O Mito do Mito
Neste livro de ficção póstumo, a cantora-autora lida de forma irreverente com o papel de fã e ídola durante sessões de psicanálise inventadas
Além de uma segunda parte de sua autobiografia, Rita Lee (1947-2023) deixou outro legado por escrito para a surpresa de uma legião de fãs. No caso do livro “O Mito do Mito” (Globo Livros, 2024), não tinha como a obra ter chegado em outro momento. Afinal, a condição principal que ela estabeleceu para sua publicação era que acontecesse após a morte da artista. “Não quero ninguém me perguntando de meras coincidências com fatos ou pessoas reais. Escritora‐mistério”, deixa claro logo no início.
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Dedicada ao “eterno namorado” Roberto de Carvalho, aos filhos bichos e humanos, netos e também a todos os ídolos e fãs, essa ficção com toques autobiográficos acompanha Rita durante seguidas consultas a um misterioso psicanalista, que só atende seus clientes após o por do sol. Lançando mão do humor e irreverência de sempre, a cantora-autora investiga sua própria relação com o papel de fã e, mais tarde, de ídola de uma geração — em que se questiona se por acaso não está enganando seus fãs.
Lee começou a escrever a obra em 2005, mas só foi retomá-la para valer cerca de uma década depois, quando o manuscrito ressurgiu durante uma arrumação doméstica. Embora tenha dado prioridade à autobiografia na época, acabou retomando de vez o projeto algum tempo depois, mas com um certo sigilo, a ponto de o próprio Roberto de Carvalho confessar não saber de sua existência.
O volume se junta a outras publicações ficcionais de Lee, como o livro de contos “Dropz” (Globo Livros, 2017) e também obras voltadas para o público infantil. Prato cheio para os fãs, trata-se de uma nova forma de mergulhar na mente e nos devaneios da artista enquanto ela mistura as sessões inventadas de psicanálise a preocupações e interesses bastante reais. Um presente póstumo que Lee resume no trecho: “Artista morto vale mais, tem uns que viram até mito.”
19h
As sete badaladas
Dei um pulo, como se estivesse acordando repentinamente. Já não estava na poltrona, mas numa espécie de chaise longue, também muito confortável. Eu esperava um dr. Eric perto de seus setenta anos, só que estava diante de um jovem, de pele bem branca, pálida e lisa. Parecia um poeta de séculos passados. Seus olhos estavam fixos nos meus e pareciam querer me atravessar. Ah, aquele ali não conseguiria me enganar jamais. Vou deixá-lo pensar que acredito ser apenas um psiquiatra.
— A senhora descansava levemente na sala de espera, e pedi que meu assistente te trouxesse até aqui para conversarmos quando despertasse. E assim pude observá-la.
Eu não conseguia abrir a boca para responder.
— Fique tranquila. Por enquanto eu falo, depois a senhora, ou melhor, acho que prefere ser tratada de você.
— Dr. Eric, eu presumo. Não esperava alguém tão jovem.
— Não se engane pelas aparências. No decorrer de nossa conversa você poderá tirar suas conclusões. Muito provavelmente já fez análise outras vezes.
— Já enlouqueci muitos de seus coleguinhas. Nenhuma entidade protetora de psiquiatras lhe mandou algum aviso alertando sobre minha pessoa?
— Só enlouquece quem tenta decifrar. Melhor tentar entender. Mas gostaria de saber os detalhes daquilo que imagino ter trazido você até aqui. E é o que deve estar enlouquecendo você. O enigma do fã. Do mito.
— Mas, mas… eu não disse nada sobre o motivo da minha visita. Por acaso minha irmã, quando marcou a consulta, falou algo?
— Deixe sua irmã fora disso. Geralmente sei o que move as pessoas. E, quando elas aparecem por aqui, é porque já procuraram muito sem terem se convencido do pouco que acharam.
Já enlouqueci muitos de seus coleguinhas. Nenhuma entidade protetora de psiquiatras lhe mandou algum aviso?
— E você já querendo me culpar, né sua besta! — responde o grampo lá da comunidade hippie.
— Somos profissionais, nós dois. Esqueçamos as preliminares e vamos direto ao assunto: você foi fã durante muito tempo antes de virar um ídolo?
