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ReportagemA exaustão dos streamers
Com lives que duram de horas a vários dias, streamers vêm sofrendo pressão para transmitir mais conteúdo e sentem o efeito da sobrecarga
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A exaustão dos streamers
Com lives que duram de horas a vários dias, streamers vêm sofrendo pressão para transmitir mais conteúdo e sentem o efeito da sobrecarga
Em sua rotina de lives diárias, no auge do trabalho como streamer, o influencer carioca Rafael Rello, 21, chegou a transmitir conteúdo ao longo de 16 horas ininterruptas por dias seguidos. Em outros, era mais contido: batia no máximo a marca das 12 horas. Para quem ainda não está ligado, streamer é o termo usado para aquelas pessoas que fazem vídeos em tempo real na internet — em geral, uma prática mais popular entre gamers, que jogam ao vivo seus títulos favoritos, mas pode englobar outras áreas, como programação e até xadrez. Como o próprio Rello admite, às vezes as lives e o contato com os mais de 100 mil seguidores que o acompanham em seu canal na plataforma Twitch, uma das mais populares da internet, servem até como uma válvula de escape para problemas na vida pessoal. “Me encontrava com meu público, uma parada que amo até hoje.”
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Por outro lado, quando não estava bem, não conseguia deixar de transparecer o incômodo — e o público inevitavelmente percebia. “Principalmente quem está começando nesse universo tem que saber conciliar”, aconselha o streamer. Às vezes, aliás, a chateação vinha dos próprios seguidores. “Minha live era uma várzea, com música estourada, gente mandando mensagem, e às vezes eu ficava estressado, puto mesmo, e eles gostavam de ver isso”, conta. “Uma hora eu cansava, falava: ‘chega, não dá mais, tira essa música aí que quero ficar na minha’, aí eles entendiam.”
Faço seis horas de live por dia, lutando contra o sono, dormindo mal, comendo mal. É porque eu ganho uma grana satisfatória para mim
À primeira vista, o número de horas que um streamer como Rello precisa passar em frente à webcam para ganhar a vida pode parecer impressionante, mas não é nenhuma raridade. Hoje, a maratona de stream, ou “subathon”, live que corre por muito mais tempo do que seria normal, é uma das principais estratégias para atrair a atenção e quem sabe alguns “subs” — como são conhecidos aqueles que pagam uma assinatura para ter benefícios enquanto acompanham o canal de sua preferência. E, nesse caso, o números de Rello parecem até modestos comparados com outros exemplos que têm chamado a atenção nos últimos anos.
Rello em uma transmissão ao vivo em seu canal do Twitch Twitch/@rello
Um dos mais recentes foi o caso do norte-americano Ludwig Ahgren, que prometeu permanecer online por dez segundos adicionais a cada nova inscrição em seu canal. Claro que tudo saiu do planejado e os subs simplesmente não pararam mais de entrar. A transmissão, que inicialmente foi pensada para durar um dia inteiro, acabou ficando no ar por mais de 30 dias, com Ahgren saindo da frente da tela apenas para dormir, ir ao banheiro e ocasionalmente ter um date com a namorada, e ao final batendo o recorde mundial de subs do site.
Acostumado a passar madrugadas inteiras conversando com os fãs em seu canal, o fenômeno da internet Casimiro relata constantemente aos seus seguidores sono e cansaço, já tendo inclusive abandonado o formato de lives diárias e deixado de transmitir várias vezes por se sentir exausto ao final do dia. “Faço seis horas de live por dia, lutando contra o sono, dormindo mal, comendo mal. É porque eu ganho uma grana satisfatória para mim”, disse aos fãs durante uma transmissão feita no final de 2021.
Trabalho oficial
Assim como Rello, a streamer Roberta Krutzmann, 29, de Novo Hamburgo (RS) também já organizou maratonas em que permaneceu ao vivo por mais de 16 horas seguidas. Embora não tenha o costume de fazer isso sempre, nessas lives excepcionais ela tenta se policiar para fazer exercícios de alongamento após ficar muito tempo sentada. Mesmo numa semana típica, de segunda a sábado, quando costuma permanecer diariamente “apenas” de seis a oito horas transmitindo, o que mais tem lhe incomodado são as dores nas costas. “Costumo sentir um cansaço muito grande antes de abrir a live, mas durante não sinto tanto. Então o problema acaba sendo mais essa questão de vencer a preguiça inicial e dar um start”, conta.
