O lugar do risco na filantropia
Um ecossistema que incentive projetos capazes de assumir riscos é o caminho para a inovação necessária no setor, dizem especialistas
Não é novidade que o Brasil precisa lidar diariamente com uma série de questões sociais, raciais e ambientais profundas, que fazem parte da própria construção histórica do país. Dos desafios cada vez mais frequentes relacionados às mudanças climáticas, como as enchentes de abril no Rio Grande do Sul, aos constantes impactos das nossas desigualdades — tanto sociais quanto raciais —, são problemas que demandam respostas amplas e constantes. E com os quais a filantropia precisa lidar todos os dias, muitas vezes em meio a uma falta crônica de recursos.
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Nesse cenário complexo, onde fica o espaço para inovar, assumir riscos e trazer novos temas à mesa, tão necessários para o avanço do setor? Afinal, num país com tantas urgências, há tempo para a filantropia pensar em novas práticas e atuar em campos não tradicionais, mas que se mostram cada vez mais relevantes? Além disso, a filantropia depende largamente de doações e do apoio de indivíduos e instituições privadas e públicas. Mas será que existem maneiras de repensar esse equilíbrio de poder, entre quem aporta e quem recebe recursos, de forma a criar organizações com mais autonomia e novas possibilidades de transformar a sociedade?
Para o historiador e cientista político Atila Roque, diretor da Fundação Ford no Brasil, toda ação social em um país com tantas desigualdades precisa se equilibrar entre aquilo que aprendemos com as experiências passadas e a necessidade de experimentar em territórios pouco navegados. “Estar preparado, portanto, para permitir um grau de invasão do desconhecido, do novo ou daquilo sobre o que você não tem controle é fundamental”, declara.
Significa também financiar processos, atores e ideias cujo resultado não é certo, diz o diretor da organização que apoia no Brasil iniciativas de combate a desigualdades nas áreas de direitos humanos e justiça racial, entre outras. “É ajudar mais e atrapalhar menos”, continua Roque, para quem entrar com a cabeça muito fechada nesse universo pode fazer com que a filantropia acabe permanecendo estacionada num mesmo lugar.
O tema também ficou no centro da discussão no Filantropando, evento sobre o futuro do setor, realizado pelo Instituto Beja em novembro. “Criar espaços para experimentos de risco é a única forma de ter resultados melhores no futuro. E só um investimento dos nossos conselhos [consultivos] e filantropos pode fazer isso acontecer”, reforçou o ex-ministro da Educação da República Tcheca e diretor regional da Europa na Porticus, Ondřej Liška, durante os debates.
No caso da filantropia, os riscos podem tomar uma série de formas, desde apoiar uma organização de ponta até investir em projetos que sejam bastante inovadores dentro do ecossistema atual. Porém, essas ações ainda são raras. “A filantropia é o setor que mais pode e deve arriscar. Mas infelizmente, com algumas exceções, ela arrisca muito pouco”, declara a socióloga e filantropa Neca Setubal, presidente da Fundação Tide Setubal. “O risco leva à inovação, e acho que a filantropia tem maiores condições de inovar.”
A filantropa dá como exemplo de projeto que assume riscos as ações que a Fundação Tide Setubal vem promovendo no Jardim Lapena, bairro da zona leste de São Paulo, em parceria com o Insper. São intervenções paralelas em diversas áreas, como educação, cultura e planejamento urbano. “O risco é focar em várias coisas ao mesmo tempo. A hipótese é que não adianta você intervir num setor só, tem que ser uma intervenção integrada no território como um todo”, conta Setubal. Para monitorar o impacto, a organização tem feito uma coleta de dados a cada dois anos na região.
Não adianta intervir num setor só, tem que ser uma intervenção integrada no território como um todo
De acordo com a presidente do Instituto Beja, Cristiane Sultani, hoje os principais desafios para que o setor pense de forma mais inovadora têm sido a ênfase em resultados concretos e imediatos, muitas vezes improváveis de se alcançar e, do lado de quem apoia a filantropia, a preocupação em ter a imagem associada a determinadas organizações e temas. “Para ONGs que existem há mais tempo, seus indicadores já podem gerar uma relação maior de confiança. Mas, em projetos mais novos, a exigência é muito maior”, afirma. Até por esses fatores, aponta Sultani, é muito mais comum que um filantropo doe a um projeto específico, com começo, meio e fim, do que, de forma mais geral, para o desenvolvimento de uma instituição.
