Pra Quando Você Acordar
Livro reúne os textos que a professora Bettina Bopp escreveu em seu blog, numa conversa com o irmão que passou 15 anos em coma
Por mais de uma década, a escritora e professora Bettina Bopp – mãe da atriz Maria Bopp e sobrinha do ator José de Abreu – viveu um processo de luto incompleto. Desde que o irmão Itamar entrou em coma, após um infarto seguido de uma parada cardíaca, sua vida se dividiu entre a dor da perda e a esperança de que um dia ele voltaria a abrir os olhos.
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Como forma de lidar com a complexidade do que sentia, passou a escrever um blog como uma espécie de diário da sua relação com o irmão em coma, com um nome que ainda guardava uma ponta de esperança. “Pra Quando Você Acordar” (Planeta, 2022) agora também virou um livro, que reúne as crônicas e cartas que Bopp escreveu para o irmão inconsciente.
Nas mais de 300 páginas, a autora reconta desde lembranças afetuosas, como o dia antes de seu casamento, em que os irmãos choraram e prometeram cumplicidade eterna, até as que não eram tão afetuosas assim, mas passaram a ser, como a época em que Itamar se divertia jogando besouros vivos em seus cabelos. Como ela mesma diz, Bopp transforma cada texto curto numa oportunidade de relembrar os momentos que não puderam viver e sentir saudades de um futuro que nunca existiu.
Itamar morreu em 2020, aos 55 anos, depois de passar 15 em coma. A mãe, Maria Elvira, para quem o filho sempre esteve acamado, como numa “gripe, caxumba ou dengue”, morreu dois dias depois, sem nunca ter sabido da morte de Itamar. Segundo Bettina, Elvira nunca perdeu a fé e ainda guardava as receitas preferidas do filho para um Dia das Mães em que finalmente estivessem reunidos. “Quando o intensivista deu o primeiro diagnóstico de que seria uma noite difícil, que poderíamos perder você, a mãe disse: ‘Quero o Itamar do meu lado, do jeito que for’. E os anjos disseram amém.”
Almas com perfume de jasmim
Aquele em que você morreria
Você não vai acreditar, mas você morreria numa sexta-feira de setembro, oito anos atrás, no final da tarde. Era um dia comum. Comum demais para morrer. Eu pendurava fotos antigas na parede da minha casa um pouco antes do telefone tocar.
E então foi assim. Você não morreu, está por aqui, mas ainda não é você. Suas mãos mudaram, sabe, o formato dos dedos mudou. Eles ficaram mais longos e finos, como dedos de outro alguém que não é você. Me dei conta de que a gente é do jeito que é pelas coisas que a gente toca e pelo jeito que a gente toca em cada uma delas.
Não ter respostas tem sido difícil, em uns dias mais do que noutros. A Marta, filha da Laura, escreveu para uma peça uma frase muito, muito bonita: “O tempo se encarrega de botar as nossas dores em prateleiras cada vez mais altas, mas elas sempre estarão conosco”. Lindo isso, né? Tem tempos que a caixa fica fechada, mas às vezes ela despenca na minha cabeça.
Você fugiu do quê? Por quê? O que estava tão pesado para você e por que eu não pude te ajudar? Onde eu estava? Onde você estava?
Não pude fazer da minha dor uma bandeira. Não levei uma palavra de conforto e fé para quem passava por alguma coisa semelhante. Tive raiva. Como alguém continuava comendo feijoada num sábado à tarde na Vila Madalena e você não?
Não falei para irmãos que estavam brigados, separados, que não valia a pena. Que a vida é esquisita e, quando você menos espera, leva alguém embora.
Fico lembrando da nossa última conversa no telefone, quatro dias antes. A gente falou sobre um iPod de presente de aniversário para Bruna e não sobre a possibilidade de eu nunca mais ouvir sua voz.
E, agora, onde você está?
A Cabala explica que a alma coletiva chamada “Adam” foi despedaçada em 600 mil partes e cada uma dessas partes tem um pedaço do original. Quem sabe eu acredite que sua alma também esteja dividida por aí, guardada em pedaços com quem te conheceu pela vida, na escolinha do Pinheiros, na Escola do Jockey, no Colégio Palmares, no Objetivo, em Camburi, em Maresias, nos bares.
Esteja com tantos primos, tios, mulheres, amigos e canalhas — sim, porque você conheceu e conviveu com canalhas, eles estão em todos os lugares.