Tem dias em que vejo os números caindo e vem uma pressão mais forte ainda. Será que venho fazendo alguma coisa errada?
A jovem, que trabalhava em período integral como profissional de TI, decidiu no ano passado optar por um emprego de meio período para ter mais tempo de se dedicar aos streams e tentar fazer sua base de assinantes crescer. Até porque o trabalho não se resume só ao que a gente vê e pode ser um erro pensar que ele começa com um simples apertar de botão e termina quando a tela fica preta.
Assim que se encerra o expediente no emprego que chama de “oficial”, a gaúcha não fica de pernas para o ar até a hora da live. Em vez disso, trata de organizar seus vídeos anteriores e lê as notícias mais quentes sobre games, uma maneira de ter assunto para tratar durante tanto tempo com o público que a aguarda ansiosamente no início da noite. “Vou te dizer que não tem um dia em que você não sente a pressão, principalmente depois que tu vira a tecla e aquilo deixa de ser um hobby para se tornar uma profissão”, admite Krutzmann, que nos últimos meses tem enfrentado problemas constantes com a conexão à internet. “Tem dias em que vejo os números caindo e vem uma pressão mais forte ainda. Você pensa: será que é só por causa da internet ou eu que venho fazendo alguma coisa errada?”
A tal saúde mental
Além dos problemas físicos, como os relacionados à coluna ou os mais ortopédicos, causados pela permanência excessiva numa mesma posição, outra questão que pode ter consequências graves é a perda de contato com a luz solar, aponta o psicólogo Cristiano Nabuco. “Não é estranho ver jovens que trocam o dia pela noite. Na nossa retina, temos células fotossensíveis. Se você fica na frente de uma tela por muito tempo, desorganiza esse relógio biológico, o que pode reduzir a qualidade do seu sono, fazendo você dormir menos e pior.”
A streamer Roberta Krutzmann, também conhecida como rkrutzmann, conversa com seus espectadores em transmissão Twitch/@rkrutzmann
Um gamer que joga enquanto transmite ao vivo e ainda precisa se preocupar com as reações de suas centenas de seguidores desenvolve um conglomerado de ações que acabam se atropelando e sobrecarregando o cérebro, afirma o profissional, que é especialista em questões de saúde mental e tecnologia e coordenador do grupo de dependência tecnológica do Hospital das Clínicas. “Quando você joga e transmite simultaneamente, e tende a executar essas atividades por muito tempo, desenvolve uma sobrecarga nos seus neurônios que cria uma sensação de cansaço físico.” O psicólogo reforça também que, quando realizamos as mesmas operações mentais por longos períodos sem pausas, isso cria um desgaste que pode levar a quadros de ansiedade e depressão ou até a um colapso físico e mental. E a dependência financeira de todo esse engajamento, no caso dos streamers profissionais, ainda gera uma tensão extra, causando a impressão de que é impossível modificar esse comportamento, aponta Nabuco.
O professor Lucio Lage, que pesquisa no Laboratório Delete, do Instituto de Psiquiatria da UFRJ, o impacto da tecnologia na saúde mental, afirma que para os jovens e adolescentes, que compõem boa parte dos usuários de plataformas de stream, existe ainda um perigo adicional. Como o cérebro humano só se desenvolve totalmente aos 25 anos, a parte dele relacionada ao medo ainda não está pronta até essa idade, o que impacta diretamente a forma como esses jovens se comportam online. “Se o adulto pode até ponderar e tentar exercer algum controle sobre o uso de telas, o adolescente é mais destemido, vai ter muito mais dificuldade ou menos vontade de fazer isso. E, como tudo na vida, a gente tem que saber dosar.”
Quem me viu, quem me vê
Também vale lembrar que, quando se está transmitindo conteúdo dessa forma e com tal frequência, as centenas e até milhares de pessoas que estão do outro lado da tela acabam sendo fonte de preocupação constante. A estudante de tecnologia Fernanda Souza, 36, começou a fazer lives sobre programação e codificação em fevereiro de 2021. Ela conta que já tinha recebido hate e mensagens racistas e gordofóbicas em suas redes antes, mas que a frequência aumentou depois que começou a fazer lives. Até que decidiu expor uma delas em sua conta no Twitter. “Pra vocês entenderem o que é ser uma mulher preta e gorda na internet, saca?”, escreveu no post.
