CV: Aline Bei — Gama Revista
Divulgação/Lorena Dini

CV: Aline Bei

Escritora paulistana cria coreografia com as palavras, em um estilo que leva à literatura inspirações vindas diretamente do teatro

Ana Elisa Faria 21 de Julho de 2022

As palavras escritas por Aline Bei, 34, dançam pelas páginas dos seus livros, em um estilo que, segundo a autora, vem do teatro, arte praticada por ela dos 14 aos 21 anos e que a ajudou a criar intimidade com a literatura.

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“Acredito que o ator tem um vínculo com a escrita: ele inscreve o corpo no espaço, vai se apropriando do que é dito e encontra espaço no que é dito dentro do corpo para expandir”, explica.

Foi, no entanto, na faculdade de letras, cursada na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), que Aline começou a enxergar a escrita como algo palpável. Mesmo assim, já escrevendo, ela ainda não se via como escritora. Apenas depois de uma oficina com Marcelino Freire, em 2016, que, enfim, conseguiu se apropriar da palavra e do ofício de fato.

No ano seguinte, lançou, então, o primeiro livro, “O Peso do Pássaro Morto” (Nós, 2017), que acompanha uma mulher, dos 8 aos 52, por meio de acontecimentos banais do dia a dia até grandes tragédias da vida. Pela obra, Aline recebeu o Prêmio São Paulo de Literatura. O segundo romance, “Pequena Coreografia do Adeus” (Companhia das Letras, 2021), apresenta a relação conflituosa e triste entre pai, mãe e filha.

A escritora paulistana comenta que a literatura feita por mulheres tem vivido um bom momento no Brasil, com mais autoras sendo publicadas, mas adverte que essa deve ser uma onda contínua.

Na entrevista abaixo, Aline Bei fala à Gama sobre teatro, literatura, mentores, rotina de escrita e mulheres no mercado literário.

As mulheres sempre escreveram muito, mas é importante que elas publiquem cada vez mais

  • G |O que a fez chegar até aqui?

    Aline Bei |

    O teatro. Ter feito teatro me aproximou muito dos livros. Eu sempre li, mas o teatro me ajudou a criar uma intimidade com a literatura, até o ponto em que eu quis transformar essa proximidade na própria escrita. Acredito, ainda, que o ator tem um vínculo com a escrita, ele inscreve o corpo no espaço, vai se apropriando do que é dito, encontra espaço no que é dito dentro do corpo para expandir. Escrever vem desse exercício. Cheguei até aqui porque fiz teatro e também porque deixei de fazer, o que abriu espaço para eu me encontrar em outras formas de troca e criação.

  • G |Como você migrou do teatro para a literatura?

    AB |

    Fiz teatro dos 14 aos 21 anos. Depois, cursei letras e, na faculdade, comecei a escrever. Antes de começar a escrever, no entanto, eu tive um momento de não saber exatamente o que ia fazer da vida. A escrita não tinha aparecido ainda como uma proposta de criação, mas fui estudar letras justamente pela intimidade com os livros, que foi se aprofundando. A escrita foi surgindo do coletivo da própria universidade, do entorno, dos alunos que escreviam, que eram poetas, e que se tornaram pessoas próximas. Assim, a escrita se tornou algo mais palpável também para mim, e comecei os meus próprios exercícios e algumas tentativas com as palavras.

  • G |Você tem vontade de voltar ao teatro?

    AB |

    De alguma forma, ao escrever, eu acabo voltando ao teatro. Me sinto plena escrevendo, então, acho que se algum dia acontecer de eu voltar aos palcos, será para um projeto muito específico. Mas não é uma coisa que, neste momento, me toma. Mas o teatro é o centro de tudo, ele, simbolicamente, está em tudo o que eu faço.

  • G |Qual é a sua missão com a literatura?

