Jota Mombaça: “O Brasil é uma ficção de poder”
Autora do livro “Não vão nos matar agora”, a artista e escritora firma-se como uma importante voz mundial no debate sobre colonialidade
Jota Mombaça autodenomina-se como “bicha não-binária, nascida e criada no Nordeste do Brasil”. Natural de Natal (RN) e baseada há alguns anos entre Lisboa e Amsterdã, a artista e escritora de 31 anos é hoje figura fundamental de uma geração que renova as vozes do campo de estudos em torno da colonialidade.
Por meio de uma prática interdisciplinar que conjuga a escrita, performance e as artes visuais, Mombaça tornou-se uma presença incontornável no circuito da arte contemporânea internacional, participando de exposições e bienais como a 10ª Bienal de Berlim (2017), a 22ª Bienal de Sidney (2020) e a 34ª Bienal de São Paulo, em 2020. Este ano, Mombaça foi um dos pontos altos da programação paralela à abertura da 59ª Bienal de Veneza, apresentando a performance “in the tired watering”, com curadoria do suíço Hans Ulrich Obrist.
Irene Fanizza
“Qualquer país da União Europeia atualmente está tão banhado de sangue quanto os territórios colonizados, tudo que está aqui foi feito através dessa brutalização”, diz. Este ano, Mombaça teve seu primeiro livro publicado no Brasil, uma compilação de textos escritos nos últimos anos intitulada “Não vão nos matar agora” (Editora Cobogó, 138 pp., 2021), publicação que já havia ganhado uma edição portuguesa.
Qualquer país da União Europeia atualmente está tão banhado de sangue quanto os territórios colonizados
Marcada por uma veloz eloquência, a escrita de Mombaça referencia o legado de nomes como o da escritora norte-americana Octavia Butler, pioneira no campo da ficção especulativa, gênero que especula mundos que diferem do real. Muitas vezes prestando homenagem e revisitando obras de figuras importantes como Butler e a brasileira Conceição Evaristo, Mombaça une articulação teórica a uma voltagem poética, frequentemente pautada pelo desejo de extrapolar o “realismo político”.
Para Mombaça, o movimento da especulação é uma ferramenta poderosa que a permite fabular acerca de novos mundos possíveis. Uma espécie de postura ética diante da vida que, segundo a própria, a coloca “no limite das coisas”, possibilitando a abertura de brechas imaginativas e transformadoras diante da violência de tantas estruturas corroídas que, ainda hoje, sustentam o mundo como o conhecemos.
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G |“É a última vez que falo sobre isso: o mundo tá acabando. De novo”, você afirma logo nas primeiras linhas do texto “Carta às que vivem e vibram apesar do Brasil”, que está no seu livro. Quando você fala que precisamos ensaiar novos fins do mundo, de que lógicas e estruturas estamos falando?
Jota Mombaça |A primeira resposta que me veio à cabeça foi tudo e nada em particular. Acho que essas estruturas são na verdade tantas. São tantos os modos em que a gente se acostumou a viver e a se relacionar, o modo como tudo é produzido de maneira sistêmica… Quando falo sobre o fim do mundo, é o fim do mundo como conhecemos. E isso engendra tudo, uma vez que nos dedicamos a um processo de transformação que nutre um compromisso profundo com o bem viver e com a boa morte. Esse compromisso é projetivo, mas não é fixo, porque se trata, sim, do compromisso de acabar com o mundo, mas também de, nesse processo, refundar a possibilidade.
Por isso eu concordo que há uma necessidade muito grande de nomear essas estruturas de poder: o fundamentalismo cisgênero, a supremacia branca, a colonialidade, e toda uma série de estruturas que a gente pode tentar listar, sendo que quanto mais expandirmos a lista, mais vamos nos dar conta do modo como está tudo mais ou menos integrado ou costurado dentro do mesmo projeto de organização de vida e de mundo pelo qual estamos inscritas arbitrariamente.
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G |Sua prática artística desenvolve-se de maneira interdisciplinar, cruzando os campos das artes visuais, da escrita, da performance e além. Você poderia falar um pouco sobre o seu interesse pela ficção especulativa, ou pelas ficções visionárias, que é um outro termo que você usa? Em que medida o movimento de especulação é também um movimento de fabulação, de criação de novos mundos?