Souza aponta ainda como problema a falta de diversidade entre os principais streamers que hoje atuam na internet e o quanto o meio ainda guarda de preconceito, o que faz com que a luta nesse meio ainda seja um tanto solitária. “Para pessoas pretas e mulheres é difícil. Quando você junta as duas coisas, é pior, porque sofro tanto misoginia quanto racismo”, afirma Souza, que, devido à grande demanda de tempo, nunca chegou a ter a atividade como profissão ou fonte de renda.
Krutzmann afirma ter orgulho de sua comunidade de seguidores na Twitch — “Não tenho do que reclamar, nunca tive tantos amigos na vida” –, mas lembra também que o assédio em cima de mulheres que transmitem lives é “bizarramente comum”. “Isso porque não sou uma mulher com o corpo padrão, e mesmo assim é absurda a quantidade de homens que vêm agir de forma inconveniente.”
Como lembra Lucio Lage, do Laboratório Delete, quebramos voluntariamente nossa privacidade quanto mais expomos nós mesmos e nossa vida pessoal na internet. Assim, ficamos muito mais vulneráveis emocionalmente a ataques como o sofrido por Souza, outra fonte de preocupação que também pode acabar impactando a rotina e a saúde mental de forma grave.
Mais horas, menos grana
Foi principalmente pelo lado financeiro que muitos streamers sofreram um baque em julho de 2021. A Twitch promoveu na época uma redução drástica nos valores das subs — as mais baratas passaram de R$ 22,99 a R$ 7,90 –, com a intenção declarada de permitir que mais usuários pudessem contribuir com seu streamer do coração. Só que muitos relataram desde então que o ganho em número de contribuições passou bem longe de compensar o corte nos valores.
O streamer Ricardo Santiago, 28, mais conhecido em suas redes como Rik Editor, foi um dos que acabaram largando a plataforma depois da mudança, passando a se dedicar a outras redes e sites. Recentemente, até voltou a fazer uma ou outra transmissão, mas sem a mesma frequência de outros tempos. “A ideia é fazer minhas lives com data no YouTube, porque lá tem uma divisão mais honesta da monetização, e na Twitch tenho feito sem tanta pretensão”, explica.
Ricardo Santiago edita vídeos ao vivo em suas transmissões como Rik Editor Twitch/@rikstudios
Apesar de ainda passar por um período de transição, em que a plataforma tem prestado uma ajuda de custo aos streamers, Santiago aponta que agora o tempo de transmissão mensal se tornou um ponto crucial, o que deve colocar ainda mais pressão sobre quem trabalha com isso. Streamers contam que, com a redução, especialmente para os de pequeno e médio porte, ficou mais difícil alcançar o valor mínimo de 100 dólares em subs exigido para que o usuário possa receber seu dinheiro naquele mês. E, enquanto essa mudança já coloca uma pressão para fazer lives mais longas e com maior frequência, assim conseguindo mais inscritos, o outro critério para receber da Twitch é bater metas de tempo, de acordo com a média de transmissões realizadas nos últimos meses.
Tenho amigos que começaram a tomar remédio, a ter problemas psicológicos. Tem gente que entra mesmo assim porque precisa da grana
“Eu mesmo já tive que entrar nesse jogo, fazendo várias lives esporádicas, às vezes mais casuais, sentado no sofá, editando, mostrando meu trabalho. A gente vai entrando nisso e a pressão vai aumentando. Quando acabar o auxílio não sei o que vai acontecer com a maioria dos streamers”, afirma Santiago. Outro problema, segundo ele, tem a ver com plataformas que contratam streamers para transmitir de forma exclusiva, com metas mensais absurdas e sem o suporte necessário. “Vai afetando a ansiedade, a pessoa vai se estressando de pouco em pouco. Tenho amigos que começaram a tomar remédio, a ter problemas psicológicos. É uma escolha. Tem gente que já sabe de todas essas questões, mas entra mesmo assim porque precisa da grana.”
O próprio Rafael Rello também começou a investir recentemente em outra área, passando a gravar e editar vídeos sobre criptomoedas e jogos em NFT no YouTube. As lives na Twitch só não ficaram totalmente de lado porque ele ainda tem transmitido com regularidade vídeos em tela preta, recurso adotado por vários usuários da plataforma para bater a meta de horas e garantir o dinheiro no final do mês. “Hoje ainda recebo uma grana que ajuda, mas não faço mais live. Deixo rodando em tela preta porque não tem condições. Até preciso fazer alguma coisa para divulgar um patrocinador, só que, na rotina de gravar, editar e organizar os vídeos do canal, não consigo reservar tempo para isso.”