— Claro, claro. Meu curriculum vitae de fã inclui desde lamber maçanetas de portas até descolar em 1955 o certificado de sócia do Fã-Clube das Viúvas de James Dean. Conheço bem o métier de colocar um deus do Olimpo no altar do coração só para fornecer um quentinho na alma gelada de nós, mortais. Atualmente, sei que sou uma fã tentando me aprimorar na arte de não dar bandeira na frente do artista por quem alimento extremo desejo de comer todinho. Ajo de acordo com a ritualística transmitida oralmente pelos fãs-magos do oriente. Continuo firme e forte me arrepiando com as aventuras dos meus queridinhos do passado. Há fotos deles por toda a minha casa.
— Entendo… Mas nada disso me parece uma questão para você.
— E não é. Bem…
— Me diga, qual a questão que te aflige?
— Eu também sou uma espécie do que se pode chamar de artista…
— Prossiga.
— E eu acho que posso estar enganando meus fãs. Pronto, falei.
— Interessante. Agora, vejo que estamos chegando a algum lugar.
— Minha humildade na lista do camarim vem dos meus tempos de anonimato. Consta de: água mineral sem gás, frutas da estação, banheiro limpo e uma boa iluminação. Também não sou de fazer lista de trocentas toalhas brancas por não me sentir exatamente merecedora disso. Não que fosse fazer esse pedido, de qualquer forma.
— Quem seria merecedor de um camarim com a infinidade de toalhas brancas?
— Ah, todos os meus ídolos! Carmen Miranda, Brigitte Bardot, James Dean…
Meu curriculum vitae de fã inclui desde lamber maçanetas de portas até descolar em 1955 o certificado de sócia do Fã-Clube das Viúvas de James Dean
— E você?
— Eu, não.
— Você acha que é melhor ser fã ou ídolo?
— Se equivalem no prazer. Eu confesso que amo descolar alguma novidade de meus ídolos, assim como meu rabinho abana quando um jovem diz que minha música deu novo sentido à vida dele.
— E o que te move?
— No momento fã ou ídolo?
— No momento presente. O que veio fazer aqui?
— Nestes cinquenta anos de música, não me sinto uma cantora. Nada disso. Tenho quase que uma certeza de que estou desempenhando um papel e as pessoas acreditam nele…
— E, nesse ponto, você acredita estar enganando seus fãs…
— É por aí. Talvez, desempenhe bem o papel de boba da corte com este meu jeito ginasiano de interpretar os mistérios da vida. Posso confirmar vários sucessos inesperados nos meus anos de estrada. E também alguns fracassos, porque que a gente não é sempre essa infalibilidade que muitos fingem ser. E o que seria de um sem o outro ninguém sabe. Um mundo onde todos sejam artistas é bocejante. O contrário também. Para o funcionamento perfeito desta engrenagem geradora de carinhos e ódios mútuos trouxe aqui uns manuscritos básicos, colecionados ao longo de séculos. Quem sabe o senhor me diz se minhas mazelas merecem consideração e quem sabe esta conversa ou consulta, sei lá, possa evitar que o fã de ontem se transforme no Mark Chapman de amanhã, assim como a simpática deusa de hoje não se torne uma inacessível Greta Garbo do futuro.
— Você sabe como qualquer terapia funciona. Ficarei aqui assistindo você se convencer de algumas verdades e mentiras que já está cansada de saber. Tentarei apenas deixar as portas abertas.
— E pelo visto as cortinas bem fechadas.
Nestes cinquenta anos de música, não me sinto uma cantora. Tenho quase que uma certeza de que estou desempenhando um papel e as pessoas acreditam nele…
— Você vai entender meu método. Deve estar pensando como vai ser chato vir aqui para todas as sessões, não lembrar direito onde paramos na última, coisas assim. Mas meu método é diferente. Ficaremos conversando até que um de nós dois convença o outro de algo que valha a pena.
— Gostei. Desculpe, mas estava até pensando que minha hora já havia acabado e que eu sairia daqui de mãos abanando. Então voltemos ao assunto.
— O espaço é seu. Faça o que quiser.
- O Mito do Mito
- Rita Lee
- Globo Livros
- 184 páginas
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