxa, quem é que não é um pouco absurdo ou exagerado? Quando ela fala “queria simplesmente deixar de sentir”, sabemos que não tem esse botão. Há os antidepressivos, antipsicóticos, anti-sentimentos, mas nós não queremos deixar de sentir, queremos saber lidar com os sentimentos.
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G |E, do outro lado, como você lida com a pergunta dos leitores “é você, né?”?
NT |Acho que tudo que eu escrevo sou eu. A maneira como escrevi o meu primeiro livro de não-ficção sou eu. Ao mesmo tempo, nada do que eu escrevi sou eu porque a literatura é um outro lugar. Tem uma distância temporal, não temos como garantir que somos o mesmo ao longo do tempo; nós mudamos. A experiência que eu conto já não é mais a mesma que eu vivi. Narrar faz com que se elabore. Se você perguntar se tem algo de autobiográfico, tem uma semente que cresceu ficcionalmente. O livro é um pouco vivido, um pouco roubado e um pouco inventado. Quando eu vivi essa experiência, me vi sofrendo um sentimento que parecia desproporcional à situação e aí eu comecei a perceber na clínica o quanto isso era recorrente.
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G |O amor deve continuar a aparecer em seus projetos? É algo inescapável?
NT |São tipos diferentes de amor. Meu próximo projeto que eu vou ter que escrever vai ser o meu doutorado. E não deixa de ser amor, afinal é uma dedicação a livros longos. Mas, o outro projeto também tem um tipo de amor, que é pelo meu pai que faleceu. É sobre luto, e falar sobre luto é falar sobre amor. Só fazemos o luto de quem amamos e de quem éramos para a pessoa — Freud fala isso, seja por morte ou abandono. E isso talvez seja muito mais difícil, o que talvez responda a sua pergunta sobre demorar tanto para passar. Talvez não passe. Não queremos nos desfazer de quem éramos com aquela pessoa, dessa versão de nós mesmos.
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G |Como a sua experiência como mulher, mãe, médica, psiquiatra e autora influencia a sua ideia de amor?
NT |Talvez a minha compreensão de amor seja algo tão impossível de ser sólido que eu precise de todas essas coisas para construir meu mundo. Cada uma delas é essencial e nenhuma delas me basta ou pode ser única. O amor salva, mas não só ele. Talvez tudo isso se junte no amor à literatura, porque nele cabem todos os outros. Talvez para mim o amor seja algo tão complexo e incompreensível que eu preciso da mediação da literatura e da clínica para entender, apurar, depurar e elaborar as minhas vivências. E cada uma delas me dá insights e conclusões diferentes. Cada um desses lugares me ajuda no outro e talvez o amor seja o ponto de convergência, de irradiação. Talvez a cola de tudo isso seja este sentimento amoroso, sem isso não se faz nada direito; o amor é esse sentido amplo.
- Copo Vazio
- Natalia Timerman
- Todavia
- 140 páginas
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