“É como uma guerra, só que com corpos na UTI, nas valas comuns”
Como estamos lidando com o luto diante de tantas pessoas morrendo diariamente? Maria Júlia Kovacs, especialista no tema, fala sobre como o contexto atual afetou nossa sensibilidade, o impossível retorno à normalidade e o que podemos esperar do pós-pandemia
A pandemia, com seus milhares de falecimentos diários, está nos tornando menos sensíveis à morte e ao sofrimento? Além de um luto coletivo e constante, a necessidade de lidar com as próprias perdas e com as dos outros e uma quase banalização do tema no noticiário, as despedidas também ficaram mais complexas. Muitas pessoas hoje recebem a notícia do adoecimento de um familiar ou amigo pela covid-19 sem a possibilidade de visitá-lo no hospital ou, mesmo quando o pior acontece, comparecer presencialmente ao velório.
O processo de luto precisa ser abraçado e facilitado, em vez de impedido, como tem acontecido em muito casos em meio à pandemia, diz a professora Maria Júlia Kovács, livre-docente do Instituto de Psicologia da USP. Segundo ela, quem perde um familiar ou uma pessoa próxima passa por um nível de sofrimento muito elevado. E, para realmente conseguir absorver essa perda, o processo do luto deveria ser essencial.
Kovács é fundadora e coordenadora do Laboratório de Estudos sobre a Morte (LEM), da universidade, que realiza pesquisas e oferece cursos voltados para a psicologia da partida derradeira. A professora ainda compara a situação que vivemos hoje devido à covid-19 a uma longa guerrilha, daquelas que envolvem grande risco de morte e perda de entes queridos. “Apesar de esperarmos ter um ano mais tranquilo, de retomada, a realidade é que 2021 está muito pior no Brasil do que 2020. Isso também mina as forças, a resiliência, a possibilidade de lidar com uma crise”, declara.
Em entrevista a Gama, Kovács fala sobre como o contexto atual afetou nossa sensibilidade sobre a morte, a pressão negativa do “mimimi”, o impossível retorno à normalidade e o que podemos esperar do pós-pandemia.
“2021 está muito pior no Brasil do que 2020. Isso mina as forças, a resiliência, a possibilidade de lidar com uma crise”
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G |Uma situação como a atual pandemia afeta a forma como enxergamos a morte?
Maria Júlia Kovács |Em psicologia não tem como falar de forma genérica porque as pessoas têm experiências e modos de enfrentamento diferentes. A pandemia é um evento de dimensões que ninguém no planeta Terra tinha vivido. Mesmo os que viveram a gripe espanhola hoje são muito poucos. Tivemos guerras, acidentes, mas nunca uma pandemia com tantos desdobramentos. Não existe ser humano que não tenha sido afetado. Buscamos formas variadas de enfrentar, algumas delas com consequências muito negativas, como toda essa situação que estamos vivendo hoje no país.
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G |Dá para dizer que a situação é comparável à de uma guerra?
MJK |É muito semelhante, principalmente se a gente pensa em guerrilhas que levam muitos anos, em que as pessoas têm vivências muito graves todos os dias, com várias restrições e grande risco de morte, de perder pessoas significativas, o que está acontecendo agora. Apesar de esperarmos ter um ano mais tranquilo, de retomada, a realidade é que 2021 está muito pior no Brasil do que 2020. Isso também mina as forças, a resiliência, a possibilidade de lidar com uma crise. Alguns países já passaram por um momento como o que estamos vivendo agora, com o agravante de que estamos piores por não termos uma liderança coordenada, entre uma série de outros problemas.
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G |Diferente de uma guerra ou de um acidente, na pandemia não há tantas informações visuais ou chocantes para confirmar as dimensões do estrago. Isso afeta a forma como percebemos o tamanho do problema?
MJK |Não é só uma questão de ver corpos. Os números de mortos são assombrosos e é muito difícil lidar com essa quantidade. É algo que o nosso cérebro e alma não conseguem processar direito. Sabemos que isso vai diminuir daqui a um tempo, mas é muito difícil organizar isso psicologicamente. Em vez de não estarmos vendo, estamos vendo demais. Os números são repetidos constantemente, a cada dia batemos um novo recorde, imagens mostram pessoas morrendo na fila sem atendimento. Isso é algo terrível, muito difícil de absorver. Principalmente porque não temos condição de fazer nada além de ficar em casa. É uma proteção, mas em nada alivia as condições de quem está morrendo. Essa é uma das coisas mais tristes. E não estamos sozinhos, é uma pandemia que alcançou o planeta inteiro. Essa é uma peculiaridade. É diferente de uma guerra, que atinge muita gente, mas não o mundo todo.