JM |Acho que isso tem a ver com o movimento de se colocar no limite das coisas. O ponto de partida intuitivo que atravessa a minha existência, a minha prática, também encontra eco numa série de outros movimentos que estão comprometidos com fazer esse gesto, de colocar a gente no limite daquilo que está dado.
Esse é também o ponto de onde a a ficção visionária – que é como a gente chama esse exercício de fabular o que ainda não está ou o porvir centrando a possibilidade de justiça social – parte. Não só no sentido de imaginar o futuro, mas aquilo que é formalmente inviável dentro das condições nas quais a gente se encontra, quaisquer que sejam elas. Esse é um trabalho que começa precisamente no limite do que a gente tem, do que a gente consegue perceber, vislumbrar e descrever em relação ao modo como o mundo o qual conhecemos é feito.
Esse termo ficção visionária foi concebido por duas intelectuais e ativistas estadunidenses, Walidah Imarisha e Adrienne Maree Brown. É um termo que de alguma forma tem formado parte da minha prática de maneira muito intensa desde 2016, ao passo em que tento ativá-lo tanto nos meus processos criativos individuais, quanto nas práticas coletivas que ativo. Porque a ficção visionária é uma tradição emergente que tem uma ligação radical e uma preocupação grande com a maneira como os ativismos muitas vezes podem se limitar a um realismo que tende a reproduzir as condições de perpetuação dos sistemas contra os quais buscamos agir. Claro que é importante a gente se manter atenta às dinâmicas do que chamamos realidade , mas podemos também fazer isso de modo a fazer com que nossa imaginação extrapole a dimensão politicamente regulada da realidade, do que se entende por realidade.
A ficção visionária se engaja então com o trabalho ativista de mudar o modo com que a gente lida politicamente, eticamente, com a realidade. É um negócio que se manifesta pela escrita, mas também de diversas maneiras: pelo som, pela imagem, pelas trocas, pelos encontros, pelas relações, pelos acidentes de percurso… Quero dizer, é fundamental descrever essa tradição como mais do que apenas linguagem, mas sim como algo que viabiliza e aciona uma força transformadora sempre já em movimento. Tenho muito interesse em pensar essas estratégias da ficção visionária/especulativa porque desde que comecei a trabalhar com isso passei a me permitir considerar e pesar muito mais do que só a realidade na hora de lidar com as questões cotidianas; a tentar de alguma forma me tornar aberta para sentir os atravessamentos de muitas outras coisas e não só daquilo que o realismo nos permite experimentar. Então, tem uma coisa de se permitir fantasiar, se permitir entrar em registros não racionais, não lineares da experiência, como parte do processo de lidar com aquilo que é inevitável em nossas existências sociais.
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G |Queria te ouvir sobre uma das ficções mais cruéis que conhecemos, o Brasil. O Brasil enquanto ficção, enquanto projeto, uma espécie de pacto impossível forjado através da violência do processo colonial.
Jota Mombaça |Tenho pensado muito nisso mas meu pensamento tem tropeçado também nessa conversa. Recentemente fiz uma fala em que comecei a elaborar sobre a dimensão territorial do problema, pensando numa música da Brisa Flow, em que ela fala que “a treta é sobre território”, referindo-se aos processo de demarcação de terras (indígenas e quilombolas) e a relação com a brutalidade das ficções territoriais da colonialidade, como é o caso da ficção de Brasil. Eu pensava justamente como o território é a ficção que dá contorno e projeta um certo conteúdo sobre a terra, que é essa outra materialidade, essa outra vibração na qual você planta coisas, enterra mortos, anda, dança. A terra na qual a vida se escreve de uma outra maneira, distinta da do território, sempre já dominado e constituído por essa ficção.
Pensar na ficção do Brasil é entender de que modo o território assim nomeado e todos os processos políticos – genocidas e brutais – que se dão nele fazem parte da apropriação da terra que é contínua à expropriação das possibilidades de vida e morte dentro dessa ficção de território. Só a partir disso é que se pode reconhecer “essa coisa” que não é o Brasil, mas que é da ordem da terra capturada por essa ficção – as terras indígenas, quilombolas, pretas, mais ou menos desobedientes ao projeto nacional.
