Minha pátria é minha língua
Mestres na difícil arte de transpor textos de um idioma para o outro, os tradutores brasileiros permitem aos leitores do país conhecer obras clássicas e contemporâneas do mundo todo
Um dos maiores intelectuais do século 20, o italiano Umberto Eco se dedicou a analisar diferentes fenômenos da linguagem e, entre eles, consagrou a máxima de que “traduzir é dizer quase a mesma coisa”. É claro que o “quase” ali não é nem um pouco fortuito: o ofício de passar textos escritos ou falados de uma língua à outra — que existe pelo menos desde que a Bíblia hebraica ganhou versões em grego e latim, seduzindo grandes estudiosos ao longo da história — é quase sempre inexato e quase nunca muito simples. Afinal, não basta ter o conhecimento linguístico nos dois idiomas: para evitar confusões e alcançar uma tradução bem sucedida, é preciso conhecer a fundo as culturas e os contextos envolvidos.
Quando se trata de literatura, então, a questão fica ainda mais complexa, porque além do conteúdo propriamente dito, é preciso dar conta do estilo. Não se trata apenas de traduzir palavra por palavra, perseguindo seu significado, mas de reproduzir a cadência das frases, o ritmo do enredo, a sonoridade dos versos — o que muitas vezes é um desafio, principalmente se as línguas tiverem estruturas muito diferentes umas das outras. No limite, a atividade pode ser considerada um exercício de reescrita; não à toa, muitas escritoras e escritores consagrados se dedicaram a ela.
No Brasil, nomes de peso construíram essa tradição — entre eles, Machado de Assis, Haroldo e Augusto de Campos, Tatiana Belinky, Paulo Leminski, José Paulo Paes e Rubens Figueiredo —, abrindo o caminho para diferentes gerações de bons tradutores literários e para um cenário de altíssima qualidade nessa área. “Arrisco dizer que [o país] é um dos melhores do mundo em termos de qualidade dos trabalhos. Tem muita gente boa entrando nesse campo e há um destaque recente que parece tornar a experiência mais gratificante e atrair pessoas mais interessantes”, avalia Caetano Galindo, tradutor de uma premiada versão do clássico “Ulysses”, de James Joyce.
Apesar das crises do mercado editorial e do setor da cultura de uma forma mais ampla, novas editoras têm surgido no país e trazido para cá autores internacionais que precisam ser traduzidos. Oficinas, cursos de formação dentro das universidades e graduações em Letras — muitas vezes com especialização em línguas que não muito tempo atrás eram traduzidas indiretamente, como o árabe, o hebraico, o japonês, o russo e o polonês — ajudaram a expandir os estudos e a prática da tradução literária dentro e fora da academia. Nesse contexto, são muitos os tradutores brasileiros que têm permitido aos leitores do país acessar boas versões de obras dos mais diversos cantos do mundo. A seguir, Gama apresenta alguns deles.
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Cristova?o Tezza / Isabela Durão Caetano Galindo
A jornada de Ulysses
Foi uma mudança repentina de planos que levou o paranaense Caetano Galindo a enfrentar as mais de mil páginas de um dos maiores clássicos da literatura mundial não só como leitor, mas como pesquisador e tradutor. “Decidi que para ler ‘Ulysses’, finalmente e finamente, eu teria que traduzir o livro e criei um projeto de doutorado já com a ideia de incluir a tradução como anexo da tese”, conta. Assim, ele trocou uma bolsa de pesquisa em Linguística Histórica na Alemanha pelos estudos de análise do discurso na USP e, claro, pela jornada heroica de passar a obra-prima de James Joyce para o português.
Antes disso, Galindo nunca tinha cogitado o exercício de traduzir como profissão. Durante a faculdade em Letras, brincou com uma peça de teatro aqui e outros textos acolá, nada levado muito a sério. Hoje, porém, sente que a história já estava escrita. “Tenho a impressão de que se alguém tivesse feito um teste de vocação de verdade em mim teria dito: ‘Ide, sede tradutor literário’”, brinca. “O tipo de formação que eu tive e de deformação mental que eu tenho me prepararam para isso melhor do que para qualquer outra coisa.” Desse mesmo ambiente, vale dizer, saiu outro talentoso tradutor, seu irmão Rogerio Galindo, com quem ele troca figurinhas constantemente no dia a dia de trabalho.