Tem uma parte da sua alma comigo, com o Fabio, com a mãe. O pai levou um pedaço com ele para juntar de onde estiver.
E tem partes preciosas com a nossa nova geração, porque eles, seus sobrinhos, conhecem a verdade, não questionam, aceitam, esperam, e só — os meninos são todos sãos, os pecados são todos meus.
Sabe, as meninas são mulheres alfa, fortes, inteligentes, decididas. Os meninos, os três, são anjos disfarçados…
Quem sabe seja o tempo de descobrir um aplicativo na rede que ajude a juntar esse quebra-cabeça e refazer você?
A vida é esquisita.
Você não morreu, está por aqui, mas ainda não é você. Suas mãos mudaram, sabe, o formato dos dedos mudou. Eles ficaram mais longos e finos, como dedos de outro alguém
É vontade de esquecer
Aquele sobre apagar memórias
Você não vai acreditar, mas o Leonardo DiCaprio é realmente um bom ator. Ele foi indicado ao Oscar esse ano, mas não ganhou. No ano em que você dormiu, ele também foi indicado e em 2007, de novo. Três indicações a Melhor Ator mostram que ele é bom, mesmo você não achando.
Você gostava — gosta? — de assistir aos filmes indicados ao Oscar. Fico pensando qual foi o último filme a que você assistiu. Dessas curiosidades meio mórbidas que eu às vezes penso, não sei se para me consolar ou para me torturar: Qual foi a última coisa que você comeu?, Falou com alguém ao telefone quando começou a passar mal?, Sentiu medo?
Fico na dúvida se você assistiu ao Brilho eterno de uma mente sem lembranças. Foi o ganhador do roteiro original em 2005. É um dos filmes favoritos da Maria, e, como ela é cineasta e cinéfila, levo muito em consideração as preferências dela. Não foi um filme de que gostei e ainda não entendo por quê.
Joel quer esquecer Clementine e para isso decide se submeter a um tratamento para apagar da memória os momentos vividos com ela.
Não vou mentir. Muitas vezes quis ter apagado você de mim. Todos os momentos. Preferiria não ser tão agarrada a você. Ser daquelas irmãs distantes, que escolhem, sem remorso, amigos de faculdade para serem padrinhos dos filhos. Ou irmãos que ficam muito tempo sem saber do outro, não se preocupam, têm pouco ou quase nenhum contato. Teria sido bem mais fácil. Assim, quando ouvisse “paciência, essa é a história dele, o carma que ele escolheu”, recolheria minha dor e seguiria em frente. Acho que nem teria dor.
Mas apagando você, tudo que passamos juntos também iria embora.
Desapareceria a noite anterior ao meu casamento, em que ficamos no meu quarto até de madrugada chorando e prometendo poder contar um com o outro para sempre.
Eu não conheceria todas as suas risadas, do que achava graça, as tardes com sentido, todos os aniversários, as férias em Santa Rita, na fazenda da tia Zita, em Resende, no quintal da tia Clara e na Capelinha, onde jogar besouros vivos no meu cabelo e no da Paula era sua maior diversão.
Desapareceria a manhã em que você me achou na praia de Ipanema num domingo lotado de sol e eu, perdida e apavorada, olhando os guarda-sóis todos iguais, com a certeza de que nunca mais encontraria vocês.
E todas as visitas surpresas no meio da semana para me levar com os meninos para jantar e todos os presentes incríveis e inesperados para eles e todas as vezes que te odiei para sempre.
Iriam embora a sensação de se ter sido amada, as trilhas sonoras da nossa vida, a vontade de contar algo que só você entenderia. Ainda hoje me pego pensando: Preciso perguntar pro Ita quem é essa pessoa que me adicionou no Facebook e que eu não me lembro de onde conheço. Você com certeza saberia.
Arrependido da decisão de apagar da memória quem ele ama, Joel começa a encaixar Clementine em momentos de sua memória dos quais ela não participa, para tentar enganar o processo e preservá-la ali.
Sim, sinto falta da gente, sofro muito por isso, mas não, eu nunca abriria mão de você. Fica tranquilo, vou lembrar dos momentos que não vivemos, sentir saudade do nosso futuro e vivê-lo por nós. Prometo ver os filhos do Fabio crescerem, me orgulhar de quem os meus se tornaram, amar o Fabio e cuidar da mãe — e vice-versa.
