Trecho de Livro: Sonho Manifesto, de Sidarta Ribeiro — Gama Revista

Trecho de livro

Sonho Manifesto

A partir das contradições inerentes aos seres humanos, neurocientista Sidarta Ribeiro destaca em novo livro a importância do sonho coletivo em um presente apocalíptico

Leonardo Neiva 29 de Abril de 2022

Aparentemente fadado a se encaixar no papel de opressor ou oprimido desde sua origem, o ser humano já demonstrou também ser capaz de atos de extrema benevolência e altruísmo. Essa contradição é o que o famoso neurocientista e biólogo Sidarta Ribeiro usa em “Sonho Manifesto” (Companhia das Letras, 2022) como código para compreender o atual momento da humanidade, afundada numa terrível crise ambiental e social, mas vivendo ao mesmo tempo uma oportunidade única de fazer avançar a consciência do planeta. Uma incongruência que se encontra no subtítulo “Dez exercícios urgentes de otimismo apocalíptico”.

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Autor de obras de sucesso como “O Oráculo da Noite” e “Limiar” (Companhia das Letras, 2019 e 2020), Ribeiro é professor de neurociência e fundador do Instituto do Cérebro da UFRN, além de mestre em biofísica e doutor em comportamento animal. Discípulo dos mestres da capoeira Caxias e Paulinho Sabiá, tem entre os principais interesses o estudo do sono, do sonho e da memória, áreas que costuma explorar lançando mão de aspectos da história, da antropologia, da psicanálise, da biologia, da neurofisiologia e da literatura.

Em seu novo livro, aponta que o principal caminho para o sonho coletivo é pelo resgate da nossa ancestralidade. Dos saberes de pajés, xamãs e babalorixás ao conhecimento de cientistas, passando pelas experiências de artistas, inventores e mestres de múltiplos saberes populares pelo mundo, o autor tece uma colcha de retalhos que busca um despertar para a importância de reaprender a sonhar com o futuro do mundo. Isso especialmente num momento em que ele parece estar saindo de um longo e intenso trauma coletivo, no qual lançar o olhar para trás é também uma das melhores formas de ver o que está por vir.


Perceber a oportunidade de mudar

Reza a mais antiga tradição budista da Índia que um jovem brilhante de origem bramânica, perturbado pelas manipulações malignas de seu mestre, foi convencido a colecionar os dedos de mil pessoas diferentes e passou a viver na selva como um assassino sanguinário. Conhecido por usar em torno do pescoço um colar feito com as falanges de suas vítimas, respondia pela alcunha de Angulimala, que significa “guirlanda de dedos” na língua pali.

Com o tempo, a fama do assassino cresceu e gerou pânico na população. Após o esvaziamento de vilas inteiras, o rei daquela região determinou a captura e a execução de Angulimala. A sentença fez sua mãe procurá-lo na floresta para alertá-lo sobre o grande perigo que corria. Ao se inteirar da situação, o Buda, que passava ali por perto, resolveu encontrá-lo também, para evitar o crime horroroso.

Enquanto a mãe buscava em vão na selva, o filho fugia dos soldados do rei. Àquela altura, Angulimala já havia matado 999 pessoas e estava muito ansioso para completar sua missão. Após dias de perseguição, faminto, insone e exausto, resolveu matar o próximo que avistasse, não importava quem fosse. Ao fazer a milésima vítima, o renegado cortaria o último dedo para a guirlanda brutal que havia prometido completar.

Foi então que Angulimala, escondido entre as árvores no topo de uma montanha, avistou um vulto feminino que passava ali perto. À distância, o assassino não distinguiu a própria mãe e apressou-se para atacá-la. Entretanto, quando chegou bem perto, ele a reconheceu e hesitou.

No mesmo momento surgiu o Buda. Angulimala imediatamente decidiu fazer dele a sua última vítima, poupando a mãe. Sacou o punhal e investiu contra o Buda, mas este continuou a se mover, e Angulimala, por mais que se esforçasse, não conseguia alcançá-lo. Ao perceber que não o apanharia, gritou: “Pare!”.

O Buda retrucou: “Eu parei, foi você quem não parou”. Angulimala ficou confuso com essa resposta, e o Buda explicou: “Digo que parei porque desisti de matar qualquer ser vivo e medito para nutrir o amor e a paciência. Você, entretanto, não desistiu de matar seres vivos e não cultiva nem amor, nem paciência. Você é, portanto, aquele que não parou. Por que faz tantas coisas irreversíveis?”.

