Santos de Casa
Em novo livro, historiador Luiz Antonio Simas explora versões populares de santos, como o Santo Anônio arranjador de casamentos e o São Longuinho dos três pulinhos
Até hoje majoritariamente um país católico, o Brasil recebeu junto com a religião uma verdadeira procissão de santos que aqui desembarcaram nos primórdios da colonização portuguesa. Mas pode-se dizer que essas divindades hoje não são mais as mesmas que partiram da Europa séculos atrás. Isso porque aqui suas identidades se fundiram a influências indígenas e africanas, aos santos e à espiritualidade popular.
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Poucas coisas exemplificam melhor esse fenômeno do que a festa junina, celebração onde o severo e moralista São João Batista se transforma num garoto de cabelos encaracolados que, no dia 24 de junho, comanda festas com música, danças, bebida e muita sensualidade. É nessas e em muitas outras reinvenções populares dos santos católicos tradicionais que está interessado o escritor, professor e historiador Luiz Antonio Simas, autor de “Dicionário da História Social do Samba” (Civilização Brasileira, 2015), “O Corpo Encantado das Ruas” (Civilização Brasileira, 2019) e “Umbandas: Uma História do Brasil” (Civilização Brasileira, 2021), em seu novo livro “Santos de Casa – Fé, crenças e festas de cada dia” (Bazar do Tempo, 2022).
Pela própria história do Brasil e a maneira quase informal com que a religião se estabeleceu por aqui, acabou se criando “uma espécie de cristianismo festeiro, feito de orações, mas também de quermesses, leilões de prendas, jogos, danças, sabores diversos, simpatias para a sorte no amor, no sexo e no trabalho”, aponta Simas na introdução da obra. Assim, ao longo das páginas, quem surge não são as figuras sisudas dos santos tradicionais, mas suas versões abrasileiradas, em que Santo Antônio vira arranjador de casamentos, São Longuinho detetive de objetos perdidos e São Brás um médico especializado na cura de soluços infantis.
São João Batista: O profeta do fogo e do carneirinho
Dia da festa litúrgica: 24 de junho
Segundo a tradição, assentada sobretudo no Evangelho de Lucas, João foi o filho de Zacarias e Isabel – prima de Maria, mãe de Jesus –, e teve seu nascimento anunciado pelo anjo Gabriel. Foi ele quem anunciou o Messias e batizou Cristo no rio Jordão.
Em geral, a hagiografia de João destaca o seu nascimento, a anunciação, o batizado de Jesus e a sua morte durante o império de Augusto, no início da era cristã, em uma trama cheia de reviravoltas. Com algumas variações, consta que Herodes Antipas, tetrarca (um dos quatro reis) da província romana da Galileia, foi a Roma e sequestrou Herodíade, a esposa do próprio irmão, Herodes Felipe. Herodíade era filha de Aristóbulo, irmão de Felipe e de Antipas — sobrinha, portanto, de ambos. Ela tinha uma filha; a jovem Salomé.
Quando Herodes Felipe retornou à Galileia com a nova esposa e Salomé, o povo rebelou-se contra o irmão que tomou a companheira do outro. Para piorar a situação, o caso era um romance entre tio e sobrinha. O mais indignado com a trama foi João Batista.
Pregador veemente, moralista e incorruptível, João Batista não deu trégua ao trio Antipas, Herodíade e Salomé. Clamava aos ventos contra a união incestuosa, que desmoralizava a lei de Moisés e envergonhava a Galileia, além de conclamar o povo de Jerusalém a se voltar contra o casal que aviltava as escrituras.
Em virtude disso, Herodes Antipas encarcerou João Batista na fortaleza de Maquerunte, às margens do Mar Morto. Mesmo no cárcere, solitário, diz a tradição que o pregador continuou gritando impropérios contra a união entre o tio e a sobrinha.
Em certa ocasião, durante a festa de aniversário do padrasto, Salomé protagonizou um espetáculo de dança em que seduziu os convidados. Ao fim do bailado, Antipas disse que ela poderia fazer qualquer exigência, que prontamente seria atendida. Salomé virou-se para Herodíade e perguntou sobre o que a mãe queria que ela exigisse.
Herodíade não perdeu tempo:
— A cabeça de João Batista numa bandeja de prata, com alfinetes cravados na língua!
E assim teria morrido João Batista, que tempos depois seria canonizado. A julgar pelos relatos tradicionalmente disseminados, o fim dos outros personagens da história foi igualmente trágico; todos vitimados conforme uma furiosa profecia que João fez antes de ser decapitado: Herodes Antipas e Herodíades morreram num terremoto e Salomé, após casar-se com o tio-avô, Herodes Felipe II, morreu ao tentar atravessar, pelada e perseguida por serviçais do marido, o rio Sikoris.
A cabeça de João Batista numa bandeja de prata, com alfinetes cravados na língua!
O São João junino
A brasilidade, no terreno fértil dos ritos comunitários, é fortemente marcada pelo cristianismo ibérico e frequentemente dinamizada e reinventada pela circulação de informações e crenças ameríndias, das múltiplas Áfricas e das outras Europas que se encontraram no extremo ocidente para inventar um sarapatel chamado Brasil.
As festas católicas normalmente transitam em torno dos eventos da paixão e da ressurreição de Jesus Cristo; do culto aos santos e beatos e da adoração a Maria. Já os fundamentos das celebrações indígenas e africanas celebram a força da ancestralidade e a divinização da natureza. Do cruzo entre esses fundamentos surgiram os nossos modos de celebrar o mistério.
