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ReportagemA volta às aulas na perspectiva do novo governo
Claudia Costin e Priscila Cruz, especialistas em educação e gestão, apontam os caminhos que o MEC deve seguir no curto prazo para aplacar a grave crise que atingiu a área nos últimos quatro anos
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A volta às aulas na perspectiva do novo governo
Claudia Costin e Priscila Cruz, especialistas em educação e gestão, apontam os caminhos que o MEC deve seguir no curto prazo para aplacar a grave crise que atingiu a área nos últimos quatro anos
A volta às aulas em 2023 vai ser diferente. Depois de quatro anos de omissão, negligência, cinco ministros e uma guerra cultural na educação – com uma pandemia no meio do caminho –, o novo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem o imenso desafio de reconstruir o ensino no Brasil.
Desde a gestão de Paulo Renato Souza à frente do Ministério da Educação, de 1995 a 2002, durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso (PSDB), o MEC seguiu “uma certa linha sucessória, apesar das trocas de governo”, pontua Priscila Cruz, cofundadora e presidente do Todos Pela Educação.
De lá até a chegada de Jair Bolsonaro (PL) ao Planalto, em 2019, vários nomes, de diversos matizes ideológicos e partidos, passaram pela pasta, criaram programas, desenvolveram políticas, mas, de acordo com Cruz, que também é mestre em administração pública pela Harvard Kennedy School of Government, “seguindo basicamente um mesmo caminho”.
Tivemos décadas de continuidade das políticas públicas dentro de uma certa linha. O que o governo Bolsonaro fez foi implodir absolutamente tudo
“E sempre numa tentativa de melhorar cada vez mais a gestão federal da educação. Tivemos décadas de continuidade das políticas públicas dentro de uma certa linha. O que o governo Bolsonaro fez foi implodir absolutamente tudo. Então, não tem mais nada, não tem nada, não tem nada funcionando no MEC”, ressalta.
Heranças malditas
Segundo Priscila Cruz, o petista Camilo Santana, ex-governador do Ceará escolhido por Lula para o MEC, recebeu “uma herança maldita”. “É extremamente mais difícil começar um trabalho do zero, e esse Ministério da Educação está tendo os desafios de montar diagnósticos, desenhar políticas e pleitear mais recursos.”
Claudia Costin, diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais (CEIPE), da FGV, e ex-diretora de educação do Banco Mundial, diz que há alguns outros espólios negativos, não propriamente relacionados à educação escolar em si, que foram deixados pelo antigo governo e precisam ser igualmente superados, como a relação dos jovens com a polarização do país.
Vamos ter que, como sociedade, recuperar uma parte dos anos perdidos
“Nos últimos anos, crianças e adolescentes presenciaram uma falta de convivência pacífica muito grande entre as pessoas, inclusive nas famílias. A defesa de valores que anteriormente determinadas pessoas tinham, porém, não tinham coragem de admitir, tornou-se algo legítimo, defensável; foi comum ver pessoas ofendendo livremente umas às outras, discriminando, seja por preconceitos étnico-raciais ou por quem pensa diferente. Esses jovens já estavam imersos em famílias ou em ambientes onde tudo o que faltava era coesão social, o respeito ao outro, aprender a viver juntos. Nesse contexto, evidentemente que um ministro sozinho pode fazer algumas coisas, mas não muito. Nós vamos ter que, como sociedade, recuperar uma parte dos anos perdidos”, alerta Costin.
Ela comenta sobre a intensificação da polarização e do mau exemplo à juventude a partir de falas de Bolsonaro: “No momento em que o presidente, em imagens, faz pouco caso de quem está sofrendo com falta de ar no meio de uma pandemia, ou que faz pouco caso dos familiares que perderam entes queridos, nós estávamos deseducando as crianças e os adolescentes, mostrando que comportamentos assim são aceitáveis.”
Principais pontos para a reconstrução educacional
As duas especialistas ouvidas pela Gama deram um panorama das questões principais que o MEC, neste primeiro momento, precisará focar, enfrentar e superar para a educação avançar, como o desenvolvimento de uma política de curto prazo para a recomposição das aprendizagens. “Vai ter que ser feito um trabalho rápido e específico. Por conta do fechamento prolongado das escolas pela pandemia, os alunos brasileiros deixaram de aprender aquilo que eles têm o direito de aprender”, enfatiza Priscila Cruz.
“A perda de aprendizagens no período pandêmico foi muito forte. Por isso, o ministro Camilo Santana acertou ao falar que um dos papéis do MEC será o de recuperar as aprendizagens perdidas”, diz Claudia Costin.
Os alunos brasileiros deixaram de aprender aquilo que eles têm o direito de aprender
“A pandemia de Covid-19 não é culpa de governo nenhum, mas a forma como a crise sanitária se intensificou no Brasil, a lentidão na aquisição de vacinas e a falta de campanhas de vacinação foram problemáticas, para dizer o mínimo, assim como a falta de uma coordenação nacional da resposta educacional”, destaca.
