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ReportagemQuanto custa a saúde mental?
A crise econômica e alta inflação pesam não só no bolso, mas também geram sofrimento psicológico para os brasileiros
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Quanto custa a saúde mental?
A crise econômica e alta inflação pesam não só no bolso, mas também geram sofrimento psicológico para os brasileiros
“O sofrimento que provocou nas famílias, o empobrecimento dos mais pobres, a desordem na contabilidade das empresas, a incapacidade absoluta de fazer qualquer previsão e planejamento, tudo ficou insuportável. A inflação inflacionou a vida brasileira.” Assim a economista Miriam Leitão descreve, em seu livro “Saga Brasileira” (Record, 2011), o impacto não do atual momento de constante alta de preços, mas do período entre as décadas de 1980 e 1990, em que o Brasil viveu a chamada hiperinflação. Com os aumentos sucessivos de preços dos mais variados produtos, que podiam mudar várias vezes num mesmo dia, o planejamento se tornou algo impossível e a ansiedade tomou conta do cotidiano dos brasileiros, que aguardavam por uma solução.
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Nesse caso, no entanto, o remédio teve gosto amargo e até mais violento do que a doença, com efeitos claros para a saúde mental da população. Em sua dissertação de mestrado de 2019, “Passaram a Mão na Minha Poupança”, a jornalista e historiadora Francine De Lorenzo analisa as consequências desastrosas do infame Plano Collor, que confiscou poupanças na tentativa de domar os preços em alta. O documento relaciona à aplicação do projeto casos “de profundo conflito mental, estresse e até suicídio”. Mais especificamente, ela traça uma conexão com relatos de suicídios de idosos, que viram os recursos que pouparam ao longo de toda uma vida, para uma velhice tranquila, se esvaírem do dia para a noite.
Ainda que estejamos distantes das cifras absurdas da hiperinflação das décadas de 1980 e 1990, os altos índices atuais também vêm gerando impacto no cotidiano e na saúde mental da população. De 2019, no período antes da pandemia, ao final de 2021, o índice de preocupação dos brasileiros saltou de 56% para 67%. Embora a pesquisa, realizada no mundo todo pela instituição americana Gallup, não explicite os motivos de toda essa preocupação, é possível, segundo o economista e diretor do FGV Social Marcelo Neri, fazer um paralelo — entre vários outros fatores envolvendo o advento da pandemia — com o acumulado de 15,2% de inflação ao longo desses dois anos.
Outro dado preocupante, aponta Neri, é o fato de que o brasileiro ocupou nada menos que a segunda posição no ranking mundial de preocupação em 2021, dentre cerca de 120 países. Só perdemos para o Afeganistão e ficamos pouco acima do Líbano, duas nações do Oriente Médio que sofrem constantemente com conflitos bélicos, assim como sucessivas crises econômicas e humanitárias. Também ficamos 25% acima da média geral de preocupação, que foi de 42% em 2021. “Teve um aumento nesse índice no mundo inteiro, mas aqui foi maior”, explica Neri. “A pergunta capta motivos de preocupação cotidiana, como precisar fazer compras com a inflação alta, estar desempregado ou sofrer com a possibilidade de perder o emprego.”
Sem luz no fim do túnel
Pensar ou falar sobre dinheiro não é uma tarefa das mais simples, e isso não só no Brasil, afirma a psicóloga social Vera Rita Ferreira. A profissional é uma das pioneiras da psicologia econômica no país, área em que atua desde 1994, quando defendeu uma tese de mestrado sobre o impacto emocional da inflação. “A maioria das pessoas é pobre e não tem dinheiro suficiente, então nunca vai ser um tema de alegria ou satisfação. Fazer o orçamento doméstico é um desafio. Neste momento de inflação então, nem se fala”, diz Ferreira, que é presidente da Associação Internacional de Pesquisa em Psicologia Econômica (Iarep, na sigla em inglês).
Segundo a psicóloga, toda crise econômica pode contribuir para causar distúrbios de saúde mental. Existem, é claro, casos extremos, como a possibilidade de não ter como alimentar os filhos ou de ser despejado e obrigado a viver nas ruas. Mesmo nos exemplos em que a falta de dinheiro não afeta a sobrevivência surgem questões como incerteza e insegurança, que podem se agravar na falta de uma rede de apoio para sustentar o indivíduo. “Alguns podem enlouquecer ou criar uma ideia fixa; outros podem adoecer fisicamente como forma de extravasar a angústia. A impotência é tão grande que a pessoa é acometida por uma fraqueza, uma incapacidade de tomar decisões ou se cuidar.” Mas Ferreira também lembra que dificuldades econômicas não vão necessariamente se refletir em problemas psicológicos. Isso depende do histórico de cada um e da situação específica que a pessoa está enfrentando.