A vocação, afinal, era certeira. Desde 2003, o professor da Universidade Federal do Paraná acumula mais de 40 livros traduzidos, atravessando séculos e gêneros literários diversos. Além do inglês, língua com a qual mais lida, já se aventurou em latim, italiano, romeno e dinamarquês. Sua versão de “Ulysses”, publicada pela Companhia das Letras em 2012, venceu três dos quatro maiores prêmios literários do Brasil — o Jabuti, o APCA e o prêmio da Academia Brasileira de Letras. No portfólio de Galindo, o gigante irlandês faz companhia a David Foster Wallace, T.S. Eliot, Samuel Beckett e J.D. Salinger, entre outros nomes consagrados.
Algumas dessas empreitadas — não à toa, aquelas que envolvem livros considerados “difíceis” — são planos de uma vida inteira. “O Wallace e o Joyce vieram de projetos meus antigos, densos. Quando comecei a traduzir Wallace, eu já tinha oito anos de envolvimento com o texto, com a obra inteira dele, com a crítica, fazia exercícios”, conta o tradutor. Com a versão final de “Ulysses” não foi diferente: quase uma década de trabalho.
A atividade é, muitas vezes, minuciosa. Galindo lembra de “uma longa odisseia” na companhia do colega Paulo Henriques Britto (veja mais abaixo) para descobrir o nome exato em português de uma porcelana branca e azul, mencionada em “Ulysses”. “A gente queria traduzir por um termo que fosse usado no Brasil do início do século 20. É uma coisa banal que deu muito trabalho”, conta. Depois de muita pesquisa nas profundezas da internet, os dois encontraram o nome da pessoa que criou aquele padrão fabricado na Inglaterra e chegaram ao termo “azul pombinho” — coisa que poderia ter sido muito mais simples, já que a mãe de Britto, falecida na época, trabalhava com porcelana. “Em um mundo de acesso à informação, sentimos falta de poder perguntar para uma pessoa.”
O episódio também mostra que “a tradução tem essa coisa do passado, de mexer com vozes mortas”. E o bom trabalho de um tradutor, para Galindo, envolve ouvir atenta e profundamente todas essas vozes. “Uma boa tradução, para mim, é aquela que diagnostica o maior número possível de formas de leitura e reproduz isso. Os textos são múltiplos, polissêmicos, e o trabalho do tradutor é tentar manter todas essas portas abertas.”
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Acervo Pessoal / Isabela Durão Maurício Santana Dias
Do inferno de Dante à Nápoles de Ferrante
No início de março, poucos dias antes do lockdown total da Itália por causa da pandemia, Maurício Santana Dias se despediu dos encontros presenciais em grande estilo. Em Roma, o professor e pesquisador da USP foi convidado para um café pelo escritor Domenico Starnone — talvez mais conhecido aqui no Brasil por ser o “suposto marido de Elena Ferrante”. Tradutor dos dois expoentes da literatura italiana, no entanto, ele considera que o companheiro daquela tarde e o autor dos textos sobre os quais se debruçou por anos não são exatamente a mesma pessoa. “É uma estranha experiência de dissociação, porque a vida vivida não coincide propriamente com a vida escrita.”
De todo modo, a oportunidade de bater papo com um escritor que traduz é oportunidade um pouco rara — sobretudo para Dias, que transpôs para o português clássicos de outras eras, como Dante, Maquiavel, Boccaccio, Leopardi, Pirandello e Lampedusa. Entre eles e a dupla Ferrante e Starnone, viajou pelos tempos de Primo Levi, Pasolini, Cesare Pavese e Italo Calvino. Basicamente, carimbou o bingo da literatura italiana, e é por isso que estava na capital do país no início do ano: para receber o Prêmio Nacional de Tradução do Ministério de Bens Culturais e do Turismo da Itália, angariado pelo conjunto de sua profícua atividade como tradutor.
Se a lista de autores que passaram pelas mãos de Dias é longa, sua estrada na profissão também o é. Desde a graduação em Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro, o baiano passeia por contos, poemas, ensaios e romances em outras línguas. Arriscou-se, além do italiano, pelo francês, o inglês e o espanhol e desde os anos 1990 atua profissionalmente na área. “É um trabalho que me empolga, acho intelectualmente muito estimulante, permite uma infinidade de possibilidades dentro de uma moldura preestabelecida”, diz.
