“Rasgaram as minhas roupas, cuspiram na minha cara”
Juliana Giordano, ginecologista e obstetra, relembra violências e abusos que sofreu na época da faculdade de medicina
Uma onda de relatos sobre violências e abusos no universo das faculdades de medicina, que inclui também jogos universitários e festas, vieram à tona nos últimos dias depois da publicação, no domingo (17), de um vídeo que mostra estudantes seminus simulando uma espécie de masturbação coletiva durante um jogo de vôlei feminino num campeonato entre universidades em São Carlos, no interior paulista.
O episódio viralizou neste mês de setembro, mas ocorreu em abril e envolve alunos do curso de medicina que faziam parte do time de futsal da Universidade Santo Amaro (Unisa) — sete deles já foram identificados e expulsos da instituição.
Com a exposição do caso, que chocou sobretudo quem não convive no meio médico, muitos profissionais da área, estudantes e ex-estudantes da disciplina, foram às redes sociais para compartilhar vivências similares à situação que envolve a Unisa.
Formada pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), Juliana Giordano, 42, ginecologista e obstetra, cofundadora da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras, relembrou experiências violentas dos tempos de faculdade. Ela relatou uma dessas experiências a Gama.
Violências na faculdade
“Está sendo bem doloroso remexer nisso, mas os últimos acontecimentos foram um gatilho. Não tive como não acessar a minha história com toda essa publicização do caso dos estudantes de medicina da Unisa. De certa forma, senti até um alívio de ver essa situação exposta porque esse é um tema urgente. Não foi um caso isolado. Na verdade, para nós, médicas e médicos, esses acontecimentos, sejam em jogos universitários ou em festas, são meio banais. Era assim e, pelo que vejo, continua assim. Foi com a Unisa, mas poderia ter sido com a Unicamp, com a USP. A violência está posta, instituída dentro das faculdades. A educação médica é muito violenta. Você tem que ser muito forte para conseguir um diploma médico. Mulher, médica então, nem se fale. Todas passam por muitas violências físicas e psicológicas. Não só por vivenciarem, mas por testemunharem as violências, os abusos no tratamento das pacientes. As atléticas, por exemplo, são ambientes muito insalubres que refletem toda essa situação. Existe ainda uma ligação entre os chefes de departamento com as atléticas. Há uma hierarquia, um status. Achava isso péssimo no meu tempo, e sei que existe até hoje. Inclusive, eu quase fui expulsa da residência por não ficar quieta.”
A violência está posta, instituída dentro das faculdades. Você tem que ser muito forte para conseguir um diploma médico. Mulher, médica então, nem se fale
“Foi um período bem sofrido da vida, mas falar é a minha bandeira também. A minha causa é importante. Por isso, acho fundamental dizer que falo não só sobre a minha história, não só sobre a história dos caras que baixaram as calças no jogo de vôlei e se masturbaram coletivamente, mas sobre coisas que acontecem o tempo inteiro nesse meio. É assim a formação médica dos semideuses, deuses brancos, ricos, machos e héteros; é muito classista, misógina, homofóbica, gordofóbica. Tanto que o lugar mais difícil de expor essa história foi no grupo de WhatsApp da minha turma de faculdade da Unicamp porque, teoricamente, eram as pessoas que tinham que me acolher naquele momento e cheguei a receber mensagens escrotas, me questionando, mas também recebi o carinho de muita gente. Eu nem relacionava tanto essa história à minha luta contra a violência obstétrica, a violência contra as mulheres. Nunca tinha feito essa associação. Mas é doido que faz parecer até meio óbvio o caminho que eu segui.”