No entanto, assim como no mundo dos negócios, apostar em novos caminhos significa assumir riscos, mas também abrir a porta para retornos igualmente importantes, na forma de impactos sociais maiores, inovações para o setor e uma melhor percepção sobre áreas que até então não eram prioridade. Mesmo quando os resultados não são como o esperado, essas respostas ainda podem chegar em forma de aprendizado e lições cruciais para a criação de projetos mais eficazes no futuro.
Na visão da presidente do Instituto Beja, ainda falta um apoio mais flexível, que leve em conta os percalços inevitáveis do caminho e as necessárias apostas em tecnologia e inovação. “O capital não está indo para essas áreas porque tem pouca gente assumindo riscos.”
Na visão do pesquisador e consultor em cultura, estratégia e impacto social Rogério Silva, sócio da Pacto Organizações Regenerativas, o risco precisa estar no DNA da filantropia para de fato operar mudanças em um país como o Brasil. E esse risco pode estar na própria causa com a qual uma organização escolhe trabalhar, diz o especialista, que também é doutor em saúde pública.
“Quando, por exemplo, você vai para o campo mais difuso dos direitos humanos, no qual há uma disputa de direitos”, exemplifica. Ou seja, questões como o direito a condições dignas para a população carcerária, os direitos das mulheres — que podem implicar em temas polêmicos como o aborto —, direitos raciais e de identidade de gênero ainda encontram forte oposição na sociedade, afirma o pesquisador. “Esses riscos são os mais elevados”, considera Silva. “Poucas organizações investem neles, mas são muito importantes sobretudo num ambiente, como é o Brasil atual, em que os governos estão impedidos de correr risco pela correlação de forças, tanto com o legislativo quanto com a opinião pública.”
Longo prazo
A organização internacional Open Society Foundations atua num tema que poderia entrar nessa lista de “questões de risco”: a defesa e fortalecimento da democracia. “Eu acho que se encaixa nesse espaço de arriscar e criar coisas novas, porque muitos dos problemas partem de um sentimento de que a democracia não está atendendo às demandas”, declara Heloísa Griggs, diretora da instituição para a América Latina e Caribe. “Então, sair dessa situação passa por pensar novas respostas dessa democracia, que reagem a um contexto muito diferente.”
Para ela, isso implica tratar o tema muito além do processo eleitoral, já que democracia também é sobre saúde, educação, emprego, redução das desigualdades e até crise climática. Porém, para reimaginar esses processos, Griggs defende que é preciso ir além dos resultados imediatos, criando espaços para pensar e agir a médio e longo prazo, em infraestrutura, o que exige uma maior flexibilidade também de quem apoia o tema.
O risco precisa estar no DNA da filantropia para de fato operar mudanças em um país como o Brasil
Inclusive, segundo ela, é esse formato que a organização tem assumido na hora de apoiar iniciativas e grupos locais. “No esforço de transformar as estratégias da Open Society, com apoios mais longos e amplos, tem sido muito importante a capacidade de olhar e entender que as metas e o trabalho tomam diferentes dimensões”, explica.
Segundo o especialista Rogério Silva, a filantropia acaba sendo um dos campos com maior liberdade estratégica em potencial para correr riscos, já que tem também um capital mais livre, podendo arriscar, inovar e cometer erros — ao contrário de governos ou empresas privadas. Porém, o setor sofre com as limitações ligadas aos recursos disponibilizados para esses projetos.
“Dentre os diferentes blocos da filantropia, as empresas são aquelas que tendem a correr menos risco, porque têm muitos limites para associar a marca. E os fundos públicos vão estar muito mais associados a uma lógica de prestação de serviços, como na educação”, ele aponta.
A medida do impacto
Não faltam exemplos na filantropia de indivíduos e organizações que toparam assumir projetos em águas ainda pouco exploradas. Um dos mais conhecidos é o da ativista e filantropa norte-americana Mackenzie Scott, que tem doado bilhões de dólares num apoio estratégico ao trabalho de diversas organizações pelo mundo — muitas delas aqui no Brasil. Outro caso emblemático e ainda mais inovador é o da austríaca Marlene Engelhorn, que reuniu um grupo de 50 pessoas para definir o destino de grande parte da fortuna que recebeu da avó. No fim, o valor será doado para organizações que tratam de causas variadas, como educação, saúde, habitação e meio ambiente.
No entanto, o sócio e diretor de sustentabilidade na gestora de investimentos Régia Capital, José Pugas, reforça que, no caso do apoio privado, a dimensão filantrópica e o investimento social podem acabar adotando a lógica de construção da competitividade e resiliência de um negócio. “Quando isso cresce no core das empresas, tenho a necessidade de saber onde investir da forma mais eficiente. E aí, a quantificação, a mensuração se torna uma obrigatoriedade“, declara.
