Trecho de Livro: Estrela da Manhã, de Karl Ove Knausgård — Gama Revista

Trecho de livro

Estrela da Manhã

Primeiro romance do norueguês Karl Ove Knausgård após a série”Minha Luta” narra cotidiano de nove pessoas sob uma gigantesca e inexplicável estrela

Leonardo Neiva 23 de Fevereiro de 2024

Karl Ove Knausgård é um dos nomes que primeiro vêm à mente quando falamos em autoficção na literatura contemporânea. Autor dos seis livros da consagrada série autobiográfica “Minha Luta” — onde narra não só os acontecimentos de sua vida privada, mas também algumas de suas reflexões mais íntimas e sombrias —, o escritor norueguês rapidamente virou fenômeno, passando a ser um dos autores mais aclamados da literatura mundial e gerando também uma legião de fãs fiéis e um tanto obcecados.

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Com esse retrospecto, é natural que o lançamento de “Estrela da Manhã” (Companhia das Letras, 2024), seu primeiro romance desde o fim da série literária, com tradução de Guilherme da Silva Braga, esteja cercado de expectativas. O que pode ser mais surpreendente para quem acompanha a trajetória literária de Knausgård é o fato de este novo livro se centrar num acontecimento insólito e inexplicável, talvez até fantástico: o surgimento de uma gigantesca estrela nos céus.

A aparição, que tem ares de realismo mágico, na verdade serve para reforçar a banalidade do dia a dia de nove personagens, que o autor destrincha de forma tão detalhada e atenta quanto em “Minha Luta”. Seja um homem passando férias ao lado de esposa e filhos, um professor às voltas com seus pequeníssimos alunos, uma pastora que retorna para casa ou uma enfermeira psiquiátrica lidando com a fuga de um de seus pacientes, o escritor dedica um espaço incomum a eventos que, à primeira vista, soam absolutamente comuns. A partir das pequenas reflexões e das relações familiares, Knausgård vai pintando um retrato cada vez mais complexo sobre a finitude e a existência humana.


Emil

A última hora era sempre a melhor. As crianças menores tinham acabado de dormir e estavam tão cansadas e tão zonzas de sono que preferiam sentar no colo, enquanto as mais velhas não tinham mais energia após um dia inteiro de estripulias e também estavam em busca de paz e sossego. Eu costumava levar todo mundo para a sala das almofadas e tocar um pouco de música antes de começar a ler uma história ou duas. As crianças gostavam de antigas músicas americanas, e naquela tarde eu toquei “Father John Misty”. Outras músicas favoritas eram canções antigas do Pink Floyd — em especial “Echoes” — e Kraftwerk.

Ao fim de um ano por lá eu ainda me espantava com a forma como a música complexa também chegava até as crianças, ao contrário das histórias, que precisavam ser quase infinitamente simples para que todas estivessem dispostas a ouvir. As crianças gostavam de ouvir histórias em que se reconheciam, então havia muitas conversas sobre isso e aquilo no jardim de infância ou à mesa do café ou durante visitas aos avós, ou Peppa Pig que pulava em poças d’água, ou aquele crocodilo gentil.

Não era estranho? Que as crianças pudessem desfrutar de um dos concertos de violino de Bach, permanecer sentadas como que enfeitiçadas, escutando, enquanto todo o restante precisava ser o simples do simples?

Desliguei o ventilador, liguei a música e me acomodei junto da parede com Aksel no colo e Liam e Frida aconchegados em mim, um em cada lado. Os outros estavam deitados de costas, olhando para o teto enquanto ouviam.

Por sorte ninguém entendia a letra!

Whose bright idea was it to sharpen the knives?
Just twenty minutes ‘fore the boat capsize
If you want answers, it’s anybody’s guess
I’m treading water as I bleed to death

Do lado de fora, Saida atravessava o pátio, sem dúvida a caminho da rua aonde costumava ir para fumar. Eu sabia que Mercedes e Gunn estavam sentadas debaixo do guarda-sol, mesmo que não pudesse vê-las. A água do irrigador, onde as crianças mais velhas haviam brincado pouco tempo atrás, já estava seca, e a mangueira estava pendurada no lugar. Os brinquedos e as bicicletas estavam guardados.

Mais cinquenta minutos.

Desliguei a música e peguei o livro que havíamos de ler. As crianças estavam sentadas em círculo ao meu redor, bem próximas umas das outras, às vezes quase em cima dos colegas. As crianças pequenas não distinguiam muito bem entre o corpo delas e o corpo dos outros. Era uma característica meio animalesca, não? Aliás, tudo em relação às crianças era meio animalesco. O andar de arrasto e de gatinhas, os barulhos incompreensíveis, o olhar enigmático.

Não era estranho? Que as crianças pudessem desfrutar de um dos concertos de violino de Bach enquanto todo o restante precisava ser o simples do simples?

— Vocês se lembram do que aconteceu na história que lemos ontem? — perguntei.

— A Mia estava tomando banho de banheira! — respondeu Kevin.

— Estava mesmo — eu disse. — E hoje vamos ler sobre as férias de verão que ela tirou.

— A gente tirou férias de verão — disse Kevin.