Para a diretora do CEIPE, o processo de recuperação não durará apenas um ano, “vai levar algum tempo”. “É importante lembrar que muitas crianças entraram no quarto ano sem estarem alfabetizadas [normalmente, essa etapa ocorre do 1º até, no máximo, o 3º ano do Ensino Fundamental] porque a alfabetização à distância foi algo muito difícil. Houve um impacto importante.”
Priscila Cruz relembra ainda que, no governo Bolsonaro, “a grande política para a alfabetização era um aplicativo para crianças. Então, a ambição deles em relação à educação era muito baixa. Eles eram incompetentes, faziam um uso político do MEC e uma guerra cultural”.
Outro ponto de ação do novo MEC é o retorno da cooperação federativa, que consta da Constituição e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e prevê a colaboração entre União, estados e municípios para assegurar a universalização e a qualidade do ensino obrigatório.
“Na educação básica, nada é realizado sozinho pelo governo federal, ou pelos governos estaduais e municipais. O governo federal tem uma capacidade de investimento potencial muito grande, bem maior do que estados e municípios, e tem a obrigação legal de trabalhar junto às esferas estadual e municipal. Entretanto, tivemos quatro anos de um governo hostil aos estados e municípios. Então, não houve trabalho conjunto. Não por falta de tentativa, porque os secretários estaduais e municipais de educação tentaram manter uma boa relação”, salienta Cruz.
A expansão da educação integral; a revisão da BNCC, para analisar se o documento aprovado precisa de melhorias e aperfeiçoamentos; a modernização das escolas, não apenas dos espaços físicos, mas em assuntos como conectividade, infraestrutura, merenda e condições de trabalho dos professores e a volta dos investimentos em creches também deverão ganhar destaque na gestão Santana, segundo Costin e Cruz, que estiveram na equipe de transição do governo Lula.
A bem-sucedida experiência cearense vai ao MEC
O Ceará lidera alguns rankings educacionais, como o Índice de Oportunidades da Educação Brasileira (Ioeb), com 18 municípios entre os 20 mais bem avaliados na pesquisa. Foi no governo de Camilo Santana, que comandou os cearenses de 2015 a 2022, que o estado ampliou o Programa de Aprendizagem na Idade Certa (Paic), modelo de alfabetização que melhorou a aprendizagem de estudantes em situação de vulnerabilidade social, reduzindo assim desigualdades e ampliando a equidade na educação.
No MEC, Santana vai contar com o trabalho da professora e psicóloga Izolda Cela, que foi sua vice durante os dois mandatos e assumiu a chefia do Executivo do Ceará em 2022, quando o governador deixou o cargo para se candidatar ao Senado – tendo sido eleito no último pleito. Ela também foi secretária de Educação de Sobral e do Ceará. Agora, Cela é secretária-executiva da pasta, a número dois do ministério.
Juntos, eles podem levar ao plano nacional as experiências bem-sucedidas que tiveram no estado nordestino. A presidente do Todos pela Educação, Priscila Cruz, cita algumas características que a dupla deve implementar no MEC, a exemplo da cultura de planejamento e continuidade que os programas exitosos no Ceará seguiam. “É meio óbvio isso, né? Mas nunca foi tão importante. Ter um planejamento de longo prazo, desdobrar as metas todas, desenvolver processos, ações, projetos e políticas, tudo no tempo certo para garantir a melhoria constante da redução da desigualdade educacional.”
Ela frisa outra conduta importante vinda do estado da dupla: a obsessão pela implementação. “Também parece uma obviedade, mas eles sabem que o jogo é ganho todos os dias. Você não ganha um jogo só quando atinge a meta. Diariamente é preciso fazer uma partezinha que, somada às outras, vai dar o resultado necessário. É uma cultura de obsessão por cada passo, pela implementação, de cuidado para que todas as partes estejam com uma visão compartilhada. A sacada não é só o desenho da política, é você fazer com que esse desenho funcione todos os dias. Senão, a gente tem grandes ideias e elas ficam no papel, na secretaria.”
Cruz complementa que Santana e Cela precisarão olhar também para outros exemplos de sucesso, como Teresina e Londrina, e finaliza: “Há muitos anos que não tínhamos uma equipe tão boa no MEC.”
Claudia Costin está igualmente otimista com a escolha do ministro e da secretária-executiva do Ministério da Educação.
Não vai ser fácil, mas vai valer a pena. Não existe país desenvolvido e crescimento sustentável no longo prazo sem uma educação de qualidade
“A experiência do Ceará foi muito bem-sucedida. Eles alfabetizam praticamente todas as crianças no primeiro ano do Fundamental, com base na ciência e em evidências educacionais. O governo cearense também se inspirou nos resultados de Pernambuco, que tem o melhor Ensino Médio do Brasil, considerado o nível socioeconômico. Ou seja, essa experiência de troca e também de regime de colaboração foi muito positiva. Então, eu estou muito otimista, mas, naturalmente, sei que vai ser bastante desafiador, porque fazer educação de qualidade custa caro. Não vai ser fácil, mas vai valer a pena. Não existe país desenvolvido e crescimento sustentável no longo prazo, nos dois sentidos do termo, sem uma educação de qualidade”, diz.
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