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G |A ficção científica costuma frequentemente abordar o futuro enquanto um tempo distante, uma espécie de abstração. Em 2019, você fez um trabalho chamado “2021” e em alguns dos seus textos aparecem menções a este futuro que é muito próximo, como 2032. Poderia falar sobre esse uso desse futuro breve?
JM |Eu nasci nos anos 1990, então a própria ideia de um futuro distante já não estava disponível da mesma maneira, naquela época. O planeta já estava aquecendo de maneira alarmante, os processos de desintegração social que ainda hoje se desenrolam já haviam se tornado evidentes em várias esferas, e as fantasias de progresso associadas aos 2000 já começavam a anunciar seu fracasso incontornável. Havia ali de maneira muito contundente as condições para que fôssemos atravessadas por essa dimensão cíclica da terra e do mundo, que tem relação com o acabar das coisas. Assim é que eu sinto ter vivido uma experiência de não ter futuro que é tanto geracional, quanto de classe, de racialidade e de gênero; e daí também emerge um exercício de insistir num futurismo que é quase uma armadilha que viabilize nossa saída do tempo linear.
Como você disse, em 2019, eu e a Musa Michelle Matiuzzi fizemos um trabalho chamado “2021”. Dentre outras coisas, aquele trabalho estava também informado pelo meu texto “Veio o tempo em que por todos os lados as luzes desta época foram acendidas”, em que opero uma espécie de movimento de projeção para 2021, estando ainda em 2019; um movimento que é justamente o de apontar de forma especulativa para uma dinâmica da realidade que já estamos vendo chegar de uma maneira ou de outra. Porque, no limite, isso tem relação com esse reconhecimento comum de que o futuro tanto está ameaçado quanto é uma ameaça, isto é, que a ideia moderna de futuro, constituída pela colonialidade, é precisamente o que nos destitui de futuridade. Entender isso me parece ser uma condição para que a gente refaça nossos movimentos de vida e morte de maneira mais radical e não-linear ainda.
Quando eu escrevi o “Veio o tempo…”, eu estava comprometida com esse futurismo urgente, com essa velocidade. Havia uma dimensão aceleracionista na minha prática no sentido de dizer “vamos logo reconhecer que o mundo simultaneamente já acabou e está acabando”, para então nos dedicar logo a questão que me parece, de fato, importante: como habitar o mundo como se ele já tivesse acabado e estivesse acabando ao mesmo tempo, uma vez que essa parece ser precisamente a nossa condição histórica na modernidade? Esse futurismo urgente falava da urgência de chegar coletivamente nesse lugar, nesse limite. Como um movimento que visa instaurar uma armadilha para o tempo linear.
Quando falo sobre o fim do mundo, é o fim do mundo como conhecemos
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G |Apesar do conteúdo, do que há em termos de densidade, de violência, há sempre uma carga poética muito forte na sua escrita. Como você vê essa dimensão poética na sua escrita e na sua vida?
Jota Mombaça |A dimensão poética é justamente a dimensão da criação, então ela é onde a possibilidade se atualiza. Num dos textos da edição brasileira do “Não vão nos matar agora”, eu digo algo como “a gente entendeu o recado e a gente já sabe que vai testemunhar uma era brutal, mas quais eras não foram brutais conosco?”. Então para nós que estamos vivas aqui e de alguma maneira lidando com uma dimensão de consciência compartilhada quanto às contradições e limites do mundo como conhecemos, a poética, a criação, a imaginação radical, são amuletos que caminham com a gente por meio dos abismos e desertos destes tempos.
Tudo o que nos permite uma conexão com outras dimensões de experiência é profundamente necessário para que a gente consiga fazer a travessia, qualquer que seja ela; e nós estamos fazendo, mesmo que seja uma travessia toda quebrada, toda fragmentada. O meu trabalho é justamente a dádiva que se renova para mim. Essa poética que não é só um movimento das palavras, um movimento literário. É uma poética sônica que emerge no momento da leitura, emerge em qualquer criação de som que atravesse e circunde essa prática especulativa, que se manifesta em texto, assim como em desenho, em reza, em performance. Essa dimensão poética é o mapa das rotas por onde fugi, e a pulsação do segredo que cultiva e atualiza a possibilidade.