    AB |

    Penso que vou descobrir a minha missão no decorrer da vida, durante a feitura dos trabalhos. Há uma amplidão de vozes que vão permeando os meus livros, e acho que vou descobrindo a cada livro, a cada texto, o porquê e para quem eu escrevo. Nesses anos de autora publicada, sinto um desejo inesgotável de escrita, que passa primeiro pelas minhas necessidades de criar como pessoa no mundo e, depois, por um desejo de me comunicar com outras pessoas de uma forma profunda. A escrita e a arte viabilizam essa comunicação que a fala e a oralidade geralmente não dão conta.

Vou descobrindo a cada livro, a cada texto, o porquê e para quem eu escrevo

  • G |Quais são os grandes desafios do seu ofício?

    AB |

    O que me vem à cabeça é a própria folha [de papel, em branco], é a imensidão da língua, da linguagem, e a dificuldade que todo escritor tem diante da liberdade imensa que a língua e a folha propõem. A folha é um espaço de criação que acolhe a proposta e também encontra muitos silêncios. Os meus desafios estão muito conectados com o silêncio da página, com as correntes da linguagem e o que eu posso construir a partir da palavra fragmentada, que se rompe a todo momento. Esse é o meu primeiro desafio, meu maior desafio, e o que me mantém escrevendo.

  • G |Você fala bastante sobre a importância da folha. Como é a sua? De papel, num caderno, ou digital, no computador?

    AB |

    Tenho fases. Os primeiros momentos de escrita são feitos no caderno. Quando o livro vai ganhando uma materialidade, eu começo a ir para o computador. Isso não significa, porém, que vai haver uma passagem de conteúdo. Muitas vezes, o que está no caderno fica ali e quando vou para a folha digital do computador, mais simbólica, vou com a memória do que foi escrito no papel. Não transcrevo nada, mas vou descobrindo uma outra forma de fazer e encontrando o livro, até que ele se transforme finalmente no próprio livro, que também é uma outra folha. São muitas folhas, mas todas dialogam com o palco, eu acho.

  • G |Qual é a sua rotina de escrita?

    AB |

    Quando um livro está nascendo, costumo trabalhar nas primeiras horas do dia, que, para mim, são as melhores para a criação. Essa rotina, essas manhãs de criação, podem se estender por anos. A partir do momento que o livro está mais sólido, fortalecido, já nas últimas versões, ou na última, aí o trabalho se estende pelo dia todo, mas é quase uma edição do próprio texto do que a escrita mesmo. Não é mais o levantar do chão, digamos assim, como o livro do Saramago diz [“Levantado do Chão” (1980, Companhia das Letras)]. Esse levantar do chão seria mesmo pelas manhãs, antes do almoço, antes de eu almoçar, na verdade, porque o almoço, às vezes, também vai perdendo a hora, pode ser às 14h, às 15h, é bem adaptável.

  • G |Você teve algum mentor ou alguma mentora na carreira?

    AB |

    O Marcelino Freire. Fiz duas oficinas de escrita com ele, uma em 2015 e outra em 2016. Na última, inclusive, eu criei o meu primeiro livro, “O Peso do Pássaro Morto”. Ter conhecido o Marcelino mudou a minha relação com a minha própria escrita, me fez confiar mais no processo, entender várias coisas, conhecer novos autores e ficar mais à vontade com a palavra escritora. Consegui me apropriar dela e dizer “eu sou escritora” também para fora, e não só para dentro, para mim. Além disso, admiro bastante o que ele escreve, é uma literatura com uma oralidade teatral impressionante, um ritmo, com assuntos sempre urgentes e que também são tratados de forma urgente na folha. Amo o trabalho do Marcelino, a pessoa que ele é e o jeito com que ele encara a literatura. O Marcelino, para mim, é um mestre.

  • G |Recentemente, o escritor moçambicano Mia Couto fez um elogio ao seu trabalho, dizendo que foi atravessado pela sua escrita. Qual é a sensação de ser reconhecida por um grande nome da literatura?

