Professora da UnB analisa assimetria nas relações heterossexuais — Gama Revista
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Isabela Durão

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Conversas

Valeska Zanello: "Os homens acham que têm o direito divino de avaliar as mulheres"

Doutora em psicologia clínica, pesquisadora e professora da UnB diz que relações heterossexuais são assimétricas e que o principal fator de vulnerabilização das mulheres é se sentir escolhida

Isabelle Moreira Lima 09 de Junho de 2024

Valeska Zanello: “Os homens acham que têm o direito divino de avaliar as mulheres”

Isabelle Moreira Lima 09 de Junho de 2024
Isabela Durão

Doutora em psicologia clínica, pesquisadora e professora da UnB diz que relações heterossexuais são assimétricas e que o principal fator de vulnerabilização das mulheres é se sentir escolhida

O flerte heterossexual não é um território livre de desigualdade de gênero. A doutora em psicologia clínica Valeska Zanello, que há 20 anos estuda a saúde mental das mulheres, percebeu isso muito cedo e criou o conceito da prateleira do amor: nela, estão dispostas as mulheres para que sejam “escolhidas” pelos homens. De acordo com essa ideia, as mulheres que estão de acordo com o padrão de beleza vingente (branco, magro, jovem) estão mais bem posicionadas, enquanto as que se distanciam dele ficam no fundo.

“Há uma pedagogia afetiva que ensina às mulheres uma certa forma de amar e que as deixa vulneráveis. Essa forma é identitária. O que a gente aprende é que o nosso valor de mulher está ligado a ser escolhida por um homem e a manter essa relação”, Zanello afirma em entrevista a Gama sobre o dispositivo amoroso a que as mulheres estão submetidas nas relações heterossexuais.

 Divulgação

Por isso, a autora de livros como “A Prateleira do Amor: Sobre mulheres, homens e relações” (Appris, 2022) acredita que só a educação pode “salvar” as mulheres desse tipo de dominação masculina. Ela fala em letramento de gênero e de políticas públicas que levariam a uma educação mais completa desde a infância. Zanello, que é professora do departamento de Psicologia Clínica da UnB, acredita que as violências de gênero começam com as meninas quando elas precisam se responsabilizar por tarefas domésticas que nem os homens adultos assumem. Mas a educação atingiria também as adultas, que passariam a entender como estruturais abusos que parecem individuais.

A pesquisadora, que coordena o grupo de pesquisa “Saúde Mental e Gênero”, com foco em mulheres e interseccionalidade com raça e etnia, afirma que a liberdade delas vem com a educação, mas também com o autoconhecimento. E fala sobre as mulheres solteiras, vistas pela sociedade como fracassadas, mas que na verdade talvez sejam as que têm a saúde mental mais preservada. “É como se não pudessemos escolher ficar sozinhas”, diz na entrevista que você lê abaixo.

É muito melhor estar solteira do que estar numa relação assimétrica

  • G |Você tem um livro que se chama “A prateleira do amor”, que fala sobre mulheres, homens e suas relações. O que esse termo quer dizer exatamente?

    Valeska Zanello |

    A prateleira do amor foi uma metáfora que criei para entender como é que se constituem as emoções na nossa cultura e como o gênero as atravessa. As mulheres aprendem a amar de uma forma identitária, algo que não acontece com os homens. Após mais de 20 anos de pesquisa na área da saúde mental, considero que o principal fator de vulnerabilização das mulheres é essa forma de amar, que é transversal a todas as interseccionalidades — raça, classe social, questões étnicas, etc. Até as mulheres que estão em situação de rua ouvidas por nós diziam que ninguém queria escutá-las e elas querem falar do sofrimento no amor. As mulheres aprendem uma certa forma de amar — e esse amor não é universal, mas situado histórica e culturalmente — e a prateleira aponta para uma assimetria no amor: as mulheres se subjetivam. A metáfora da prateleira é mediada por um ideal estético branco, louro, magro, jovem. Estão em melhor posição as mulheres que seguem esse padrão e, no fundo, são as mulheres negras, velhas, gordas, com deficiência. Velhas, no Brasil, pode ser a partir de 30 anos, a depender da região. Quem avalia essas mulheres são os próprios homens, e aí está a assimetria: eles são eleitos avaliadores física e moralmente das mulheres, por mais perebentos que sejam. Essa é uma palavra que eu uso para me referir a perebas físicas, morais e intelectuais. Os homens se sentem no direito de nos julgar: ele tem barriga de chope, mas chama a mulher de baleia; ele é um canalha safado mas diz que não vai namorar com uma mulher porque ela já deu para vários. Eles acham que tem um direito divino de avaliar as mulheres.