Santa Rita do Passa Quatro, 2005
“Meu caso ocorreu em Santa Rita do Passa Quatro, em 2005, quando eu tinha 24 anos e estava no sexto ano, o último da faculdade. Eu era jogadora do time de vôlei, estava no Intermed feliz porque tínhamos acabado de ser campeãs. Apesar das orientações para as meninas nunca ficarem sozinhas assistindo aos outros jogos vestindo a camiseta da faculdade, eu achava bobagem e fiquei ali vendo as outras partidas. Até que fui reconhecida pelos alunos da PUC-Campinas. Estar ali com a camiseta da Unicamp foi uma atitude vista como uma provocação porque as duas universidades sempre tiveram uma rixa enorme. Além disso, uma mulher não pode ficar sozinha em jogos universitários da medicina. Então, eles me arrastaram para fora do ginásio, rasgaram as minhas roupas, os meus documentos, cuspiram na minha cara. Me xingaram de coisas como morfética, diziam que eu iria morrer. Eles estavam claramente alterados. Eu tentei permanecer calma e falei o nome de algumas colegas da PUCCAMP. Por coincidência, aqueles rapazes também eram do sexto ano e conheciam as meninas que eu citei. Na época, ter amizade com pessoas da PUCCAMP eu sendo da Unicamp era muito raro, tamanha a rixa, mas eu tinha essa feliz coincidência naquele momento, de conhecer algumas mulheres da turma deles. Um deles, que estava menos alterado, falou: ‘Não, ela é amiga da Ciça, deixa ela para lá, vamos embora, deixa pra lá’. E, assim, me largaram com a roupa rasgada e saíram.”
Eles me arrastaram para fora do ginásio, rasgaram as minhas roupas, os meus documentos, cuspiram na minha cara. Me xingaram
Relato para a turma de faculdade
“Quando eu fiz esse relato no WhatsApp da minha turma de faculdade, algumas pessoas disseram que se lembravam daquele dia, do que havia acontecido. Inclusive, no meio dessas mensagens, uma colega falou que foi à delegacia comigo na época — e eu nem lembrava que cheguei a ir à delegacia. Realmente, apaguei muita coisa do que aconteceu e agora tudo está voltando. Das 110 pessoas do grupo, umas dez vieram falar comigo, o que foi importante; recebi certo acolhimento. Mas teve uma colega que me questionou no privado perguntando o que eu havia feito para merecer o cuspe naquela situação — ou seja, culpabilizou a vítima. Ela também disse que achava absurda a expulsão dos meninos da Unisa.”
Formação mais humanista
“São muitas as violências que a gente engole, que a gente presencia, que a gente sofre durante a formação médica para conseguir o diploma. A gente percebe, por exemplo, ao ver que, na situação da Unisa, as meninas continuaram jogando mesmo com toda aquela situação acontecendo. Aquilo ali já é um modo de sobrevivência. Algumas pessoas até questionaram as garotas, o que é um absurdo. A faculdade deixa marcas muito fortes, os jogos universitários também. Tanto que muitas meninas que gostam de esporte, que são boas, não ficam nesse meio porque é muito violento mesmo. Eu sempre senti que era mais importante participar, que a violência pesada compensava porque o esporte me fazia bem, era uma válvula de escape da faculdade.”
O principal é a formação médica. É aprender a lidar com questões de gênero, raça, classe, orientação sexual. Isso precisa fazer parte do currículo médico para ontem
“Enfim, acho que todas essas situações deveriam ser abordadas nas disciplinas, na graduação. As denúncias deveriam ser mais bem investigadas. O principal, porém, é a formação médica. É aprender a lidar com questões de gênero, raça, classe, orientação sexual. Isso precisa fazer parte do currículo médico para ontem. É preciso tirar estudantes e médicos, depois, desse lugar, do pedestal de semideuses, do discurso de que ‘você é um deus, você pode tudo, você é inalcançável, inatingível’. Por isso, é necessária uma humanização institucional para combater isso, combater o bullying. E uma educação médica de qualidade também passa por mais mulheres nas chefias, por vontade política de mudar; como tudo, parte de uma mudança maior que, talvez, venha de uma pressão de baixo para cima mesmo, dos próprios alunos, das próprias alunas. Quando eu fiz o meu relato [no Instagram], muitas estudantes de medicina apareceram lá falando que continua do mesmo jeito. Mas toda essa cobrança da sociedade já ajuda bastante porque bastante gente não fazia ideia que comportamentos como aqueles eram banais no meio universitário médico. Então, acho que a pressão que as mídias sociais fazem tem um lado muito positivo.”