Como estou aprendendo a viver (quase) sem olfato pós-covid
O depoimento de alguém que era quase um cão farejador e agora tenta entender que talvez não volte a sentir cheiros como antes
Um mês antes de receber a minha primeira dose da vacina, um dos meus filhos volta da casa do pai com uma febre esquisita. O resultado do PCR rápido de farmácia indica covid-19. No hospital, outro PCR com resultado no dia seguinte confirma o diagnóstico.
Fiquei em casa com os meus filhos, gêmeos de 7 anos, isolados até do meu ex-marido, parte do grupo de risco. Foi um período de viver um dia de cada vez e administrar sozinha a febrica das crianças (sim, os dois pegaram), minha própria covid (sim, eu peguei), a casa, a faxina, a comida e, o pior de tudo, a gigantesca ansiedade que acompanha o dia a dia de quem está com uma doença pouco conhecida e que oferece inúmeras consequências que não somos capazes de prever.
A anosmia é uma condição comum para pessoas infectadas com o coronavírus. Aparece em 86% dos casos
No oitavo dia, depois de uma onda de exaustão e um cochilo reparador, notei algo diferente: não sentia mais nenhum cheiro. Ou gosto. Nada de nada. Cheiro de nada. Gosto de nada.
A anosmia é uma condição comum para pessoas infectadas com o coronavírus. Aparece em 86% dos casos, segundo pesquisas. Ainda não se tem certeza de porque ela ocorre, um estudo de pesquisadores franceses sugere que o coronavírus pode infectar os centros do nervo olfativo no cérebro e provocar uma inflamação persistente, o que causa a perda da capacidade de sentir cheiros.
Claro que, dado o contexto da covid no Brasil de 2021, perder olfato e paladar como quase único sintoma é algo a se comemorar. Ainda assim é algo muito desagradável. Muito mesmo.
Meus dias passaram a ser uma alternância entre dois estados de humor: mau humor por sentir fome e mau humor ainda maior por tentar comer algo com cheiro e gosto de nada. Deve ter a ver com o fato de eu ser taurina.
Investi no sal, porque sentia o salgado nas papilas gustativas e aquela sensação me fazia ter uma parca ideia de que estava me alimentando. De doce, eu desisti cedo: minha única tentativa (um macaron que meu namorado deixou na portaria) me demonstrou que aquilo não servia para me deixar minimamente menos mal-humorada.
Passei a ser uma grande fungadora de tudo o que poderia ter um aroma forte: café, perfume, curry, axila de filho. Nada surtia efeito
Fiquei obcecada pela pesquisa sobre a anosmia — quanto tempo pode durar, o que fazer para sobreviver a essa não-sensação, como recuperar o olfato perdido. Achei um food stylist que escreveu sobre como encontrou prazer em se alimentar com anosmia — eu não dou conta das pessoas que se edificam na desgraça; acho lindo, mas não serve pra mim. Achei também as indicações de terapia olfativa que podem ajudar a melhorar a condição. E esbarrei em algumas ideias de sabores que poderiam me ajudar a sentir algo.
Passei a ser uma grande fungadora de tudo o que aparecia na frente que poderia ter um aroma forte: café, perfume, curry, axila de filho. Nada surtia efeito.
Minha amiga me perguntou se gostei da comida congelada que ela indicou e que comprei para sobreviver à segunda semana de isolamento. Respondi fazendo a Glória: “Não sou capaz de opinar”. Vários amigos deixaram doces na portaria para nos mimar durante nosso período confinado. Meus filhos se deliciaram; eu já nem tentava mais provar.
No fim do período de isolamento, uma semana anósmica, meu ex-marido foi nos reencontrar com uma feijoada para o almoço. Pressentindo o gosto de nada que sentiria, investi na pimenta. Parece que pessoas com anosmia são mais tolerantes à pimenta. Descobri que a sensação de comer algo picante, na verdade, não tem a ver com o sabor, mas trata-se de uma resposta do corpo à dor. Pois essa sensação mais tátil que gustativa fez com que me sentisse comendo de fato pela primeira vez em uma semana.
Ao ler para os filhos, um deles soltou um pum. Eu senti. Ele pediu desculpas. Eu agradeci e vibrei. Pedi para ele soltar mais unzinho, mas não rolou
No dia seguinte, ele voltou para cozinhar para nós. A receita envolvia um bacon frito no azeite. E eu senti aquele cheiro. Dei pulos de alegria, chorei de emoção, todos nos abraçamos. Achei que tudo estava resolvido. Mas aquele foi o único cheiro que senti naquele dia.
Na noite seguinte, lendo para os filhos, um deles soltou um pum. Eu senti. Ele pediu desculpas. Eu agradeci e vibrei. Pedi para ele soltar mais unzinho, mas não rolou.
Depois das duas semanas de isolamento total, a vida voltou ao normal, novo normal, qualquer coisa que seja mais normal nesse nosso mundo atual. Agora, vai achar um normal na sua vida quando você não sente cheiro de (quase) nada…
Reencontrei meu namorado 18 dias depois do primeiro sintoma do meu filho. Saudade imensa, aquele sorriso, um abraço tão familiar e uma fungada no pescoço — com cheiro de nada. E vai explicar para o seu corpo que aquele sujeito é realmente uma pessoa com quem você tem muita intimidade quando o seu nariz não dá qualquer indício dessa proximidade.
O primeiro sexo pós-covid foi muito esquisito. O segundo também. Aí tive que entender que teria que adaptar o meu corpo a transar sem sentir o cheiro do meu namorado.
No dia em que pedimos um delivery novo para comemorar o fim da covid, outra grande frustração: aproveitei só 20% de um pequeno banquete. E foi assim por muitos dias.
O primeiro sexo pós-covid foi muito esquisito. O segundo também. Aí tive que entender que teria que adaptar o meu corpo
O olfato, até hoje, passados mais de dois meses daquela temporada familiar de covid, não está recuperado. Já sinto muitos cheiros, de comida, de perfume, de materiais de limpeza. Mas não sinto muitos outros sutis, como o de amaciante na roupa de cama, do casaco dos filhos indicando que é hora de lavar, ou do cangote do meu namorado. E eles me fazem muita falta.
A pesquisa mais recente aponta que a condição de anosmia pode durar até um ano. O que parece bem preocupante para mim, que já recuperei muito do meu olfato, é que uma parcela significativa das pessoas que fizeram parte do estudo relatou que suas funções olfativas seguiam prejudicadas, ainda que os testes psicofísicos apontassem resultados normais.
Eu, que sempre fui um cão farejador, agora estou tendo que entender que talvez meu olfato não volte a ser o mesmo. E lá vou eu abraçar minha nova condição e, com sorte, achar um jeito de me edificar nela.
Marina Menezes é head de operações e relações institucionais do grupo do Nexo. Era capaz de identificar o que o vizinho dez andares abaixo estava cozinhando e agora só quer sentir o cheiro do cangote dos filhos.