Trecho de Livro: Por Que Escrever?, de Philip Roth — Gama Revista

Trecho de livro

Por Que Escrever?

Livro reúne ensaios, entrevistas e discursos do autor americano Philip Roth sobre sua obra, sua escrita e algumas das experiências mais importantes para sua literatura

Leonardo Neiva 25 de Fevereiro de 2022

De clássicos como “O Complexo de Portnoy” (Companhia das Letras, 2004) até “Complô Contra a América” (Companhia das Letras, 2015), a obra do autor americano Philip Roth (1933 – 2018) é uma das mais conhecidas e reconhecidas no meio literário mundial. E nem mesmo algumas das polêmicas que circundaram seu nome nos últimos anos, como a fama de ser misógino e as acusações de estupro contra seu biógrafo Blake Bailey, chegaram a ofuscar o interesse por seus livros.

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Longe de ser um manual de escrita, como o título pode sugerir para alguns, “Por Que Escrever?” (Companhia das Letras, 2022) na verdade reúne mais de 30 ensaios, entrevistas e discursos do escritor, que trazem à tona um Roth muito mais pessoal e próximo do que aquele que aparece nas entrelinhas de seus romances. Foi também o último volume da obra completa do autor publicada pela Library of America antes de sua morte

Além de um balanço sobre uma vida quase inteiramente dedicada à escrita, o livro aborda temas como a obra de Kafka, considerações sobre alguns dos romances mais polêmicos de Roth e a presença dos judeus na literatura. Este último tópico, aliás, perpassou toda a carreira do autor, que sempre escreveu personagens judeus e recebeu críticas e elogios pelos retratos que fez.

No trecho que Gama selecionou, ele fala sobre as cobranças recebidas da comunidade judaica e os caminhos de representação trilhados por seus personagens.


Escrevendo sobre judeus

Desde que alguns de meus primeiros contos foram reunidos em 1959 numa coletânea intitulada Adeus, Columbus, minha obra vem sendo atacada de certos púlpitos e em certos periódicos como perigosa, desonesta e irresponsável. Li editoriais e artigos nos jornais da comunidade judaica condenando esses contos por ignorarem as virtudes da vida judaica ou, como o rabino Emanuel Rackman disse recentemente na convenção do Conselho de Rabinos dos Estados Unidos, por criarem uma “imagem distorcida dos valores básicos do judaísmo ortodoxo”, e até mesmo, prosseguiu, por negarem ao mundo não judeu a oportunidade de apreciar a “impressionante contribuição que os judeus ortodoxos vêm fazendo em todas as áreas do mundo moderno…”. Entre as cartas que recebo dos leitores, várias foram escritas por judeus que me acusam de antissemita e de “ter ódio de mim mesmo”, ou pelo menos de demonstrar mau gosto. Eles argumentam ou deixam implícito que os sofrimentos dos judeus ao longo da história, culminando com o extermínio de 6 milhões deles pelos nazistas, tornaram certas críticas da vida judaica insultuosas e banais. Afirmam que a crítica que faço dos judeus — ou crítica aparente — é vista pelos antissemitas como justificativa, como “combustível” para suas opiniões incendiárias, em especial por ser um judeu que aparentemente admite que seus personagens judeus tenham hábitos e comportamentos em nada exemplares, ou mesmo normais e aceitáveis. Quando falo para plateias judaicas, sempre há pessoas que depois me procuram para perguntar: “Por que você não nos deixa em paz? Por que não escreve sobre os góis?”, “Por que precisa ser tão crítico?”, “Por que demonstra tanta desaprovação pelo que somos?”, essa última pergunta muitas vezes é feita com mais incredulidade do que raiva, e por gente bem mais velha do que eu, como pais incompreendidos que se dirigem a um filho com ideias erradas.

Às pessoas que sentem que finquei meus dentes em suas carnes, é difícil, se não impossível, explicar que muitas vezes elas nem foram mordidas. Nem sempre, mas com frequência, o que tais leitores consideraram como minha censura à maneira de viver dos judeus parece ter mais a ver com suas próprias perspectivas morais do que com aquela que atribuem a mim; às vezes, veem coisas malévolas onde eu vi energia ou coragem ou espontaneidade: eles têm vergonha daquilo que não tenho por que me envergonhar e, por isso, tornam-se defensivos onde não há motivo para tal.

Não apenas me parecem no geral ter noções limitadas e insustentáveis do bem e do mal, mas, encarando a literatura como o fazem — em termos de “aprovação” ou “desaprovação” dos judeus, atitudes “positivas” ou “negativas” com relação à vida judaica — provavelmente não entenderão o verdadeiro sentido de um relato ficcional.

