Lacan Ainda
Em livro, a escritora e psicanalista Betty Milan relembra os seis anos de terapia com o lendário Jacques Lacan e o impacto da psicanálise em sua vida
POR QUE LER?
Entre os anos de 1973 e 1978, a escritora, psicanalista e dramaturga paulistana Betty Milan fez análise com o francês Jacques Lacan, um dos nomes mais famosos e revolucionários da psicanálise mundial. Agora, em “Lacan Ainda”, ela relembra o processo do início ao fim, desde a partida para a França e o primeiro encontro com Lacan até o retorno definitivo ao Brasil. E conta como, embora não tenha resolvido todos os seus problemas, a análise teve impacto na sua vida.
“Me permitiu aceitar as minhas origens, o meu sexo biológico e me tornar mãe. Isso, por um lado, aconteceu graças ao interesse real dele pela mudança. Por outro, graças à maneira como trabalhava e que, ainda hoje, causa indignação”, diz Milan em uma passagem introdutória da obra. De poucas palavras e intervenções ao longo de cada sessão, Lacan poderia parecer até mesmo pouco interessado aos pacientes que não estivessem familiarizados com seus métodos.
Propositor de uma espécie de retorno a Freud, Lacan pretendia deixar boa parte do trabalho pesado da análise para o paciente, que acabaria determinando seu futuro. Não é raro, portanto, que Milan descreva como saía um tanto perdida das sessões com o psicanalista. Em geral, porém, uma única palavra dita de forma displicente por Lacan despertava toda uma corrente de pensamentos algum tempo depois. Em meio a esses relatos, a autora também faz incursões ao seu passado e futuro, apresentando as origens de alguns comportamentos e os impactos da terapia em diferentes áreas de sua vida. Um prato cheio até para quem não está assim tão por dentro da psicanálise.
Cheguei pontualmente no consultório. Mas não fui atendida na hora marcada, como não podia ser, já que o tempo da sessão era função do discurso do analisando e não do tempo do relógio. Isso justificava a espera e eu não me lembro de alguma reclamação relativa a isso. Só quem concordava com o método de Lacan fazia análise com ele. Possível considerar que o tempo passado na sala de espera era um tempo necessário para o que viria depois, a sessão propriamente dita.
Fui a terceira pessoa a ser chamada com um mesmo Venha.
De um lado, no consultório, ficava o divã e, atrás dele, uma poltrona imensa com incrustações de madrepérola. Do outro lado, em frente a uma janela que dava para o pátio, duas pequenas poltronas de veludo para o face a face, que antecede a passagem para o divã. O Doutor me indicou uma delas e se sentou na outra.
Assim que nós sentamos, eu ouvi o Diga, que se repetiria durante anos, porque o analisando estava ali para fazer um trabalho que dependia da sua fala. Não era o sujeito do pensamento que interessava e sim o sujeito do inconsciente, que só podia se revelar através do discurso. Não era o Penso, logo existo de Descartes que contava e sim o Digo, logo existo.
— Agora eu posso ficar aqui quatro meses
— O quê?
— Quatro meses, o combinado
— O seu francês é um problema
Como era possível que o Doutor me dissesse isso? Afinal, ele já havia me encontrado e manifestado o desejo de que eu voltasse. Mas no Seu francês é um problema eu escutei um desafio e respondi em função disso.
Não era o Penso, logo existo de Descartes que contava e sim o Digo, logo existo
— Basta me dar um tempo
O Doutor não se deixou convencer pela resposta.
— Mas eu poderia enviar você a uma discípula portuguesa radicada em Paris
Uma proposta que Lacan só fez por desconhecer a relação dos brasileiros com os portugueses, que, por terem sido os colonizadores do Brasil, se tornaram objeto de chacota. Xenofobia, claro, mas eu não me dava conta. O fato é que a transferência em relação a uma portuguesa não era possível. A posição do analista é a do sujeito suposto saber e, por razões históricas, essa posição não podia ser a dela.
Ademais, a língua falada do Brasil e de Portugal não é a mesma. Os brasileiros se delongam nas vogais enquanto a fala dos portugueses é sincopada. A partir do movimento modernista de 1922, a língua escrita do Brasil foi atrelada à falada e nós fazíamos pouco de quem telefonava para Portugal “a fim de saber como se escreve”. Eu não entraria facilmente em sintonia com a analista portuguesa. Recusei com veemência a proposta do Doutor.
— Se não for com o senhor, tomo ainda hoje o avião para o Brasil
— Bem, então volte amanhã
Lacan, cujo lema era Primo non rompere — Sobretudo não romper —, levou a sério o Tomo ainda hoje o avião. Ele sabia que era a condição absoluta do meu desejo e, se essa condição não fosse satisfeita, eu não faria análise. Por outro lado, sabia que a língua do inconsciente não é a língua natal, as línguas se interpenetram e o significante do desejo se impõe.
Outro analista poderia ter argumentado que a análise deve necessariamente ser feita na língua materna. Mas Lacan, na grande tradição humanista, era tudo menos um analista dogmático e, por privilegiar o desejo, se abriu para uma experiência pouco usual. Aceitou a analisanda e o presente que eu havia levado do Brasil, um pente indígena — talvez pelo interesse dos franceses pela cultura dos índios.
O fato é que, na sessão seguinte, o Doutor quis saber se eu era descendente de índios. Uma curiosidade que me surpreendeu. Eu nunca havia visto um índio e tampouco me interessado pela cultura indígena, a despeito da origem de São Paulo ser indissociável de sua presença. Até o século XVIII, a língua ali falada era o tupi-guarani. A minha cidade natal e a sua história não me interessavam e nisso eu era uma paulista típica.