A psicóloga ressalta que muitos brasileiros hoje vivem uma situação caracterizada como psicologia da escassez, em que os parcos recursos os obrigam a fazer escolhas e trocas difíceis e essenciais o tempo inteiro. “Compro arroz ou tento pagar a conta de luz? Faço três refeições por dia ou religo a internet que meus filhos usam para estudar e eu para procurar trabalho?”, exemplifica. Quando se prolonga, esse estado de coisas causa exaustão, desalento e preocupação constantes, tirando da pessoa a capacidade de analisar melhor suas escolhas e estar atenta a oportunidades, como a busca por mais trabalho ou qualificação.
“Não cabe mais nada dentro desse túnel em que a pessoa se vê aprisionada”, aponta Ferreira. “É como se ela estivesse se afogando, mas não conseguisse botar a cabeça para fora da água e ver para onde precisaria nadar, de tanto que está consumida pelas exigências de sobrevivência imediata.”
Cabo de guerra da desigualdade
Embora a inflação atinja todas as camadas sociais, a desigualdade da sociedade brasileira faz com que seus efeitos sejam mais pesados para uma parcela específica da população. E, como é de praxe, a corda inflacionária também tem o costume de arrebentar do lado mais fraco. Quem diz isso não sou eu, e sim os números. Entre os meses de abril de 2021 e 2022, a inflação no Brasil, puxada por itens essenciais como alimentos e gás de cozinha, foi 1,9% mais alta para a população mais pobre do que para os brasileiros de alta renda, afirma Marcelo Neri, do FGV Social. Além disso, o desemprego entre aqueles que têm renda mais baixa é altíssimo, ficando em 27,9% no primeiro trimestre de 2022. E o futuro, infelizmente, não é muito mais promissor. Como as estratégias para controle da inflação geralmente passam por perdas no mercado de trabalho, há um risco de que essa porcentagem suba ainda mais, alerta Neri.
O economista lembra que os mais pobres também enfrentam maiores dificuldades para proteger seus recursos, se organizar ou negociar dívidas. Planejamento que é dificultado pelo cenário de oscilação que tem marcado a pobreza no Brasil. “Em março de 2020, eram 65,4 milhões de pobres, que recebiam menos de um salário mínimo per capita. Esse índice caiu para 42 milhões em agosto, com o auxílio emergencial e, seis meses depois, saltou para 71,9 milhões”, explica Neri. “Existe uma dificuldade natural de se planejar, assim como para qualquer pessoa que estivesse nessa montanha-russa. Isso não é normal.”
A preocupação cotidiana, que antes da pandemia era até menor na camada de mais baixa renda do que entre os mais ricos, saltou de 53% para 81% no final de 2021 — para efeito de comparação, entre os 20% de alta renda, o pulo foi bem menor, de 55% para 62%. “A gente pode até não definir exatamente os motivos, mas viver sob alta inflação e alta probabilidade de desemprego é uma fonte potencial de preocupação no dia a dia.”
A inflação também tende a atingir com mais força grupos historicamente excluídos, como mulheres e negros, que sofrem com um desmanche do aparato público de seguridade social, aponta a professora de psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais Maria Stella Goulart. “Quando vemos nosso padrão de consumo degradado dia a dia, é uma porta aberta a problemas na integridade física e emocional. A inflação brasileira é um convite à doença e à morte”, declara a acadêmica. Em julho, o Brasil entrou novamente no Mapa da Fome das Nações Unidas, lista da qual o país tinha saído em 2014. Goulart afirma que a inflação gera ainda isolamento e exclusão, e deteriora nossa relação com os outros, o que costuma permitir que operemos socialmente. “Como vou trabalhar, como vou dormir com fome?”
Em busca de terapia
Na clínica onde atende, em São Paulo, o psicólogo analítico Kléber Marinho tem percebido um aumento na busca por terapia nos últimos meses. Mas não só isso. Segundo ele, cada vez mais pacientes buscam atendimento por convênio ou a preços mais baixos, pois não têm condições de arcar com os custos integrais. “Muitas vezes a gente tem que encaminhar ou ajudar de alguma maneira diferente, ainda que seja fazendo atendimento voluntário.” Com a inflação em alta na saúde particular, o que acaba restando é buscar o atendimento público. E este, reforça Marinho, está cada vez mais sucateado.