Moldura essa que muitas vezes carrega marcas do tempo — no caso, de outras tantas traduções para o português. Quem verte um clássico enfrenta sempre o dilema e a tentação de espiar o trabalho daqueles que por ali navegaram antes. Dias, porém, resiste. “Evito ao máximo consultar outras edições. No máximo, vejo a tradução para outras línguas. E não por uma pretensão tola de originalidade, de fazer uma tradução supostamente ‘definitiva’, coisa que não existe; mas porque toda tradução literária é uma leitura singular, pela qual o tradutor se responsabiliza integralmente”, defende.
Por outro lado, conhecer a fundo a tradição literária é também vantagem. “Quanto mais tiver lido de uma determinada cultura, época ou escritor, o tradutor estará mais apto a perceber ligações mais ou menos subterrâneas entre as obras e a encontrar soluções, em sua língua, que busquem manter esses laços”, diz Dias. E, mais do que isso, a encontrar correspondências com as referências da própria cultura. “Por exemplo, Machado de Assis e Leopardi e Pirandello ou Graciliano e Natalia Ginzburg e Primo Levi.” Afinal, o grande trunfo da tradução é “não estar nem aqui nem ali, mas transitar na fronteira”.
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Mayara Barbosa / Isabela Durão Lubi Prates
Por mais vozes negras
A história de Lubi Prates com a tradução é também uma história de empoderamento e visibilidade. Longe do esvaziamento de sentido que a banalização dos termos pode ter trazido ao longo dos últimos anos, a poeta, editora e curadora de literatura aliou sua atividade como tradutora às questões racial e de gênero que permearam sua vida em diferentes momentos. Traduzir, então, se tornou quase um ato político: o de dar voz a esses temas e, sobretudo, às autoras e autores que jogam luz sobre eles.
Os primeiros poemas traduzidos por Prates, como exercício de estudo do espanhol, eram de jovens escritoras latino-americanas como Nurit Kasztelan, Jimena Arnolfi e Ingrid Bringas. “Pensando o lugar da mulher na literatura, percebi que pouquíssimas eram traduzidas no Brasil, muito menos as que tinham a minha idade na época e que estavam envolvidas com os mesmos temas que eu”, conta. Desse engajamento, nasceu a editora Nosotros, idealizada por ela e pela também poeta paulistana Carla Kinzo para traduzir e publicar a nova cena da literatura latino-americana.
De uns tempos para cá, no entanto, é a questão racial que tem protagonizado o trabalho de Prates, tanto como poeta quanto como tradutora. A autora de “Um Corpo Negro” (Nosotros, 2018), finalista do prêmio Jabuti, passou a traduzir do inglês a obra de escritores que abordam temas relacionados à negritude. “A partir desse momento, as questões raciais são as mais importantes e urgentes para mim. Saio desse lugar de dar muito mais ênfase para o gênero e passo a dar para a raça, entendendo que a raça é um marcador social que vem primeiro.”
Dar esse passo — o de se dedicar à tradução do inglês, além do espanhol — foi em si um movimento de reconhecimento das questões de raça. “Foi um processo de aceitação, porque eu já estudava há muito tempo, mas não me sentia apta. Isso acaba sendo resultado do racismo internalizado, esse lugar dificílimo de sair e que faz com que a gente questione nosso lugar de saber, de poder, de potencialidade.” Não é à toa que Prates tem escolhido a dedo os autores de língua inglesa que traduz. “Só aceito trabalhar com escritores e livros que me representam de alguma maneira.”
Foi assim que ela se tornou a responsável pela versão em português da “Poesia Completa” (Astral Cultural, 2020) de Maya Angelou. Agora, trabalha em versões nacionais dos escritos de Audre Lorde e Lucille Clifton. Para Prates, é essencial dar aos brasileiros a oportunidade de ler essas norte-americanas. “É de onde vêm as referências mais presentes nos estudos raciais ao longo do século passado e neste século. Como entendo que o idioma pode ser uma barreira para pessoas negras acessarem esse conhecimento, é muito importante poder fazer esse trabalho de formiguinha, trazer esses textos para o Brasil.”
Também por isso, ela avalia que há um longo caminho a ser percorrido em relação ao que se traduz no país. Para além do cânone, defende que as novas vozes da literatura tenham espaço por aqui. “Poucas pessoas jovens são traduzidas no Brasil; existem muitas pessoas traduzindo de maneira independente para revistas, sites e editoras pequenas, mas isso não rompe a bolha”, diz.