  • G |Essa me parece uma ideia bastante revoltante…

    VZ |

    É revoltante, mas é muito libertador dar nome às coisas porque, em geral, as mulheres vivenciam o sofrimento como algo biográfico, tipo “eu tenho o dedo podre”. Porém, existe algo estrutural e que tem a ver então com o momento histórico, com o capitalismo. O sucesso de um cara é medido pelo dinheiro e aí ele acessa mulheres que estão num lugar melhor da prateleira. Inclusive porque pegar uma mulher bem localizada é uma chancela perante outros homens dessa virilidade e desse sucesso: é uma espécie de troféu. Para as mulheres, o botão de vulnerabilidade é ser escolhida. Quando ela fica para trás na prateleira, bate um desespero. Isso aparece muito nas pesquisas e vemos que, muitas vezes, as mulheres se casam mais com o casamento do que com o homem.

  • G |Algum homem entra nessa prateleira?

    VZ |

    Homem não se subjetiva na prateleira, é muito diferente. O que faz as mulheres se disporem é essa ideia de que uma mulher é validada como pessoa quando é escolhida. Mesmo quando o cara é uma pereba, elas perguntam “o que que eu poderia ter feito? Não deveria ter trabalhado tanto, poderia ter comprado uma calcinha sensual, por isso que ele me traiu”. Imagina, se a gente fosse trair os homens por causa das cuecas furadas e puídas… É uma carga para essa mulher, ela pode ser desembargadora, pode ser a presidenta do Brasil, pode ser o que quiser em termos de poder, cargo profissional, grana, mas se ela for solteira ela vai ser vista como uma mulher fracassada. Uma mulher solteira é vista como uma mulher que não deu certo e não como uma mulher que é protagonista da sua vida. Como se a gente não pudesse escolher estar sozinha, como se não tivesse benefício para a saúde mental. É muito melhor estar solteira do que estar numa relação assimétrica.

 Editora Appris

  • G |Vemos muitas mulheres heterossexuais frustradas com os homens, algumas fazendo detox de relacionamentos. Como vê essa ideia?

    Valeska Zanello |

    Muito tem se falado sobre o “heteropessimismo” (frustração com as relações heterossexuais), mas eu não gosto muito dessa ideia. Vejo um maior letramento de gênero e um heterorrealismo, que é um luto frente a um ideal de amor que envolve um príncipe encantado. Quando você vem repetindo histórias infelizes, um detox pode ser importante. Porém, é preciso que esse detox venha acompanhado de um letramento de gênero e de autoconhecimento. Não é estar só que te protege do dispositivo amoroso; é você saber discernir com que homem você está e o que é manipulação.

Uma mulher solteira é vista como uma mulher que não deu certo e não como uma mulher que é protagonista da sua vida

  • G |Falta letramento de gênero para os relacionamentos darem certo? Quem precisa desse letramento, os homens ou as mulheres?

    VZ |

    Todo mundo, mas eu acho que no caso de gênero é sempre uma relação hierárquica, então o letramento é mais libertador para as mulheres. Para os homens, traz responsabilização e perdas. É um desafio engajar esses homens. Vamos ter que empurrá-los de alguma maneira para o letramento, o que será possível principalmente se eles estiverem apaixonados por uma mulher com letramento de gênero porque elas não vão dar conta de ficar com um perebento. A mudança vai vir com quem está incomodado, e quem está incomodado é o grupo de mulheres.

  • G |Há mais letramento nas gerações mais jovens?

    VZ |

    Em uma certa bolha sim, mas ainda temos diferenças muito grandes. Antes da pandemia, começamos a trabalhar em algumas escolas públicas da periferia do Distrito Federal, em que aplicamos um questionário que perguntava qual era o maior sonho de meninos e meninas. Fiquei muito impactada porque muitas meninas ainda colocavam que seu maior sonho era casar. Já os meninos queriam ser jogadores de futebol. Não é que eles gostam do futebol, é pela precariedade de oportunidades que são oferecidas. O sonho de ser um jogador de futebol é ter a chancela do dinheiro e do status e acesso a mulheres bem localizadas na prateleira do amor. Isso também chancela a masculinidade. No Brasil, ainda há bases que estão funcionando com a mentalidade da época da minha avó, e outras que são de uma bolha.

  • G |Como vê os homens lidarem com as mudanças da sociedade e a disseminação de ideias feministas?

    VZ |

    Isso tem colocado os homens de uma determinada bolha em cheque, uma classe média, classe mais alta. O trabalho ainda é árduo. Porém também tem provocado um backlash, a gente tem visto o aumento dos movimentos Red Pill, inclusive em meninos jovens. É muito ruim perder o privilégio, então nesse sentido é esperado. Mas é preciso ter políticas públicas mais consolidadas, e o principal foco deveria ser a educação. Talvez eu não veja essa mudança, mas gostaria de deixar o mundo melhor para as meninas e mulheres que estão vindo. Não é um projeto a curto prazo.