Fica tranquilo, vou lembrar dos momentos que não vivemos, sentir saudade do nosso futuro e vivê-lo por nós
Coração, desejo e sina
Aquele sobre a mãe
Você não vai acreditar, mas a mãe tirou fotos para uma revista feminina no ano passado. O tema era a beleza em cada idade. Não nos surpreende mais a beleza dela, não é? Modéstia à parte, era a mãe mais bonita do Clube Pinheiros, da Escola do Jockey, do Colégio Palmares e de mais um continente à sua escolha. Uma mistura de Samantha, do seriado A feiticeira, com Jill Munroe, de As panteras.
A grande surpresa foi descobrir nela uma capacidade que eu não imaginava que tivesse. O fardo pesado que leva deságua na força que tem. E que força.
Desde o primeiro dia no hospital até hoje, ela nunca perdeu a fé ou questionou ou se revoltou. Quando o intensivista deu o primeiro diagnóstico de que seria uma noite difícil, que poderíamos perder você, a mãe disse: “Quero o Itamar do meu lado, do jeito que for”. E os anjos disseram amém.
Claro que existe tristeza. Nos olhos, nas músicas que ela ouve, nas comidas que deixou de fazer porque você gostava. Mas não existe nada mais avassalador do que o amor que ela sente por você.
Ela costuma dizer: “Meu filho está acamado”. Não diz em coma ou em estado vegetativo persistente. Para quem não sabe, pode parecer uma gripe, caxumba ou dengue. E alguém assim pode se levantar de uma hora para outra.
A mãe continua encantando quarteirões. É querida por todos que trabalham em casa — e olha que hoje em dia tem mais gente de fora do que da família. São enfermeiros, nutricionistas, fisioterapeutas, fonoaudiólogas, médicos, seguranças e o Jair, muito mais anjo da guarda do que motorista da mãe.
Ela tem aquele mesmo álbum, com as folhas caindo e os plásticos dobrados, com fotos de todos nós. Do rapaz do açougue ao caixa do banco, todo mundo já viu! Ela carrega para todos os lugares e ama mostrar.
Posso ir a um mesmo lugar dez vezes e ninguém conhecer nada da minha vida e eu não conhecer nada da vida de ninguém. Mas basta a mãe ir uma vez a esse mesmo lugar, que ela vai ficar conhecendo o nome de todos os parentes da pessoa, as doenças hereditárias, as preferências de estilo. E da décima primeira vez que eu for, o outro já saberá, claro, que sou mãe de gêmeos e de uma jornalista incrível e que costumo ter pedras no rim.
A mãe não perde esse jeito de estar sempre aberta a novas amizades. Logo depois que você dormiu, fomos com a tia Regina, a Ana e a Flavia assistir a uma missa exorcista na Paróquia Nossa Senhora do Paraíso. Estava lotada e não me sentei perto dela. Olhei de longe e em cinco minutos a mãe já estava mostrando o álbum de fotos para uma mulher desconhecida.
Acredita que a agenda telefônica dela é ainda a preta, aquela que o Zé Paulo deu de presente quando a gente ainda namorava? Já é considerada parte integrante da família, embora só a mãe consiga estabelecer contato com ela. A página J pode estar tranquilamente antes do B ou depois do P. E o telefone de um médico, por exemplo, pode estar em D de doutor, M de médico, na inicial do nome dele ou do hospital onde ele trabalha.
A mãe ainda adora contar que é irmã do Zé de Abreu. E mantém a desculpa de que foi o outro quem perguntou e não ela que quis falar.
— Eu estava no cabeleireiro e não sei como começou o assunto, mas falei para manicure que eu era irmã do Zé. Ih, ela contou pra todo mundo!
Como se o assunto tivesse começado assim:
— A senhora vai passar um branquinho ou escuro? Por falar em esmalte, a senhora, por acaso, tem algum irmão que trabalha na Globo?
Essa semana toda, ela passou pensando no almoço de domingo. Não sei se vai ser feijoada ou bacalhau, mas ainda não teremos na mesa o estrogonofe de nozes que você adorava. Já são nove Dias das Mães incompletos. Mas com a certeza de que, em algum caderninho sem capa, onde a fé, folhas soltas e ingredientes se misturam, a mãe guarda o segredo das suas receitas preferidas, Ita.
Pra quando você acordar.
Ela costuma dizer: “Meu filho está acamado”. Não diz em coma ou em estado vegetativo persistente. Para quem não sabe, pode parecer uma gripe, caxumba ou dengue
- Pra Quando Você Acordar
- Bettina Bopp
- Planeta
- 320 páginas
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