A filantropia acaba sendo um dos campos com maior liberdade estratégica em potencial para correr riscos
Então, se no começo essa relação era marcada por uma desconfiança corporativa em relação aos projetos sociais, hoje ela se baseia muito mais em indicadores de performance, conta Pugas. E ele considera natural que as empresas evitem se associar a certos temas e optem por organizações e projetos mais conhecidos, dando preferência a causas com maior apelo para elas
Embora muitas organizações estejam desenvolvendo mecanismos próprios para isso, mensurar o impacto de ações sociais ou ambientais, por exemplo, raramente é tarefa simples, indica Rogério Silva, do Pacto Organizações Regenerativas. Primeiro porque a maioria dos impactos acontece de médio a longo prazo, e segundo, porque eles são difíceis de gerenciar. Silva dá como exemplo o caso de uma instituição que trabalhe para reduzir a mortalidade infantil.
“Não vai ser suficiente apenas melhorar o pré-natal ou ter um bom atendimento ou dar acesso ao parto normal e humanizado ou ampliar a cobertura vacinal ou melhorar a renda da família”, sugere Silva. Pelo contrário, segundo ele, seria necessária a união de todos esses fatores, já que o problema é causado por uma série de motivos diversos.
No caso da Fundação Ford, Atila Roque reforça o fato de lidar com processos estruturantes da sociedade, que não se resolvem de um dia para o outro. Por isso, costuma apostar com frequência numa leitura de progresso e avaliação de impacto que englobe diferentes setores. Porém, até mesmo em questões que contam com um volume maior de dados, como a demarcação de terras indígenas, é preciso tomar cuidado. “O que você não deve fazer é tentar atribuir esse progresso só à sua ação”, alerta. “Esse é o complicador quando você opera em contexto de desigualdades complexas e múltiplas.”
Por se tratarem de objetivos complexos e que demandam tempo, um dos maiores obstáculos é que ainda “é difícil ter um capital que seja paciente para essas transformações a longo prazo”, diz Silva. O que muitas organizações já estão fazendo, ele completa, é planejar percursos com resultados a curto, médio e longo prazo. “À medida que esse percurso fica mais visível, permite um monitoramento e uma avaliação adequados para cada etapa da transformação. E ajuda os atores a terem mais paciência com o processo de mudança”, conclui o especialista, que defende um olhar que se divida de forma mais equilibrada entre os resultados concretos e a própria qualidade da implementação dessas mudanças.
A arte de comunicar
Ainda segundo Atila Roque, um ponto positivo é que hoje os atores sociais em geral têm muito mais consciência sobre os processos filantrópicos, o que permite uma maior compreensão de todos os lados. “Mas por muito tempo isso gerou um estreitamento de visão”, afirma. “Antes a filantropia de resultados era uma ideologia tão forte que acabava restringindo a ação ao ponto da quase insignificância.”
Entretanto, há uma outra área em que a filantropia poderia concentrar mais esforços: na prática de comunicar melhor, seja aos doadores, apoiadores públicos e privados ou à sociedade em geral, informando desde as dimensões dos desafios socioambientais até os principais resultados das ações filantrópicas em movimento, aponta a diretora da Open Society Foundations, Heloísa Griggs.
“Em muitos sentidos, a comunicação tem sido vista quase como uma parte adicional lá no final”, afirma. Pelo contrário, ela defende que informar de maneira clara e compreensível deve estar integrado aos projetos sociais desde o início, abarcando novos olhares e novas plataformas de maneira que a comunicação chegue a ainda mais gente. “Nosso trabalho se insere na área da cultura democrática, que envolve interagir, entender, possibilitar e apoiar esses novos esforços e plataformas de comunicação, para que sejam espaços mais democráticos.”
A área da cultura democrática envolve interagir, entender, possibilitar e apoiar novos esforços e plataformas de comunicação, para que sejam espaços mais democráticos
Para Neca Setubal, também existe um outro lado: algumas pessoas têm dificuldade ou não querem entender a complexidade de problemas como, por exemplo, a crise climática. Até porque a solução envolve uma série de mudanças e adaptações para as quais muitos preferem fechar os olhos. “Tem que mudar comportamentos, fazer uma transição energética, o desmatamento zero, diminuir a pecuária…”, enumera.
Este conteúdo é parte de uma série especial produzida com apoio do Instituto Beja, que atua para promover o impacto positivo no campo da filantropia fomentando a inovação, colaboração, eficácia e engajamento da sociedade civil, do setor privado e do governo para resolução de problemas sistêmicos.
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