São Paulo sempre foi indiferente ao passado. Sua bela arquitetura colonial foi substituída pela neoclássica e esta pela arquitetura do skyscraper, quando a cidade quis se igualar a Nova York. O paulista de família abastada raramente viajava para os outros estados — São Paulo era o Brasil. Ia para a Europa — fazer compras e importar costumes. O mais das vezes, costumes já em desuso no exterior. A exemplo disso, a refeição servida à francesa quando, na França, a empregada doméstica já havia se tornado raridade.
O Doutor não estava e não podia estar informado disso, e eu satisfiz a sua curiosidade sobre as origens relembrando que os meus ancestrais eram todos libaneses, imigrantes.
— E o que mais?
— O mais sou eu aqui sozinha na França. Não conheço ninguém e a cada palavra eu tropeço… as pessoas não entendem o que eu digo. Se eu não falar exatamente como deve ser, a mensagem não passa
— Hmm
Poucos dias depois da chegada, eu já estava me lamentando. Ia me entregar à tendência para a queixa e o Doutor interveio, dramatizando o que eu havia dito.
Se eu não tivesse ido à França e trabalhado com Lacan, que se interessava por tudo, nunca teria saído do consultório para escutar os carnavalescos
— Foi uma grande largada. Você passou de um para outro continente. Como se fosse descobrir a América!
Ao que era uma viagem do Brasil para a França, ele deu uma dimensão épica, transformando-a numa proeza e acenando com uma descoberta. Com efeito, eu ia descobrir um Brasil novo, o da cultura popular, à qual até então eu havia sido indiferente como os outros intelectuais paulistas. Se eu não tivesse ido à França e trabalhado com Lacan, que se interessava por tudo, nunca teria saído do consultório para escutar os carnavalescos. Comecei a fazer isso em 1979 por causa da declaração de Joãozinho Trinta na grande imprensa: “O povo gosta de luxo; quem gosta de miséria é intelectual”. A frase era uma resposta à crítica que investia contra o desfile das escolas de samba, considerando que o país não podia se dar a tal luxo. Para saber o que significava a frase do carnavalesco fui ao Rio de Janeiro, ao seu encontro.
Ouvi-o dizer empolgado que só reclamava da presença dos carros alegóricos na avenida quem morava em palacetes ou grandes edifícios, mas o povo, vivendo em casebre, em rua de lama, no aperto, queria coisas grandes, uma outra dimensão que só é encontrada no desfile, cujo luxo não é o do dinheiro e sim o das joias, que, sendo falsas, são pelas implicações mágicas as mais verdadeiras. “Vestida de nobre, uma empregada doméstica faz parte da nobreza, é a dama que queria ser, suas joias são as mais autênticas, porque são as da imaginação.”
Para o carnavalesco, como para Baudelaire, a rainha das faculdades era sem dúvida a imaginação. “Nada daquilo que existe me satisfaz/ […] prefiro os monstros da minha fantasia”, dizia o poeta, cuja afirmação poderia aparecer na abertura do desfile de uma escola de samba.
Culto presente de uma ilusão, o Carnaval reatualiza a fantasia que presidiu a descoberta do Brasil: a de encontrar o paraíso. Assim, diferenciando-se incessantemente, funciona repetindo uma fantasia ancestral, que, sendo inseparável do gosto da maravilha e do mistério, se traduzia numa geografia fantástica do Novo Mundo, cujos motivos o Carnaval retoma, apresentando entidades misteriosas, reinos áureos e argênteos, flora e fauna inusitadas.
Graças aos carnavalescos descobri que o Carnaval não é só o dia do esquecimento, mas a festa através da qual o Brasil rememora a sua história e se reinventa todo ano. Apropria-se das representações do Oriente e do Ocidente antropofagicamente, devorando-as. Não imita, brinca livremente com as representações para criar outras sempre novas e surpreendentes. Cultua o transitório e o riso, espraiando a alegria a fim de exaltar a vida.
A decisão de só fazer análise se fosse com Lacan implicou me aprofundar no francês e me tornar fluente o quanto antes. Para tanto, eu lia dia e noite. Comecei com À la recherche du temps perdu. Mas só fiz a travessia do primeiro volume de Proust com dificuldade. Sobretudo pela estranheza em relação ao universo da obra. Não lembro como cheguei a Voyage au bout de la nuit, de Céline, que me arrebatou. Talvez pelo anti-herói do romance, Bardamu, ser médico. Ou pela estilização da oralidade que caracteriza a literatura do meu país, desde que os escritores romperam com as convenções literárias de Portugal.
Para não ficar sozinha no hotel o tempo todo, eu passava horas lendo em algum bistrô. Isso me dava uma incrível sensação de liberdade. No Brasil, teria sido impossível me sentar sozinha num bar sem ser importunada. O bar era para os homens ou para os casais.
A principal razão para estar na França era a análise. Mas, pouco a pouco, à medida que eu progredia no francês, a vida parisiense se tornava uma razão forte. Não havia perigo na rua e eu dispunha da cidade
A principal razão para estar na França era a análise. Mas, pouco a pouco, à medida que eu progredia no francês, a vida parisiense se tornava uma razão forte. Não havia perigo na rua e eu dispunha da cidade. A cada passo, uma descoberta que me instigava a estudar a história de Paris. Sem me dar conta, eu ia me desligando do Brasil, onde a ditadura militar continuava a prender, torturar e executar.
- Lacan Ainda
- Betty Milan
- Zahar
- 120 páginas
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