Poemas de Torquato Neto — Gama Revista

O Fato e a Coisa

Único livro de poemas organizado em vida por Torquato Neto reúne versos escritos na juventude sobre sua cidade natal, Drummond, Luís Carlos Prestes e amigos da jornada tropicalista

Manuela Stelzer 16 de Setembro de 2022

Papel almaço, folhas com o logo da Air France, páginas timbradas da Academia Ruy Barbosa ou mesmo papel vegetal: todas eram opções para que o poeta Torquato Neto (1944-1972) escrevesse seus versos. Depois de sua morte, várias dessas folhas soltas foram encontradas dentro de um papel dobrado com o título “O Fato e a Coisa” – era seu projeto de livro, cujos poemas produzia desde a adolescência. Os que têm data foram escritos entre 1962 e 1963, quando o poeta tinha 17 e 18 anos.

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O livro começa com uma nota: “a ideia é não chatear seu fantasma imenso” e por isso, o trabalho minucioso de edição e revisão foi feito sem padronização, mantendo-se fiel ao uso de vírgulas e maíusculas e minúsculas da versão original, por exemplo. “As estranhezas abundam e deslumbram”, afirma a nota de edição que abre o livro. Organizado a partir da pesquisa no Acervo Torquato Neto, no Piauí, por Thiago E, que assina também o posfácio, o livro traz arquivos exclusivos de seus poemas escritos à mão, algumas rasuras e imagens do poeta.

Uma homenagem aos 50 anos de sua morte, a coletânea de versos mostra um período de intensa e rica produção, em que escreveu sobre sua cidade natal, Teresina, além de suas andanças e aventuras por Salvador e Rio de Janeiro. Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Moraes são citados e usados como referências para seus poemas. Estava entusiasmado com Luís Carlos Prestes e aos poucos fazia amizades da futura jornada tropicalista, ao lado de Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé, Nara Leão, que também aparecem nos versos: “viva caetano e bethânia / (…) viva que eu os conheço / e eu os amo de longe ou perto”.

O livro integra a coleção de poesia e o clube de assinaturas de uma parceria entre as editoras Fósforo e Luna Parque. Círculo de Poemas editará traduções, livros inéditos de autores brasileiros, obras reunidas e resgates de títulos esquecidos. Torquato Neto está entre esses achados e chega às livrarias em outubro.


O fato

Na água em que me lavo,
o teu escarro. No prato em que almoço,
a tua moléstia.
Nas coisas que eu me afirmo,
a tua ideia. Na minha voz
que fala e chora e cala,
a tua mentira.
Atrás de mim passeias livremente
e não te barro
não me volto e não te enxergo.
Te sinto apenas a repetição de minha angústia
vezes dois
e te imagino torto
e te sei um fato ereto em minhas costas,
caminhando.

Assustam-me os meus dedos: são os teus,
magros, inúteis.
Reparo à toa num espelho: a minha face
não é mais a minha, mas a tua
e teu desdém.
Na rua, amigos me perguntam como vou.
Digo: vai mal, vai mal…
e deixo que teus passos me insinuem na ida
e me obstruam a vinda.
Sempre estou lá. Não saio
do arcabouço do meu corpo.
Calabouço?

Digo: balanço — mas por detrás sussurras:
masmorra indissolúvel na qual te encontras.
E eu fico.

Posição de ficar

No princípio era o verbo amar.
Mas os sentimentos extinguiram-se
e retesaram-se os membros: não houve amor
desde então.
Agora, sabemos inútil procurar nos livros a fórmula
[derradeira deste verbo.

As coisas fizeram-se lúcidas
notou-se o fato
e sentiu-se medo.
Deixaríamos o corpo livre se pudéssemos,
mas o corpo está preso a tantos acontecimentos abstratos.
Choraríamos se nos fosse possível,
mas não há mais lágrimas
e o rosto retesado pelo medo
é pulsação imaginada e só imaginada, insensível a
[quaisquer prantos.
Por isso não temos esperança e procuramos as torres.
Desaprendemos o falar, esquecemos o derradeiro gesto
[de sentir.
Em nossas cápsulas de carne estamos líquido sentimento
[de procura

e no entanto nada procuramos.
Temos as mãos fechadas, não as forcem.
Nossas celas as sabemos impenetráveis, não forcem.
Temos tanto sono, mas o venceremos,
não nos forcem.

Conjugaremos o irrepreensível verbo esquecer, não
[perdoar.

Não perdoamos.
Em toda esta fraqueza nos sentimos fortes como os
[primeiros mártires,

estamos na arena,
sentimos medo e deixaremos nossos restos ao vosso
[escárnio.

Desaprendemos tudo.
Ambíguos em nós mesmos, amamos agora o silêncio das
[covas

e as esperamos: este o nosso fim.

Bilhetinho sem maiores consequências

Uma retificação, meu bom Vinicius:
Você falou em “bares repletos de homens vazios”
e no entanto se esqueceu
de que há bares
lares
teatros, oficinas
aviões, chiqueiros
e sentinas,
cheinhos (ao contrário)
de homens cheios.
Homens cheios
(e você bem sabe)
entulhados da primeira à última geração
da imoralidade desta vida
das cotidianas encruzilhadas e decepções
da patente inconsequência disso tudo.
Você se esqueceu
Vinicius, meu bom,
dos bares que estão repletos de homens cheios
da maldade das coisas e dos fatos,
dos bares que estão cheios de homens cheios
da maldade insaciável
dos que fazem as coisas
e organizam os fatos.
E você
que os conhece tão de perto
Vinicius “Felicidade” de Moraes
não tinha o direito de esquecer
essa parcela imensa de homens tristes,
condenados candidatos naturais
a títulos de tão alta racionalidade
a deboches de tão falsa humanidade.
Com uma admiração “deste tamanho”.

Produto

  • O fato e a coisa
  • Torquato Neto
  • Círculo de Poemas
  • 152

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