Entre as cartas que recebo dos leitores, várias foram escritas por judeus que me acusam de antissemita e de “ter ódio de mim mesmo”

Vou dar um exemplo. Escrevi um conto intitulado “Epstein”, que fala de um homem de sessenta anos que comete adultério com uma senhora que reside no outro lado da rua. No final, Epstein, o protagonista, é descoberto — descoberto por sua família e derrotado por tudo o que ele resolvera enfrentar num esforço derradeiro. Há leitores judeus, bem sei, que não conseguem entender por que escrevi esse conto sobre um judeu: será que outras pessoas também não cometem adultério? Por que mostrar um judeu enganando a esposa?

Mas um adultério envolve mais do que o fato de enganar alguém, a começar pelo próprio adúltero. Por mais que certas pessoas o vejam apenas como um embusteiro, ele normalmente sente ser algo mais. E, de modo geral, muitas vezes o que costuma atrair a maioria dos leitores e escritores para a literatura é esse “algo mais” — tudo o que está mais além da mera categorização moral. Ao escrever uma história sobre um adúltero, meu propósito não é tornar claro quão certos estamos todos nós ao desaprovar o comportamento, nem ao ficar desapontados com o homem. Não se escreve ficção para afirmar princípios e crenças que todo mundo parece sustentar, nem para garantir a adequação de nossos sentimentos. O mundo da ficção, na verdade, liberta-nos dos limites que a sociedade impõe sobre o sentimento. Uma das grandezas da arte é permitir que tanto o escritor como o leitor reajam à experiência de formas que não estão sempre disponíveis na conduta cotidiana. Ou, se o estão, não são possíveis, gerenciáveis, legais nem aconselháveis, nem mesmo necessárias para o ofício de viver. Podemos nem saber que temos um espectro tão amplo de sentimentos e reações até entrar em contato com a obra de ficção. Isso não significa que o leitor ou o escritor deixa de julgar as ações humanas. Pelo contrário, julgamos num nível diferente de nossa existência, pois não apenas estamos julgando com apoio de novos sentimentos, mas sem a necessidade de agir em função de nosso julgamento. Abrindo mão por algum tempo de sermos cidadãos probos, penetramos numa outra camada de consciência. E essa expansão da consciência moral, essa exploração da fantasia moral, tem certo valor para o ser humano e para a sociedade.

Não desejo me aprofundar aqui sobre o que muitos leitores, sem maior reflexão, acreditam ser os propósitos e os artifícios da ficção. Para aqueles cujos interesses não os levam a especular muito sobre esse assunto, quero deixar claras algumas premissas a que um escritor pode obedecer — premissas do tipo que me levam a dizer que não escrevo uma história para tornar evidente qualquer sentimento crítico que eu possa ter quanto aos homens adúlteros. Escrevo a história de um homem que é adúltero a fim de revelar a condição de tal homem. Se o adúltero é judeu, então estou revelando a condição de um adúltero que é judeu. Por que contar tal história? Porque aparentemente estou interessado em como — e por quê, e quando — um homem vai de encontro ao que considera ser o que tem de melhor, ou o que os outros imaginam que tenha, ou prefeririam que tivesse. O tema está longe de ser “meu”: vem interessando leitores e escritores por muito tempo antes de chegar minha vez de também abordá-lo.

Um de meus leitores, um homem de Detroit, fez várias perguntas que, pela própria brevidade, creio que tinham a intenção de me desarmar. Cito partes da carta sem sua permissão.

Depois ele pergunta: “Essa é uma característica judaica”? (…) A resposta é: “Quem disse que é?”

A primeira pergunta: “É concebível que um homem de meia-idade negligencie seu negócio e passe o dia inteiro com uma mulher de meia-idade?”. A resposta é sim.

Depois ele pergunta: “Essa é uma característica judaica”? Presumo que esteja se referindo ao adultério e não humoristicamente ao fato de alguém negligenciar seu negócio. A resposta é: “Quem disse que é?”. Anna Kariênina comete adultério com Vronski, com consequências mais desastrosas que as provocadas por Epstein. Quem pensa perguntar: “É uma característica russa?”. Trata-se de uma possibilidade humana. Embora se diga que a mais famosa proibição contra o adultério foi imposta (por razões que só Deus conhece) aos judeus, as relações sexuais fora do matrimônio têm sido uma das formas que pessoas de todas as religiões adotaram para buscar o prazer — ou a liberdade, ou vingança, ou poder, ou amor, ou humilhação…

