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ConversasTatiana Merlino: "É crucial repensar o mundo a partir do que comemos"
Editora de colapso climático do site O Joio e o Trigo, que investiga a relação entre alimentação, saúde e poder, fala sobre comida, agronegócio, mudanças do clima e jornalismo engajado
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Tatiana Merlino: “É crucial repensar o mundo a partir do que comemos”
Editora de colapso climático do site O Joio e o Trigo, que investiga a relação entre alimentação, saúde e poder, fala sobre comida, agronegócio, mudanças do clima e jornalismo engajado
Um olhar sistêmico e investigativo para a alimentação guiam os conteúdos publicados em O Joio e o Trigo, lançado em 2017. Por meio do jornalismo, o site independente, tal qual a famosa parábola bíblica, separa o joio do trigo do sistema alimentar: aquilo que é digno, adequado e saudável, ou seja, um direito humano básico, daquilo que as grandes empresas do ramo criam para virar a nova moda “nutricional” da vez, sem bases na ciência — além de colocar foco no papel da agropecuária nas emissões de gases que causam a catástrofe do clima que vivemos.
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“Para nós, é crucial repensar o mundo a partir do que comemos, e o que comemos já é impactado e vai ser ainda mais muito impactado pelo colapso climático”, diz Tatiana Merlino, repórter especial e editora da seção que trata do colapso climático de O Joio e o Trigo. A jornalista, uma das fundadoras da Agência Pública e da Ponte Jornalismo, fala a Gama como a atual fabricação, o processamento, o transporte, o consumo e o descarte de alimentos impactam o que comemos e, sobretudo, quem não come. “Os eventos climáticos afetam a produção de alimentos com quebras de safra, escassez e aumento de preços, intensificando a insegurança alimentar.”
Divulgação
Na entrevista que você lê abaixo, Merlino comenta ainda sobre a interseção entre sistemas alimentares e agro, o papel do jornalismo no combate às fake news relacionadas à alimentação, como furar a bolha para levar o tema a mais pessoas e qual a melhor forma de contrapor a manipulação de evidências científicas por corporações.
A ideia é essa: discutir se as ‘bolas da vez’ têm embasamento científico, se são nutricionalmente necessárias ou se são hábitos moldados e construídos pela indústria
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G |O que motivou a criação do site O Joio e o Trigo? Qual era a ideia inicial do projeto e no que ele se transformou?
Tatiana Merlino |O Joio foi criado em 2017 por dois jornalistas [João Peres e Moriti Neto] que cobriam o tema da alimentação e não encontravam espaço na imprensa para esse tipo de pauta. Eles conseguiram apoio financeiro de uma organização que atua no tema do direito à alimentação e começaram. De início, era um apoio para seis meses, que era o que eles achavam que duraria o projeto. Mas o projeto foi renovado, outros apoiadores foram se somando e a coisa foi crescendo. Hoje estamos aqui, com uma equipe de 17 profissionais, um conselho editorial com sete pessoas e o projeto consolidado.
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G |De que maneira o jornalismo independente, como o que é feito em O Joio e o Trigo, contribui para a disseminação de informações confiáveis sobre como o aquecimento global tem impactado — e vai impactar ainda mais — o que comemos?
TM |Acho que contribui ajudando a fazer conexões que, muitas vezes, não são feitas, quando a cobertura do jornalismo é segmentada. Nossa leitura é de que a segmentação do mundo, e do jornalismo, em caixinhas, mais atrapalha do que ajuda. O jornalismo de profundidade, que se debruça sobre os temas, e que faz relações entre os problemas dos nossos tempos, ajuda na compreensão da realidade e a pensar alternativas para as questões. Para nós, é crucial repensar o mundo a partir do que comemos, e o que comemos já é impactado e vai ser ainda mais muito impactado pelo colapso climático. Contribuímos, acho, discutindo quais são as causas do colapso, quem são os atores envolvidos, quais são as soluções que estão sendo apresentadas para resolver as questões, e se elas são eficazes. Um dos exemplos que posso dar é a nossa recente cobertura sobre o mercado de carbono, que resultou na série Faroeste Carbono.
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G |Vocês sempre abordaram, no site, a relação entre alimentação, agronegócio e aquecimento global, mas em novembro de 2023 foi criada uma editoria focada em colapso climático. O que motivou essa decisão?
TM |Como o Joio tem um olhar sistêmico para a alimentação, a discussão sobre colapso climático sempre apareceu nas reportagens. Em 2021, criamos uma editoria para cobrir especificamente o agronegócio, com o “olhar Joio”, fazendo a interseção entre sistemas alimentares e agro. Como somos o único veículo de comunicação do país especializado em investigações sobre alimentação, avaliamos que deveríamos entrar no debate sobre crise climática a partir da nossa perspectiva e olhar de cobertura. O sistema alimentar globalizado tem um dos maiores pesos nas emissões associadas às mudanças climáticas, então achamos que não poderíamos ficar de fora. Que nosso olhar para o assunto se somaria às já ótimas editorias de veículos de jornalismo independente que cobrem o tema. E como a quase totalidade do desmatamento no Brasil, responsável pela maior parte das emissões brasileiras de gases causadores do colapso climático, está associada à agropecuária, achamos que era fundamental ter uma editoria específica sobre colapso climático.
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G |Como combater fake news relacionadas à alimentação? Que tipo de iniciativa, além do Joio, você destaca no Brasil e no mundo?