Em geral, a principal barreira para iniciar uma terapia é o reconhecimento do distúrbio, já que muitos ainda encaram problemas de saúde mental como uma bobagem, diz o psicólogo. Mesmo quando existe a noção de que algo não vai bem, no entanto, falta saber onde buscar ajuda — e o rol de opções é bastante reduzido para quem não pode pagar um psicólogo ou psiquiatra privado. “Os dispositivos públicos estão sendo enxugados com falta de recursos e demissões. Possibilidades como os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) não estão dando conta da demanda, que aumentou.”
Marinho lembra que os brasileiros já são a população que mais sofre de ansiedade no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Descrita de maneira um tanto simplista, a ansiedade é um estado em que se tenta prever e de alguma forma controlar o futuro. Num momento em que os preços de produtos estão distantes do nosso controle e aumentam constantemente, diz o psicólogo, quando uma pessoa vê que seus ganhos não são mais suficientes para viver de forma adequada, ela passa a viver em vigilância constante, buscando unicamente a sobrevivência. “Isso faz com que ela tenha um desgaste emocional o tempo todo. A insônia é uma reclamação permanente, porque você vive buscando uma saída e fica cada vez mais ansioso.” Quando a situação é generalizada, uma tendência é ver seu futuro refletido naquele que já está sofrendo hoje. “Se você encontra uma pessoa em situação de rua, cria-se um medo de que um dia seja você ali. Isso vai mostrando para o cidadão comum que aquela condição está cada vez mais perto dele.”
Estresse: futuro do presente
O auxiliar administrativo Renato Aleixo, 43, de São Paulo, tem precisado usar remédios para dormir já faz quase um ano. Anteriormente diagnosticado com ansiedade, ele sentiu que sua condição psicológica se deteriorou durante a pandemia, devido ao isolamento e à piora das condições financeiras da família. Embora tenha conseguido manter o emprego, a esposa precisou deixar a empresa onde trabalhava como secretária no ano passado. Hoje, para sustentar o filho de dez anos, eles dependem do salário de Aleixo e do dinheiro que ela consegue vendendo salgados e doces de festa.
“Sinto que o que a gente ganha dá para cada vez menos. Daqui a pouco, não vamos poder comprar mais nada, porque o salário não aumenta na mesma proporção dos preços”, conta o auxiliar administrativo. Hoje, apesar de não ter nenhum indício concreto de que isso deva acontecer, uma de suas principais preocupações é a possibilidade de perder o emprego. Isso, segundo ele, poderia causar uma avalanche em sua vida, colocando em risco sua capacidade de pagar as contas, bancar a educação do filho ou até comprar comida.
De acordo com a neurocientista Ana Carolina Souza, quando vivido durante um tempo prolongado, o estresse pode se tornar crônico, afetando nossa saúde mental. “Se todo dia tenho medo de ser demitida ou não conseguir fechar as contas, não é uma situação que acaba. Hoje as pessoas têm que lidar com essa insegurança financeira por longos períodos”, afirma Souza, sócia da Nêmesis, empresa de assessoria e treinamento em neurociência organizacional. Uma das coisas que diferem o ser humano de outros animais é justamente nossa capacidade de sofrer por algo que ainda nem aconteceu, mas que imaginamos que possa ocorrer no futuro. “Mesmo que a pessoa não tenha um problema financeiro agora, o medo de vir a ter pode gerar um distúrbio de saúde mental.”
Hoje é difícil lidar com o estresse psicológico gerado pela inflação pois esse fantasma é mais real do que gostaríamos. Ainda assim, caso a pessoa não viva uma situação de pobreza extrema, quando não há recursos para administrar, a neurocientista sugere uma possível solução: planejamento. Acompanhar de perto os gastos, levantar uma reserva de segurança, ponderar muito bem os investimentos e buscar construir uma rede de apoio sólida — “Você tem com quem contar quando precisar? Quais as suas possibilidades?”. Essas são ações que geram referências de segurança em nossa mente, permitindo tanto se precaver de forma mais sólida quanto sofrer menos com a ansiedade. “Essa garantia não é real porque a gente nunca sabe o que vai acontecer, mas precisa de alguma segurança emocional. Certeza ninguém vai ter, mas dá para definir com que recursos você pode contar.”
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