E então, naquele exato instante, ao escutar as palavras sábias do Buda, Angulimala se iluminou. Nada do que havia vivido até ali fazia qualquer sentido. Ajoelhou-se, tirou do pescoço o colar de dedos, depôs as armas e pediu humildemente ao Buda que o tomasse por discípulo. Defendido pelo próprio Buda, o homem que já não queria ser Angulimala foi perdoado pelo rei e passou a viver em harmonia e paz, dedicando-se a meditar e a servir aos mais necessitados.

Muitas pessoas, entretanto, questionaram o Buda sobre as chances de aquela mudança ser real. Como uma pessoa tão violenta, egoísta e impulsiva poderia de fato ter aprendido a acalmar a mente e espalhar o bem? Depois de todos os crimes cometidos, como aquele homem atormentado alcançaria a felicidade e a bondade genuínas? A esses céticos o Buda respondia: “Ele fez tantas maldades porque sua mente estava ferida e sofria de dor e raiva. Mas depois aprendeu a ouvir boas palavras, aprendeu a meditar e curou a própria mente”.

Como uma pessoa tão violenta, egoísta e impulsiva poderia de fato ter aprendido a acalmar a mente e espalhar o bem?

O mito do encontro entre o Buda e Angulimala serve de inspiração para todas as pessoas opressivas deste planeta, não importa a qual posição social pertençam. É sempre possível e desejável deixar de cometer maldades irreversíveis. Cabe ao forte cuidar do fraco, e não destruí-lo. Ao perceber a irreversibilidade de seu ato odioso e fútil, o predador sempre pode se iluminar.

Mas o mito desse encontro também serve de inspiração para todas as pessoas oprimidas deste planeta. Às pessoas vulneráveis de todas as classes, raças, cores, gêneros, religiões, orientações sexuais, nacionalidades, idades, portes ou condições de saúde, cabe tomar consciência de que precisam deixar de ser predadas, de que precisam se mover para não ter seus dedos arrancados enquanto trilham seu próprio caminho em busca da iluminação.

O vírus que colocou todo o planeta de joelhos nos obriga a reconhecer o estado de sofrimento crescente em que já vivíamos antes mesmo do início da pandemia. Nossas agruras sanitárias foram precedidas e vêm sendo acompanhadas de muita intolerância, violência, angústia e mentiras. Notícias falsas se espalham na internet muito mais do que notícias verdadeiras, e a polarização política nunca foi tão intensa. Nessa Babel pós-moderna, em meio às luzes cada vez mais brilhantes do novo milênio e apesar de todo o impressionante avanço da ciência e da multiplicação dos mais diversos tipos de templos e igrejas que prometem felicidade, paz e harmonia, nós, imersos em 1,4 bilhão de carros e em 3 bilhões de smartphones, sofremos dores terríveis no corpo e na mente.

A Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO, na sigla em inglês) estima que existam hoje entre 720 milhões e 811 milhões de pessoas com fome, das aldeias yanomamis às cidades do Líbano. Nos Estados Unidos, entre 1999 e 2017, a taxa de suicídio aumentou 33%. Em todo o mundo, cerca de 800 mil pessoas cometem suicídio todos os anos — o dobro do número de homicídios. O sofrimento cresce e parece que vai explodir.