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Douglas Machado / Isabela Durão Paulo Henriques Britto
O poeta tradutor dos clássicos
Um dos mais conceituados tradutores do Brasil hoje, Paulo Henriques Britto entrou na área meio sem querer. Depois de morar nos EUA para estudar cinema no início dos anos 1970, ele voltou ao Brasil como professor de inglês e, para conseguir pagar o aluguel quando saiu da casa dos pais, começou a fazer traduções para uma editora. Acabou pegando gosto pela atividade — para a qual, diga-se de passagem, também esbanjava talento — e passou por casas como a Nova Fronteira e a Brasiliense até selar uma relação de mais de 30 anos com a Companhia das Letras, do amigo Luiz Schwarcz.
O que começou como um bico se tornaria a principal atividade de Britto pelo menos até o começo dos anos 2000, quando passou a se dedicar mais à carreira de professor da PUC-RJ do que às traduções. O ritmo frenético da década de 1980, período em que ele chegou a traduzir cinco livros por ano, diminuiu, mas não parou. “Hoje faço um livro, um livro e meio por ano”, diz.
De conta em conta, já soma centenas de títulos traduzidos — não só do português para o inglês, mas também vice-versa — e coleciona uma lista invejável de escritores anglófonos no currículo: Charles Dickens, Lord Byron, Elizabeth Bishop, William Faulkner, James Baldwin, Philip Roth, Nadine Gordimer, Paul Auster e por aí vai. Com Thomas Pynchon, autor de “O Arco-Íris da Gravidade” (Companhia das Letras, 1998), Britto manteve até uma relação pessoal. “É um romance nível James Joyce de dificuldade de traduzir. Conversar com o autor vivo me resolveu problemas que eu não conseguiria resolver sem ele”, conta.
Ao longo de anos lidando com tantos clássicos, o tradutor desenvolveu algumas técnicas que fazem de seu trabalho único. “Para Dickens e sempre que traduzo coisas do século 19, releio José de Alencar, vejo as expressões coloquiais que ele usava. Manter o registro, o vocabulário, a sintaxe é uma ideia interessante.” Não raro, Britto viaja no tempo, mergulhando em textos de séculos passados para checar qual palavra cairia melhor em um ou noutro contexto.
Assim, o exercício de tradução acaba sendo também de escrita. Dono de uma celebrada obra poética que lhe rendeu prêmios como o Portugal Telecom, Paulo Henriques Britto defende que a melhor maneira de aprender a escrever é traduzindo literatura. “Para mim foi uma escola traduzir centenas de livros e aprender a lidar com a língua portuguesa. Traduzir é uma forma de reescrita: aprendi realmente a escrever a partir do momento que comecei a traduzir. Devo muito do que sei fazer em escrita a esses autores”, diz.
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Acervo Pessoal / Isabela Durão Regina Przybycien
Tradutora de uma poeta só
Para Regina Przybycien, filha de imigrantes poloneses, traduzir foi também fazer as pazes com a língua materna. “O desejo de não ser diferente das demais crianças fez com que me rebelasse e não quisesse mais falar o polonês, que permaneceu como traços meio apagados no fundo da memória”, conta. Foi só depois de quarenta anos e de toda uma carreira como professora de inglês e de literatura americana que ela se reconectou com as próprias raízes — agora, profissionalmente. O motivo foi bem digno: Przybycien estava na Cracóvia estudando polonês quando a poeta Wis?awa Szymborska venceu o prêmio Nobel de literatura em 1996.
Ali começou a relação das duas, que faria com que a professora se tornasse “tradutora de uma única poeta” e responsável pela difusão e pelo sucesso de vendas da obra de Szymborska no Brasil. “A professora [do curso de polonês] apresentou dois ou três poemas numa aula, dos quais entendi pouco, pois ainda não sabia ler. Logo em seguida, deparei com uma edição bilíngue polonês-inglês numa livraria. Comprei, comecei a ler e fiquei fascinada com os poemas. Anos depois, quando já havia adquirido um conhecimento razoável da língua, comecei a traduzir os poemas de que mais gostava como passatempo e para praticar”, lembra.
As traduções saíram em revistas literárias antes da reunião nos celebrados “Poemas” (Companhia das Letras, 2011) e “Um Amor Feliz” (Companhia das Letras, 2016) — vencedor do prêmio APCA — e “Para o Meu Coração num Domingo”, que acaba de ser lançado pela mesma editora. “Me decidi a publicar, apesar da insegurança quanto à minha capacidade de traduzir, porque achava uma pena que uma poeta de tal calibre fosse quase desconhecida do público leitor brasileiro. A recepção calorosa do primeiro livro foi uma grande surpresa para mim”, diz Przybycien.