TM |Acompanhando organizações que trabalham com alimentação, seguindo pesquisadores, fazendo leituras. Tenho receio de mencionar alguns e deixar outros de fora, mas vou citar alguns exemplos. Como não tem como falar de alimentação sem falar do agro, destaco o trabalho do antropólogo e pesquisador Caio Pompeia, autor de “Formação Política do Agronegócio” [Elefante, 2021]; o blog e a newsletter da professora da Universidade de Nova York Marion Nestle, que é referência na pesquisa em nutrição; e a leitura do Guia Alimentar para a População Brasileira, publicado em 2014 pelo Ministério da Saúde, que é um guia básico sobre alimentação.
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G |O portal trata de temas que contrariam interesses de grandes indústrias brasileiras, como a do agro e a alimentícia. Como vocês enfrentam esses players poderosos do sistema?
TM |Fazendo um trabalho sério e rigoroso jornalisticamente, mostrando manipulação de evidências científicas por corporações, apresentando dados, pesquisas e fazendo trabalho de campo. Já houve intimidações, pressões, e até ameaças no trabalho de campo, mas nada que tenha nos impedido de seguir trabalhando.
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G |Há matérias no site e também programas do podcast “Prato Cheio” que mostram o outro lado de alimentos da moda, ou de ondas alimentares, como os ultraprocessados e o whey protein. Qual é a complexidade de apurar temas que estão tão inseridos na sociedade atualmente? Afinal, grande parte dos brasileiros consome esses produtos.
TM |Para nós, é interessante exatamente por isso, por poder dialogar com tendências, com consumos que estão hypados. E a ideia é essa: discutir se o consumo das “bolas da vez” tem embasamento científico, se são nutricionalmente necessários ou se são hábitos moldados e construídos pela indústria.
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G |O podcast “Prato Cheio” aborda assuntos densos tratados no site, mas de uma forma mais simples e divertida, o que tem feito sucesso na podosfera. Um bom exemplo é o episódio “A Moça da Lata”, sobre como a Nestlé reescreveu as receitas dos doces brasileiros com a imposição do leite condensado goela abaixo. Como é trabalhar nessa linguagem diferente?
TM |Essa linguagem reflete um pouco o perfil do contexto da criação do Joio. A ideia do projeto era fazer esse jornalismo de profundidade e sistêmico, mas também bem-humorado, leve. Então foi natural que essa leveza fosse levada pro “Prato Cheio”. No início do Joio, os primeiros textos também eram jocosos e irônicos, mas com a incorporação de mais temas e de novos profissionais, os textos passaram a ser mais diversos, refletindo os perfis dos jornalistas. Mas o “Prato Cheio” manteve essa linguagem, que é uma das suas marcas.
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G |Qual foi a reportagem (ou o episódio do podcast) de maior sucesso feito pela equipe de O Joio e o Trigo?
TM |O episódio do “Prato Cheio” que mais teve alcance foi “A Moça da Lata” [lançado em 2021, na terceira temporada do programa] e a matéria do site com mais acesso foi: “O que está por trás da multiplicação das OXXO” [de 2022].
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G |Você já passou por redações de veículos de esquerda, como o Brasil de Fato e a Caros Amigos, e foi uma das fundadoras de dois importantes portais que investigam e denunciam questões relacionadas à justiça, ao abuso de poder e aos direitos humanos. Como furar a bolha para expandir esses temas para a sociedade como um todo? Qual é a importância de fazer esse jornalismo engajado?
TM |No Joio, fazemos algumas tentativas de furar a bolha. Uma delas, acho que é por meio do podcast, considerando que estamos num tempo histórico em que há uma diminuição do interesse por textos, quanto mais textos longos. Outra forma, no jornalismo, e no Joio, é por meio de parcerias com outros veículos, que têm outros públicos, às vezes do mesmo tamanho, mas diferente. Ou com parcerias com veículos da grande imprensa, que têm um alcance muito maior, mas que não têm conseguido se dedicar a fazer investigações longas e demoradas. E também com veículos internacionais. Por meio de pontes, redes, parcerias, fazendo jornalismo colaborativo, é possível aumentar o alcance e tentar furar algumas bolhas. No caso do Joio, nos importamos muito com a relação com a academia, então também é outra forma de furar a bolha. Assim como por meio de formação: fazemos oficinas e cursos voltados para públicos variados: acadêmicos, pesquisadores, jornalistas, lideranças de movimentos sociais. E temos o Joio Formação, o nosso núcleo de educação, que foi criado para oferecer esses cursos, oficinas e materiais didáticos. Por essência, o jornalismo deve ser voltado ao interesse público, ou seja, deve tratar dos interesses da maioria da população. Acho que o jornalismo independente tem uma preocupação enorme com temas relacionados aos direitos humanos, aos direitos socioambientais e em mostrar relações de poder, de corporações, de grandes empresas e seus representantes. Ou seja, temos liberdade editorial para investigar sem conflitos de interesse de anunciantes que pagam nossas contas.
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G |Qual o modelo de financiamento do Joio?
TM |O nosso modelo de financiamento é o mesmo de muitas organizações de jornalismo independente que existem no país. São fundações e organizações de filantropia, nacionais e internacionais, que têm em seus portfólios os apoios ao jornalismo independente e investigativo.
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G |Qual é o futuro da alimentação com o aquecimento global e as mudanças climáticas?
TM |Relatórios indicam que as mudanças climáticas têm e vão ter um efeito sobre a saúde e a produção de alimentos, e entre os principais afetados são e serão, como sempre, os mais pobres. Os eventos climáticos afetam a produção de alimentos com quebras de safra, escassez e aumento de preços, intensificando a insegurança alimentar.
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