— É verdade — eu disse. — Eu também. Alguém sabe o nome da estação que vem depois do verão?

— Outono, claro — disse Jo.

— Outono — eu disse. — Isso mesmo. Mas no livro é verão!

Uma das crianças estava cheirando mal. Devia ser Liam, que estava quieto com um rosto que parecia mais vermelho a cada instante que passava.

Aquilo podia esperar uns minutos, pensei, e então comecei a ler. Eu mostrava as páginas às crianças antes de folhear. As mais velhas ficavam inquietas ao fim de poucos minutos, começavam a mexer em alguma coisa ou a correr os olhos pela sala em busca de um ponto onde pudessem fixar a atenção. Mas as crianças menores acompanhavam-me até o fim.

Assim que terminei, a porta se abriu e Saida enfiou a cabeça para dentro da sala.

— Tudo bem por aqui? — ela perguntou.

— Tudo. Mas será que você pode levar as crianças para dar uma volta? Preciso trocar o Liam — eu disse, olhando para ele. — Não é mesmo, Liam?

Em silêncio, ele fez um gesto afirmativo com a cabeça e me olhou com aqueles olhos castanhos e tranquilos.

Enquanto as crianças mais velhas saíam ao pátio, coloquei Liam em cima do trocador que ficava no banheiro.

— Um, dois, três! — eu contei antes de tirar as meias dele com um gesto brusco.

Eu esperava ver um sorriso, como em geral acontecia, mas em vez disso ele começou a gritar e a se debater, furioso.

— Calma — eu disse, apoiando um braço sobre as pernas dele enquanto eu tentava puxar os calções com a outra mão.

— Por que você está tão bravo? O sol está brilhando e logo a sua mãe vem te buscar!

E lá estava Liam, berrando enquanto eu o segurava, com a bunda toda suja de cocô

Uma das outras crianças entrou e sentou-se no vaso em uma das cabines abertas. Era Lillian. Ela ficou balançando as pernas e olhando para mim sem nenhuma vergonha enquanto Liam berrava.

— Por que o Liam está bravo? — ela perguntou.

— Não sei — eu disse, afastando o braço que mantinha as pernas dele abaixadas. Seria impossível trocá-lo naquele momento.

Lillian puxou um pedaço de papel higiênico, se limpou, ajeitou a calcinha e estava prestes a sair do banheiro.

— Você precisa lavar as mãos — eu disse.

— Ah, é! — ela disse, e então subiu no banquinho plástico que as crianças usavam para alcançar a pia.

Liam continuava gritando e se debatendo. Será que eu devia trocá-lo à força, pensei quando Lillian enfim saiu, ou será que primeiro eu devia pegá-lo no colo até que se acalmasse?

Olhei ao redor em busca de alguma coisa que pudesse distraí-lo.

Havia um coelhinho de pano na estante logo acima. Entreguei-o para Liam, mas ele o jogou no chão.

Ele estava realmente furioso.

— Eu vou ter que trocar você de um jeito ou de outro — eu disse. — Não tem nenhum problema, né?

Segurei os tornozelos dele com uma mão enquanto eu soltava os adesivos da fralda com a outra. O cocô lá dentro era mole e amarelo, e havia se espalhado pelas coxas e pela bunda dele. Levantei as pernas, puxei a fralda, cheirei-a e a joguei na lixeira. Só naquela hora percebi que os lenços umedecidos estavam na estante do outro lado do banheiro.

E lá estava Liam, berrando enquanto eu o segurava, com a bunda toda suja de cocô.

— Saida? — eu chamei. — Você pode me ajudar aqui?

Não houve resposta.

Ou eu podia baixar as pernas dele e pegar os lenços às pressas — isso não levaria mais do que um piscar de olhos, e mesmo que Liam ficasse sozinho em cima do trocador, não haveria tempo para que caísse lá de cima antes que eu estivesse de volta — ou então eu podia levá-lo comigo. Mas nesse caso eu com certeza acabaria sujo de cocô, pensei, abaixando as pernas dele. Afinal de contas, seria melhor que o trocador acabasse sujo.

— Eu só vou ali pegar os lenços umedecidos — eu disse. — Não se mexa, está bem?

Ele morreu, senti dentro de mim

Como que por milagre, ele parou de se debater.

Mantive a mão esquerda perto dele, como uma proteção, enquanto eu virava o corpo. Em seguida dei os poucos passos necessários para chegar ao outro lado do banheiro e peguei o pacote de lenços umedecidos.

Estava vazio.

Quem foi que deixou um pacote vazio aqui?, pensei, e então abri o armário à procura de um pacote fechado, peguei um deles e me virei ainda a tempo de ver Liam rolar para além da borda do trocador. Me joguei na direção dele, mas já era tarde demais e ele caiu no chão.

Liam caiu de cabeça.

Os olhos dele estavam abertos quando me inclinei por cima dele, mas pareciam totalmente vazios.

Ele morreu, senti dentro de mim.

Não, não pode ser.

Produto

  • Estrela da Manhã
  • Karl Ove Knausgård (trad. Guilherme da Silva Braga)
  • Companhia das Letras
  • 656 páginas

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