  • G |Você acha que a desigualdade de gênero está colocando o flerte em cheque?

    VZ |

    É complicado porque a decisão de transformar essa dinâmica não é individual, porque ela é estrutural. E tenho visto muitos discursos que adotam, sem se dar conta, uma perspectiva neoliberal, de dizer “eu desisti de gênero”, quando não é você quem escolhe. Fiz uma pesquisa com grupos de WhatsApp masculinos no Brasil e fiquei impressionada com homens de muitas faixas etárias diferentes, brancos e negros, de classes sociais distintas, e que ainda dividiam as mulheres que são para casar das que são para “comer”. E essa categorização acontecia pelo comportamento sexual dessa mulher e por outros como a questão racial — o racismo é muito forte, com a objetificação sexual extrema das mulheres negras — e se as mulheres eram gordas, que chamavam de “lanchinho da madrugada”. Quando eu fiz essa pesquisa, muitas mulheres assistiram a live no meu canal do YouTube e disseram que tiveram ânsia de vômito. Mas é muito libertador politizar o sofrimento e perceber que não é um problema ligado à sua biografia, mas tem a ver com uma estrutura. Não tem solução mágica, tenho visto muito coaching na internet, mas são promessas que vão frustrar essas mulheres. Letramento de gênero é um trabalho árduo e longo. Vender a resolução como algo individual é também do capitalismo. Se aquilo que você está chamando de empoderamento está sendo aplaudido pelos homens, desconfie: há conflitos de interesse, é simples assim. Homem comemorando alguma coisa? Para para pensar.

Uma mulher solteira é vista como uma mulher que não deu certo e não como uma mulher que é protagonista da sua vida

 

  • G |Como é que destrói essa prateleira?

    VZ |

    O letramento de gênero é um processo psicoeducativo em que promovemos a visibilização de violências naturalizadas. Nomeamos a vivência das mulheres. Aquela mulher que não tem consciência nenhuma e lê sobre o que viveu vai dizer “gente, então é isso!”. Ela vai atrás de mais informação, começando um processo de letramento que pode se dar de muitas formas: mídia, literatura, artigos científicos. Eu trabalho com a divulgação da ciência tanto no Instagram, como em livros de divulgação. Há atendimento gratuito em todas as universidades que têm curso de psicologia, grupos de mulheres, mulheres nas redes sociais que promovem esse letramento e principalmente a educação. E também deveria ser uma obrigação do governo. A educação é a chance que o estado brasileiro tem de fazer a diferença na vida de muitas meninas que vêm de famílias onde sofrem muito cedo o sexismo porque têm que cuidar de casa, cuidar do irmão, fazer comida para o pai. Ajudar essas meninas desde cedo a dizer que isso é violento vai fazer a diferença na vida delas, promove saúde mental.

  • G |Os homens estão preparados para ser alvo de flerte?

    VZ |

    Depende da bolha. De modo geral, no Brasil, quando a mulher toma a frente pode provocar uma insegurança muito grande nos homens, que passam a pensar “será que ela já fez isso com outros?”. Eles colocam em xeque a honra dessa mulher, algo que ainda é ligado ao comportamento sexual. Ela também pode ser vista como “lanchinho”, e não como alguém para se ter uma relação. Mas o foco do meu trabalho são as mulheres e, com elas, é muito difícil achar quem não tenha a expectativa de que o homem fique a fim dela, porque isso tem a ver com o dispositivo amoroso. Já tive paciente que achou o cara horrível na cama, mas como ele não mandou mensagem, ela se questionou se estava feia ou gorda. Ela nem queria ele, mas queria que ele a quisesse porque, na nossa na lógica da prateleira, a autoestima fica terceirizada e ligada à estética, o que nos leva de novo à ideia do capitalismo de gênero. Lucra-se demais, seja com a indústria da beleza com as mulheres, seja no caso dos homens com o uso de Viagra e todas as promessas dessa ereção e eterna juventude peniana.

  • G |Com base nas suas pesquisas, o que você diz então para as mulheres solteiras que são ativas no flerte?

    VZ |

    É importante estar atenta ao nosso botão de vulnerabilidade, que é se sentir “escolhida”. E isso pode vir com várias roupagens. O homem diz: “Já tive várias mulheres, mas você é a que eu escolhi para ser a mãe dos meus filhos” ou “estou te contando coisas da minha vida que eu nunca contei para ninguém”. Isso faz com que a mulher se sinta especial, fica inebriada como quando toma uma droga e perde a sua capacidade de julgar. Narcisicamente é tão bom que você nem consegue ver o pereba que está na tua frente. Agora, quando ele te elogia e você não se sente nos píncaros da glória, é porque você está no caminho certo.