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G |Temos tido também mais restrições na hora de enfrentar o processo do luto?
MJK |Uma coisa é ter um familiar com uma doença grave, mas cuja evolução você consegue acompanhar. Com a covid-19, muitos estão perdendo pessoas sem vê-las. Deixa no hospital e depois nunca mais tem contato. Isso é muito difícil. Estamos desgastados. Quando pensamos em ajudar outra pessoa, temos que lidar com o desânimo, a descrença. Esse é o trabalho de um profissional de saúde mental. Os profissionais estão cansados, principalmente os da linha de frente, que passam horas diariamente dentro de uma UTI, lutando para que as pessoas possam sobreviver ou ter ao menos alguma qualidade de vida. O luto é um processo muito importante para a percepção de perdas. Ele deveria ser facilitado, legitimado, ter um espaço de elaboração. Ele precisa de acolhida, de tempo. Não é uma situação simples. Aqueles que perdem pessoas próximas têm um nível de sofrimento muito maior, mas, mesmo que não seja o caso, existe um sentimento importante no ser humano que é a empatia e a solidariedade. Então eu sinto também pelas pessoas morrendo, por famílias enlutadas.
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G |Existe um processo ideal de luto?
MJK |A psiquiatra Elizabeth Kübler-Ross é uma das teóricas que mais trabalhou com a questão do sofrimento humano. Quando ela estabeleceu a ideia de etapas do luto, queria encontrar um modo de estarmos sensíveis ao que a pessoa sente. Infelizmente isso passou a ser usado como modelo, o que descaracteriza a obra dela e atrapalha, porque as pessoas acham que deveriam estar sentindo tal ou tal coisa. Não é por aí. A gente sente o que sente. E isso precisa ser valorizado como um modo de enfrentar a situação. Quando ouvimos que uma pessoa está triste ou até deprimida, e um governante diz que é “mimimi”, fraqueza, coisa de maricas, o mal que isso causa é de um tamanho incalculável. É isso que não devemos fazer: julgar, avaliar o sofrimento do outro como sendo de mais ou de menos.
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G |Por que esse momento do luto é tão relevante?
MJK |Quando uma pessoa morre, essa é uma separação definitiva. Perdemos uma pessoa que nunca mais vamos encontrar. Só que não rompemos vínculos, porque temos memórias. Como a gente vai apagar uma mãe, um filho, um pai, um namorado, um amigo? Ele fica na lembrança, mas não temos mais esse contato, e isso dói muito. Nosso ser precisa se acostumar a continuar vivendo mesmo sem essa pessoa. Quando existe o agravante de uma morte com muito sofrimento, sem poder ter contato, se despedir, você agrega níveis de dor. Para algumas pessoas, pode se tornar insuportável. Sabemos que tem muita gente sofrendo, temos que nos preparar porque ainda há muito para fazer . Mesmo quando a pandemia acabar. Se bem que a pandemia não vai acabar, ela vai passar por etapas e a gente vai aprender a conviver com ela.
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G |Quando você fala do pós-pandemia, se refere a um aumento nos problemas psicológicos?
MJK |Hoje existe uma expressão chamada covid longa. Ela se refere a pessoas que passaram pela covid, receberam alta, mas têm sequelas que vão perdurar por um tempo ou para sempre. Então teremos ainda questões físicas para serem cuidadas. A segunda coisa são as questões emocionais tanto dos que tiveram covid e ficaram com traumas como o processo de luta e perda, que também vai perdurar por um tempo. O luto é um processo normal, mas demanda energia psíquica porque você lembra da pessoa, guarda sentimentos que não foram elaborados para ela, uma série de coisas. Quando isso não pode ser cuidado ou é cuidado de forma precária, o risco de que o luto se torne mais difícil é grande. A partir disso, pode-se desenvolver uma doença como depressão ou transtorno bipolar. Se vivêssemos num mundo ideal, seria importante ter políticas de saúde mental que garantissem à população cuidados psicológicos sempre em organizações públicas. Não temos políticas públicas de luto, que eram fundamentais mesmo antes da pandemia. Se perco alguém muito importante para mim e preciso voltar a trabalhar, como dou conta? Isso precisa ser considerado seriamente, não como fraqueza.
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G |A imensa quantidade de mortes acaba reduzindo a importância do sofrimento individual?