O mérito de suas traduções é recriar, em português, os jogos sonoros e o tom coloquial, irônico e bem humorado que marcam a poesia inconfundível de Szymborska — o que, somado à busca constante pelas correspondências de significado, não é tarefa fácil. “Como as palavras do polonês coloquial são eslavas e as eruditas são latinas, ao traduzir para uma língua latina já corro o risco de elevar o tom”, explica a tradutora. Além disso, ela tenta reproduzir as referências da cultura polonesa frequentemente evocadas pela poeta, adaptando esses elementos para a cultura brasileira ou portuguesa. “Foi assim que um pequeno trecho de uma famosa canção folclórica polonesa, ‘Czerwone jab?uszko przekrojone na krzy?’ (uma maçãzinha vermelha cortada em cruz), se transformou em português, em ‘uma rosa amarela, tão formosa, tão bela’”, conta.
Por lidar com uma língua tão diferente do português e não frequentemente traduzida de forma direta, Przybycien não raro recorre a amigos nativos para evitar gafes. “Na primeira versão de um poema traduzi literalmente o termo ‘konik polny’ por ‘cavalinho campestre’. Descobri logo em seguida que é o nome de um tipo de gafanhoto. Devemos agradecer aos anjos nativos que nos protegem do embaraço de descobrir esses erros (bastante comuns, aliás) na versão publicada.” É verdade, porém, que os leitores brasileiros perdoariam esse pequeno deslize. Afinal, nós é que devemos agradecer Regina Przybycien pela oportunidade de ler a poesia de Wis?awa Szymborska.
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Renato Parada / Isabela Durão Bruna Beber
A dança das vozes
“A sensação é de integrar uma ópera global, e de ser parte do coro (porque intemporal) e do balé (porque mutável) ao mesmo tempo.” É dessa maneira quase poética que a escritora e tradutora Bruna Beber descreve o exercício de transpor os clássicos da língua inglesa para o português. Não foram poucos os que passaram por ela desde que começou a praticar a atividade profissionalmente, em 2013: em seu currículo estão versões de Shakespeare, Lewis Carroll e Dr. Seuss, além de obras de Neil Gaiman e Sylvia Plath.
Embora tenha chegado depois de gerações mais experientes de tradutores que lidaram com os mesmos textos, a carioca não se intimida. Ao contrário, sabe que seu trabalho faz parte de um movimento maior, que se estende pelo tempo e pelo espaço. “A tradução é um ato de generosidade, porque é a tentativa de aumentar a circulação de uma obra. Traduzir clássicos é integrar a soma, aprender com a generosidade de quem traduziu aquela obra anteriormente e de ser generosa com quem vai traduzi-la depois”, diz. Para ela, dar aos leitores uma nova versão de um texto antigo é “uma maneira de dizer: ei, venha buscar abrigo aqui; estive lá por meses a fio, tantos se abrigaram aqui pelos séculos, sempre cabe mais um.”
Autora de um livro infantil e cinco de poesia — entre eles “Rua da Padaria” (Record, 2013) e “Ladainha” (Record, 2017) —, Beber pensa a tradução como “um exercício de voz e de escuta”. “É minha voz tentando operar a tarefa de portar a voz de alguém. O resultado é uma terceira voz, esta às vezes repleta de outras, como num coral”, define. “Busco um modo de me aliar a essa voz, sendo parte dela como num dueto, mas fazendo a segunda voz, a mais baixa, em português. A terceira voz é a que o leitor vai ouvir, ou pelo menos esse é o meu desejo.”
Brincar com o coro sempre foi parte de seu processo criativo: quando começou a publicar sua poesia, em meados dos anos 2000, Beber traduzia poemas em espanhol e em inglês como um exercício. Assim, para ela, escrita e tradução sempre andaram de mãos dadas. “Descobri que a tradução era um modo de leitura circundante, saliente, que galanteava e provocava minha curiosidade. Assim, para um simples verso, às vezes levava semanas de pesquisa, de tentativas e versões, e isso me motivava como leitora e poeta.”
Nesse processo, ter a própria voz reconhecida é uma bandeira que a tradutora levanta, na esteira de veteranos como o poeta José Paulo Paes. “Uma batalha que eu persigo como autora que traduz, e às vezes venço, é a batalha pelo direito autoral. Isso é primordial para nós profissionais da tradução e deveria ser mais reivindicado, sobretudo na tradução de poesia e dos clássicos, mas também em todos os gêneros”, defende.