No Hemisfério Norte, nos tempos do paganismo, as celebrações relacionadas às fogueiras e demais ritos do fogo marcavam o solstício do verão e a evocação de divindades propiciadoras da boa colheita. Essa herança pagã fundiu-se ao cristianismo popular e se apresenta com força especial nas festas juninas.
Chegando ao Brasil com a colonização portuguesa, o culto aos santos juninos é fortemente ligado ao Brasil nordestino, marcando o ciclo inicial da colheita do milho e as rogações contra a seca. Tudo que envolve os santinhos de junho se desdobra em celebrações da vida: prendas, danças, namoros e simpatias fazem parte das festas; além de comidas típicas como castanhas, batata-doce, milho, mandioca, pinhão e bebidas como o quentão, feito a partir das raízes de gengibre aferventadas com cachaça.
Certa tradição do cristianismo popular conta que Isabel, mãe de João Batista, e Maria, mãe de Jesus, estavam grávidas na mesma época. Com dificuldades de locomoção, combinaram que aquela que tivesse o filho primeiro mandaria acender uma fogueira para avisar da boa nova. Isabel mandou, então, que se acendesse uma grande fogueira no dia 24 de junho, quando nasceu João.
Ritos que envolvem o fogo são comuns em diversos sistemas de crenças. A ligação entre o fogo e forças espirituais, como elemento de renovação, mutação, purificação, atração de sortilégios e afastamento de infortúnios, manifesta-se em múltiplas culturas. Mitos sobre como o fogo foi dominado também são frequentes. Ao mesmo tempo, o fogo, quando não evocado corretamente pelo rito, pode ser o agente da aniquilação da vida.
O mito da fogueira foi uma maneira que o cristianismo encontrou de redefinir os ritos do fogo que marcavam o solstício nas festas da colheita herdadas do paganismo
A fênix consumida em fogo que renasce das próprias cinzas; a crença dos antigos romanos no fogo eterno de Vesta — deusa da harmonia do lar — guardado pelas Vestais, sacerdotisas da deusa que faziam voto de castidade; as espiritualidades elementais das salamandras de fogo dos alquimistas; o ritual do fogo novo entre os astecas, com o objetivo de evitar o fim do mundo após um ciclo completo do calendário; o fogo purificador da cosmovisão Maia; a força radiante do fogo representado por Agni entre os hindus e Atar no zoroastrismo; são apenas alguns dentre múltiplos exemplos.
O mito da fogueira foi uma maneira que o cristianismo encontrou de redefinir os ritos do fogo que marcavam o solstício nas festas da colheita herdadas do paganismo durante a Idade Média. Nas tradições populares, as fogueiras juninas devem ser feitas de formas diferentes: a de São João tem a base arredondada — em provável referência à gravidez de Isabel –, a de Santo Antônio deve ser quadrada e a de São Pedro, triangular.
Outro santo importantíssimo ligado aos ritos das fogueiras, especialmente no Maranhão, é São Marçal, o protetor do Bumba-meu-boi. No dia dele, 30 de junho, os brincantes maranhenses fazem o tradicional encontro dos batalhões. É curioso notar que, apesar do forte apelo popular, São Marçal não tem sua história oficialmente reconhecida pelo catolicismo romano.
Em algumas versões, São Marçal foi o menino que entregou a Cristo o peixe e o pão que foram multiplicados para alimentar os fiéis no deserto. Teria sido batizado pelo próprio Pedro e participado da Última Ceia. Em outras, morreu no século III, depois de realizar prodígios como converter doze mil pessoas de uma vez só, ressuscitar defuntos, homens e bichos, apagar incêndios com um cajado e voar. É a ele que pedimos quando queremos evitar incêndios e para ele acendemos, pedindo renovação da vida, fogueiras de paneiros velhos e palhas secas.
O mastro das festas tradicionais de São João com o estandarte do santo na ponta é também um cruzo cristão dos ritos ancestrais. Representa as rogações pela fecundidade e é muito comum que sejam erguidos no Brasil com espigas de milho amarradas; para propiciar a boa colheita. São João é representado no estandarte como um menino segurando um carneiro; referência à doutrina de que ele teria anunciado ao mundo a chegada do cordeiro de Deus.
O fato é que o profeta sério e de moral intransigente foi incorporado à cultura popular como um menino de caracóis nos cabelos, guardião amoroso e acolhedor do Cordeiro de Deus
Há quem diga que São João dorme segurando o mundo na palma da mão. E que se ele acordar assustado com as fogueiras e foguetórios de sua festa, o mundo terminará consumido pelo fogo. Segundo o historiador e folclorista Câmara Cascudo, João era um santo pregador de alta moral, áspero, intolerante, ascético e intransigente. Nada combinaria menos com ele do que os rituais com danças, bebidas, músicas e até mesmo uma conotação bastante sensual das festividades, com adivinhações para descobrir futuros maridos e esposas, banhos de rio coletivos pela madrugada e profecias acerca do futuro, que seria revelado pelo desenho do corte de um tronco de bananeira perfurado por um facão. Nada mais distante disso que o pregador da voz de fogo que amaldiçoou Herodes Antipas, Herodíade e Salomé.
O fato é que o profeta sério e de moral intransigente foi incorporado à cultura popular — a iconografia dos mastros juninos mostra isso — como um menino de caracóis nos cabelos, guardião amoroso e acolhedor do Cordeiro de Deus.
- Santos de Casa
- Luiz Antonio Simas
- Bazar do Tempo
- 216 páginas
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