MJK |Temos vários mecanismos de defesa que nos protegem das coisas ruins. Saímos para trabalhar, fazer nossas atividades de lazer sem pensar que devemos morrer um dia. A gente vai tocando a vida. Na pandemia, isso também acontece. Até pouco tempo atrás, os velhos eram considerados grupo de risco. Agora eles estão protegidos e quem está entupindo as UTIs são pessoas de 30 a 50 anos, que têm um organismo melhor, mas passam muito mais tempo no hospital. É um paradoxo. A ideia de que comigo não vai acontecer cai por terra. E é uma das coisas que causam essa irresponsabilidade total e completa de pessoas se aglomerarem, não usarem máscara… Que mecanismo é esse que faz elas continuarem achando que são intocáveis? A grande loteria dessa doença é não saber quem vai pegar a forma grave. Existem velhos de 90 anos que sobrevivem e jovens de 25 que morrem. Como explicar isso? Não tem como apostar, e é isso que as pessoas não entenderam ainda.
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G |Essas circunstâncias levam também a um aumento do negacionismo?
MJK |Precisamos analisar o comportamento humano nas mais diversas formas. Eu, por exemplo, acho que o lockdown acaba desembocando num efeito secundário importante que precisa ser levado em consideração: as pessoas não estão aguentando mais de um ano nesse vai e vem. Quem levou a ferro e fogo e não saiu de casa também está se infectando. Agora, se expor ao risco de maneira proposital é um absurdo. Estou cansada de ouvir que as pessoas ainda não entenderam o que é a pandemia. Entenderam sim. O que existe são pessoas de saco cheio, que não se importam de pegar a doença. Hoje estamos num ponto ainda mais restritivo, mas as festas continuam acontecendo e o transporte público está cheio de gente. Nesses pontos perdemos para os outros países: nos governantes e porque somos extremamente indisciplinados. Tanto que corremos o risco de ficar isolados do resto do mundo. Isso é muito grave. Nesse contexto, a pessoa precisa ter uma estrutura psíquica que permita entender tudo o que está acontecendo e ainda assim não se sentir fracassado, sem vontade. Nós que trabalhamos com isso também nos perguntamos: como vou poder ajudar outra pessoa se eu também me sinto mal? Precisamos encontrar em algum lugar dentro de nós mesmos o caminho.
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G |O excesso de informações pode prejudicar nossa percepção?
MJK |As notícias negativas podem ser tóxicas e por isso não devem ser vistas em exagero, senão entram no cérebro e destróem sua vontade de viver. Uma coisa que também é discutida com muita frequência hoje em dia é a positividade tóxica. Você tem que estar bem, alegre, bonito, produzindo sempre. Um estado de epifania numa situação como essa que estamos vivendo. Só que o caminho do bem-estar não é esse. Se você está mal e precisa de um esforço sobre-humano para ficar bem, isso está errado. Então ter um equilíbrio entre notícias muito pesadas e a possibilidade de lidar com o dia a dia é muito importante.
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G |Dá para dizer que perdemos um pouco da nossa sensibilidade em relação à morte?
MJK |Olha que coisa horrível o paradoxo. O índice de letalidade dessa doença é muito baixo se comparado com outras, como câncer. O que assusta, o que nos destrói é o número absoluto e também a forma como essa morte acontece. É como uma guerra, só que com corpos na UTI, nas valas comuns, em contêineres refrigerados, na rua… Mortes não são números, e sim pessoas, com as mais variadas características. Os ídolos recebem homenagens, mas os seres humanos comuns nem tanto. Por isso, todas as tentativas de transformar números em pessoas são muito importantes. É importante criar memoriais, como acontece quando há um acidente aéreo. No caso da Covid, um que registrasse esses mais de 260 mil mortos no Brasil. Ainda é um número pequeno em relação aos mais de 200 milhões de brasileiros, mas muito grande quando se pensa que ele representa três aviões lotados por dia. Nós não conseguimos processar esse número psiquicamente.
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G |Como devemos lidar com esse impacto da pandemia nos próximos anos?
MJK |Desde que começou a pandemia as pessoas falam em voltar à normalidade. Primeiro que, em psicologia, normalidade é uma coisa complicada. E, nesse caso, não vamos voltar ao que era antes, mas a uma outra situação, à qual vamos ter que nos adaptar. Vai se constituir uma nova forma de viver. Com certeza muita coisa vai mudar. Por exemplo, eu sou professora universitária. Se, quando era jovem, tivesse que trabalhar à distância, não sei se teria tomado esse caminho. Acho o processo online possível, mas não é o meu sonho nem acho que equivale ao presencial. Eu sou velha, estou acostumada com outra forma de dar aula, de conversar, de rir junto. Fazer uma discussão em um grupo no Zoom guarda somente uma pálida semelhança com o que acontece na sala de aula. Tenho estado extremamente cansada mesmo trabalhando muito menos. Viagens e várias outras coisas que a gente fazia, vai ser tudo muito diferente… Mas vamos acabar nos ajustando, como já fizemos em outras ocasiões.
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