Na Amazônia, um respeitado cacique do povo wajãpi é encontrado esfaqueado num rio perto de sua casa, com os olhos perfurados e o pênis decepado. Nos Estados Unidos, empresas oferecem viagens turísticas ao espaço. Em Tóquio, uma programadora coreana, que apesar dos três empregos mal consegue pagar as contas, tenta novamente o suicídio. No Rio de Janeiro, uma combativa vereadora anticapitalista, antirracista e lésbica é executada com seu motorista, ambos metralhados por ex-policiais ligados ao atual presidente da República. Na Califórnia, uma faxineira mexicana que limpa banheiros seis dias por semana apanha do marido bêbado no sábado à noite. Na Ucrânia oriental, mãe e pai choram a morte do filho de dezoito meses durante um bombardeio russo. Nas Bahamas, suicida-se uma bilionária austríaca de 102 anos que desistiu da última cirurgia plástica e gemeu de medo até o fim. A única herdeira dela, em Paris, exagera na dose de vários remédios tarja preta e se afoga no próprio vômito. Em Alter do Chão, no Pará, morre de covid-19 uma matriarca indígena que ensinava canções, histórias e ervas de seus ancestrais. Numa prisão de segurança máxima perto de Moscou, após sobreviver a um envenenamento, um opositor do regime russo é forçado a assistir a oito horas diárias de propaganda estatal. Em Moçambique, uma transexual do Zimbábue está apavorada com os massacres e estupros dos milicianos que vêm do Norte. Num hospital privado em Raipur, na Índia, morre de covid-19 uma líder histórica do partido fundamentalista hindu. Na Polinésia, urra de dor a cozinheira intoxicada por microplásticos e metais pesados acumulados nos peixes que cozinha e come. Num campo de refugiados do Iêmen devastado pela guerra, agoniza e morre de desnutrição uma menina de sete anos. Em São Paulo, um garçom boliviano sofre calado pela gorjeta que não recebeu — ele precisa de 35 reais para inteirar a passagem e visitar a filha brasileira no hospital, intubada com os pulmões tomados por vírus após um tratamento ineficaz com vermífugos.

Em todo o mundo, cerca de 800 mil pessoas cometem suicídio todos os anos — o dobro do número de homicídios. O sofrimento cresce e parece que vai explodir

Algumas dessas histórias são reais e outras são imaginárias, mas é quase impossível separar fato e ficção neste momento tão triste da trajetória humana. A imensa dor que sentimos extravasa as fronteiras interpessoais, transborda limites geográficos e invade as experiências de todas as pessoas do planeta, com exceção apenas daquelas incapazes de qualquer empatia.

Entretanto, apesar de enorme, toda essa dor não chega a ser igualmente distribuída. É evidente que os pobres sofrem mais do que os ricos, que as mulheres sofrem mais do que os homens, que os pretos sofrem mais do que os brancos e que os povos originários sofrem mais do que os povos invasores. Do leste do Sri Lanka ao interior de Angola, dos confins da Austrália às montanhas da Colômbia, sempre foi assim.

A grande novidade é que hoje, com cada vez mais mentes conectadas ao espaço virtual, em que cada indivíduo pode narrar sua própria história, estamos nos dando conta, coletivamente, da universalidade de nossas limitações. Somos ignorantes, sofredores, imperfeitos e fadados ao fim. Finitos macacos agarrados a crenças fugazes, habitantes transitórios da ilusão de ser, ter e poder, crianças eternamente em busca de conforto, atenção e sentido, com ambições difusas de uma realização que não chega nunca porque a neurose coletiva clama por mais sacrifício, sofrimento e dor.

Um exemplo gritante de nossa neurose é o fato de que a pandemia foi prevista com muitos anos de antecedência por epidemiologistas, virologistas e políticos, e mesmo assim não conseguimos evitá-la. Em 2014, o então presidente Barack Obama alertou:

Pode e provavelmente chegará um momento em que teremos uma doença mortal transmitida pelo ar. E para que possamos lidar com isso de forma eficaz temos de implementar uma infraestrutura — não apenas aqui em casa, mas globalmente — que nos permita percebê-la, isolá-la e responder a ela com rapidez. E também requer que continuemos o mesmo caminho de pesquisa básica que está sendo feito aqui [nos Estados Unidos]. Assim, se e quando uma nova cepa de gripe, como a gripe espanhola, surgir em cinco anos ou em uma década, teremos feito o investimento e estaremos mais adiantados para sermos capazes de contê-la. É um investimento inteligente a ser feito. Não é apenas seguro; é saber que no futuro continuaremos a ter problemas como esse — em especial num contexto globalizado, em que você vai de um lado do mundo para outro em um só dia.

Obama não chegou a dizer nesse discurso que poderíamos ter evitado a tragédia se invadíssemos menos o ambiente natural e viajássemos menos de avião, coisas que ajudariam a impedir a disseminação do vírus entre humanos. Mas Obama advertiu de maneira explícita para a necessidade de se investir em ciência com o objetivo de detectar e conter o patógeno, impedindo que a então provável epidemia se tornasse o que afinal sobreveio: a pandemia.

Somos ignorantes, sofredores, imperfeitos e fadados ao fim. Finitos macacos agarrados a crenças fugazes, habitantes transitórios da ilusão de ser, ter e poder

Produto

  • Sonho Manifesto
  • Sidarta Ribeiro
  • Companhia das Letras
  • 200 páginas

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