Trecho de Livro: Formas Feitas no Escuro, de Leda Cartum — Gama Revista

Trecho de livro

Formas Feitas no Escuro

Novo livro de Leda Cartum mescla fábula, crônica e poesia em minicontos que abordam memórias, desejos e a repetição inevitável do cotidiano

Leonardo Neiva 28 de Abril de 2023

Um homem sobe uma montanha sem nunca chegar ao topo. Outro prepara o arsenal para lutar contra monstros terríveis, mas estes jamais aparecem. Com imagens como essas, que inicialmente soam vagas mas vão se tornando mais e mais reconhecíveis, se inicia o novo livro da escritora, tradutora e roteirista Leda Cartum. “Formas Feitas no Escuro” (Fósforo, 2023) mescla ainda fábula, crônica e poesia, fazendo jus ao seu título e dando a crescente impressão, conforme a leitura avança, de que o leitor caminha tateando pelo breu de uma caverna.

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Como aponta a poeta Angélica Freitas na orelha da obra, definir o gênero da escrita de Cartum talvez não seja o que mais interessa. “Importa aqui o trabalho da imaginação, o trânsito do escuro para o claro, e vice-versa”, conclui. Assim, o aspecto de sonho acordado que permeia boa parte dos minicontos do livro remete tanto a mitologias e saberes ancestrais quanto a situações do cotidiano contemporâneo, como o tédio, a ociosidade e as incongruências do tempo.

Autora de “As Horas do Dia” (7Letras, 2012), “O Porto” (Iluminuras, 2016) e “Bruno Schulz Conduz um Cavalo” (Relicário, 2018), a escritora consegue dar alguma solidez às sombras que evoca aqui ao propor uma poética dominada por texturas, da terra úmida à lisura de um chão de taco. Dessa forma, aborda memórias, desejos impossíveis, a repetição inevitável do cotidiano e as feras que passamos a vida nos preparando para enfrentar, sejam elas reais ou não.


Era então hora de ir: um homem juntou seus trapos em uma trouxa e subiu montanhas, subiu montanhas, subiu montanhas tão altas que no topo eram cobertas de neves perpétuas que não derretem. Passaram anos e passaram meses e passaram dias e o homem seguia subindo montanhas, andava e cansava e dormia e voltava a tentar com as pernas compridas chegar lá em cima. Mas as distâncias se projetavam a cada vez um pouco mais longe, as horas corriam quilômetros e adiavam todo dia um pouco ainda o topo das montanhas: mesmo que esse homem enfim alcançasse o cume, o chão sob os pés era baixo, sempre abaixo do seu corpo. Por isso ele olhava ao redor no campo aberto ao pé da montanha, às vezes se detinha por um segundo; via uma abelha, via um condor, retomava sua trilha que não acabava nunca. Subia montanhas, subia montanhas, subia montanhas.

Noite sim, noite não, um homem sonhava com feras que caçavam o seu rastro. Mas despertava depressa e nas ruas da cidade ele andava a passos largos, sem perceber que evitava os cantos escuros e os becos estranhos. Ele às vezes ouvia um barulho, chegava a notar o vulto de um tigre — ou era uma sombra, ou era o cansaço da noite esquecida: estava atrasado.

Passaram anos e passaram meses e passaram dias e o homem seguia subindo montanhas, andava e cansava e dormia e voltava a tentar com as pernas compridas chegar lá em cima

Um homem preparava arsenais invisíveis; afiava facas por baixo do pano; lustrava armaduras minúsculas; tensionava os músculos, pronto para uma guerra que iria travar sozinho a cada dia atrás da porta. Mobilizava esforços, forçava torrentes, torcia enxurradas — era um trabalho hercúleo que no entanto acontecia num canto quieto, e ninguém mais percebia. Um homem em repouso mantinha em alerta partes secretas do seu corpo: ele estava disposto a enfrentar criaturas, combater inimigos, lutar contra monstros — só que eles não chegavam, não compareciam.

Um homem tinha orelhas e atrás delas ouvidos que eram muito estreitos e também muito compridos. As pessoas falavam coisas que entravam e se alojavam nos corredores internos: as palavras se enfileiravam, apertavam-se umas nas outras, mantinham-se encolhidas para se arranjar lá dentro, bem no fundo dos canais. Mas a verdade é que não cabiam, por mais que tentassem elas não cabiam: dentro do labirinto as frases já não podiam se acomodar à vontade. Por isso faziam filas intermináveis que formavam uma linha, e com essa linha longa o homem tecia um manto — com esse manto ele cobria as coisas ao seu redor: os móveis da casa, as pessoas e o que elas tinham para dizer.

Ele estava disposto a enfrentar criaturas, combater inimigos, lutar contra monstros — só que eles não chegavam, não compareciam

Produto

  • Formas Feitas no Escuro
  • Leda Cartum
  • Fósforo
  • 88 páginas

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