A pergunta seguinte na série do cavalheiro foi: “Por que tanto shmutz?”. Ele está perguntando por que há tanta sujeira no mundo? Tanto desapontamento? Qual a razão dos sofrimentos, da feiura, do mal, da morte? Eu gostaria de pensar que essas eram as questões em sua mente. Mas tudo o que ele de fato está perguntando é: “Por que tanto shmutz naquele conto?”. Um homem idoso descobre que as chamas do desejo sexual ainda ardem nele? Shmutz! Repugnante! Quem quer ouvir falar nesse tipo de coisa? Chocado como está com nada mais que os aspectos sujos dos problemas de Epstein, o cavalheiro de Detroit conclui que eu sou bitolado e intolerante

Como outros o fazem. Intolerância e bitolagem, na verdade, foram as acusações que, segundo publicado no New York Times, um rabino de Nova York, David Seligson, fez recentemente contra mim e outros autores judeus que, conforme ele disse à sua congregação, dedicavam-se “à criação exclusiva de um desfile melancólico de caricaturas”. O rabino Seligson também malhava Adeus, Columbus porque nesse livro eu descrevia um “judeu adúltero […] e uma série de outras personalidades desequilibradas e esquizofrênicas”. É óbvio que adultério não é um sintoma de esquizofrenia, mas o fato de o rabino assim o considerar indica, para mim, que temos ideias diferentes sobre o que seja sanidade mental. Afinal, a vida pode perfeitamente produzir um homem de negócios melancólico e de meia-idade como Lou Epstein, que, na opinião do dr. Seligson, constitui apenas mais um exemplo no desfile de caricaturas. Eu próprio acho que o adultério de Epstein é uma solução improvável para seus problemas, uma reação patética e até fadada ao insucesso, mas também cômica, pois nem se coaduna com a concepção que ele faz de si mesmo e com o que deseja; porém essa inadequação não me leva a desprezar sua sanidade ou humanidade. Caso eu admita que o personagem de Epstein foi concebido com considerável afeição e simpatia, suponho que isso equivalha a uma confissão de que sou desequilibrado e esquizofrênico. No meu entender, o rabino é incapaz de ver um abraço apertado quando ele ocorre diante de seus olhos.

A notícia do Times continua: “O rabino disse que só podia ‘expressar perplexidade’ com relação a escritores talentosos que, ‘judeus de nascimento, conseguem enxergar tão pouco na tremenda saga da história judaica'”. Mas não creio que a “perplexidade” do rabino a meu respeito seja maior que a minha com relação a ele: esse negócio de ficar perplexo é a voz da sabedoria ao se fazer ouvir, sempre desejosa de ver a luz — caso, é claro, haja luz. Mas não caio nessa conversa A imparcialidade do púlpito só serve para ocultar as questões — como o rabino faz na conclusão do texto publicado no Times: “‘Que eles [os escritores judeus em causa] devem ter a liberdade de escrever, isso nós afirmaríamos com veemência. Mas desejaríamos fervorosamente que eles conhecessem seu próprio povo e tradições'”.

A história de Lou Epstein fica de pé ou cai não com base no que sei sobre a tradição, e sim no quanto sei sobre Lou Epstein

No entanto a questão não é o conhecimento de seu próprio “povo”. Não é uma questão de saber quem tem mais informações históricas a dispor, quem está mais familiarizado com a tradição judaica ou qual de nós obedece a mais costumes e rituais. A história de Lou Epstein fica de pé ou cai não com base no que sei sobre a tradição, e sim no quanto sei sobre Lou Epstein. Naquilo em que a história do povo judeu está representada na figura do homem de meia-idade que chamei de Epstein é onde meu conhecimento precisa ser correto. Mas tenho a impressão de que o rabino Seligson quer varrer Lou Epstein da história judaica. Eu acho sua situação comovente demais para ser descartada, mesmo se ele for um grubber yung e provavelmente mais ignorante da história do que o rabino crê que eu seja.

Afinal de contas, Epstein não é retratado como rabino erudito, e sim como dono de uma pequena empresa de sacos de papel; sua esposa também não tem uma educação refinada, assim como a amante; em consequência, o leitor não deveria esperar que nesse conto encontre, de minha parte, ou da parte dos personagens, o conhecimento talmúdico da Ética dos Pais; mas o leitor tem todo o direito de esperar que estarei próximo da verdade quanto ao que, talvez, possam ser as atitudes de um judeu que tenha a história de Epstein no que se refere a casamento, vida em família, divórcio e fornicação. O conto se chama “Epstein”” porque o tema é Epstein, não os judeus.

Produto

  • Por Que Escrever?
  • Philip Roth
  • Companhia das Letras
  • 568 páginas

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