    AB |

    Eu o conheci pessoalmente há pouco tempo, no início de junho, no SALIPI, o Salão do Livro do Piauí. O Mia é muito simpático, generoso também, e acabei deixando os meus livros com ele. Depois nos encontramos mais uma vez e conversamos. Foi uma alegria imensa poder encontrar um grande autor como ele. Um grande autor que sabe olhar para os autores que estão começando, que tem um olhar generoso para a cena literária, é atento, quer saber o que está acontecendo ao redor, tem sensibilidade. Foi maravilhoso conhecê-lo, uma grande emoção e, depois, quando assisti ao vídeo em que ele fala de mim, fiquei profundamente emocionada. Ele também citou outros escritores, como o Jeferson Tenório, o Itamar Vieira Junior e o Julián Fuks, que são autores que eu também aprecio e estão sempre na minha biblioteca.

  • G |O que é preciso fazer para se tornar uma boa escritora?

    AB |

    É uma construção diária. Sempre estamos construindo a melhor presença possível diante das folhas e diante do mundo também porque eu acho que a escrita não é só o ato de escrever, ela é um estado, e é um estado que a gente tem que buscar como artista. Para mim, esse estado tem muito a ver com a presença. O artista tem que estar vivo duplamente, nas suas ações diárias e na observação de si e do mundo, pois nos alimentamos do nosso próprio corpo, das memórias e das coisas que vamos absorvendo e aprendendo no mundo. Então, é preciso estar atento e ser poroso para guardar tudo o que a gente descobre e, depois, acessar essas gavetas para utilizá-las na hora do trabalho.

A escrita não é só o ato de escrever, ela é um estado, e é um estado que a gente tem que buscar como artista

  • G |O mercado literário é machista, como muitos outros?

    AB |

    Estamos vivendo um momento em que o cenário tem se modificado e as escritoras têm sido mais publicadas. Estamos sendo mais publicadas, inclusive, por mulheres editoras, revisoras e preparadoras de texto. Pessoalmente, toda essa rede tem sido muito acolhedora desde que eu comecei a publicar. Penso também que as poetas vêm trazendo essa mudança, de dez anos para cá. Elas têm aberto as portas para a gente da prosa, ainda que a minha prosa seja muito atravessada pela poesia, mas poetas como Angélica Freitas e Ana Martins Marques vêm trazendo um espaço mais sensível para as outras escritoras adentrarem. Eu fico muito feliz de estar produzindo agora, nesse momento, sendo editada por mulheres na Companhia das Letras, tendo sido editada por uma mulher, a Simone Paulino, na Nós. Encontrar essas parcerias e reverberações é fundamental. As mulheres sempre escreveram muito, mas é importante que elas publiquem cada vez mais os seus escritos, se fortaleçam e estejam sempre frequentando o meio, tentando transformar esse cenário machista que, sem dúvida, é, num lugar mais diverso para todes que quiserem escrever.

  • G |No último mês de junho, cerca de 400 autoras se reuniram no Pacaembu, em São Paulo, para uma foto histórica só de mulheres escritoras. Você esteve lá? Qual é a importância de eventos como esse?

    AB |

    Infelizmente, não pude ir por conta de um problema pessoal, mas acompanhei de casa pelas redes sociais. Fiquei muito feliz e me senti profundamente representada naquele ato. Havia muitas escritoras que admiro carregando também fotos e mensagens de outras autoras. Foi um movimento que se expandiu pelo Brasil e até pelo mundo. Acho que isso é tão bonito, e é importante saber que mesmo quando não podemos estar presentes fisicamente, haverá uma outra escritora maravilhosa reverberando ali a nossa presença de alguma forma. Acredito muito no quanto a gente carrega do outro em nós.

  • G |Você está escrevendo no momento?

    AB |

    Sim, estou escrevendo o meu terceiro livro agora. Estou nesse processo de escrita desde o ano passado. Em 2021, iniciei uma imersão em pesquisas e este ano comecei a escrever mesmo. Também estou fazendo uma pós-graduação em escritas performáticas na PUC-RJ [Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro], curso que tem me ajudado a aprofundar algumas questões e a iluminar certos pontos do trabalho. Está sendo maravilhoso, um processo coletivo também, como foi o meu primeiro livro.

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