Brancura
Novo livro do norueguês Jon Fosse, vencedor do Nobel de Literatura 2023, é uma breve narrativa sobre conflitos existenciais de um personagem que dirige sem destino até se perder em uma floresta em meio a uma nevasca
Há pelo menos dez edições do Nobel de Literatura o nome de Jon Fosse aparece na lista de cotados a levar o prêmio, coisa que finalmente aconteceu no início deste mês. Na fervura do tributo ao norueguês de 64 anos, conhecido por obras que tratam de temas humanos, demasiado humanos, como amor, fé e finitude, chega agora pela Fósforo ao Brasil “Brancura”, o primeiro romance do autor após aquela que é considerada sua obra-prima, “Septologia”, que deve ser publicado em 2025 também pela editora.
Diferentemente de seu antecessor, que tem mais de mil páginas, o novo livro é bem mais enxuto: são apenas 64. Mas essa breve narrativa traz todos os elementos que fizeram de Fosse um ícone da escrita europeia contemporânea. O narrador de “Brancura” se vê imerso em conflitos existenciais após dirigir sem destino — “em nome da boa sensação de estar em movimento” — e se perder em uma floresta de mata fechada em meio a uma nevasca, ao anoitecer. Nesse ambiente angustiante de claro e escuro, opersonagem se depara com uma criatura misteriosa e cria-se aí uma atmosfera de sonho (e pesadelo).
Constantemente comparado ao conterrâneo Henrik Ibsen e ao irlandês Samuel Beckett, Fosse transita por diversos gêneros. Além de romance, também tem ensaios, poesias, literatura infantil e textos teatrais, traduzidos em mais de 50 idiomas. Traduzir o escritor, entretanto, é um bom desafio, já que Fosse escreve em neonorueguês, ou “nynorsk” —uma mistura de dialetos falados na costa do país. Transportar o universo de “Brancura” para o português ficou a cargo de Leonanrdo Pinto Silva, que já traduziu um clássico pop da literatura da Noruega, “O Mundo de Sofia”, de Jostein Gaarder.
Eu dirigia sem parar. Era bom. Era boa a sensação de estar em movimento. Sem saber para onde estava indo. Apenas dirigia. O tédio havia se apoderado de mim, logo de mim, que nunca me deixei afetar por ele. Nada que me passasse pela cabeça me animava. Por isso decidi fazer alguma coisa. Entrei no carro e fui para onde ele me levasse, se no caminho houvesse uma curva à esquerda ou à direita, eu virava à direita, e se, no cruzamento seguinte, pudesse virar à direita ou à esquerda, eu virava à esquerda. E continuei dirigindo assim. Acabei enveredando por uma estrada no meio da floresta, e os sulcos no chão foram se aprofundando até que senti o carro patinar. Segui em frente, até o carro finalmente empacar. Ensaiei dar uma ré mas não consegui, então estanquei de vez. Desliguei o motor. Fiquei sentado no carro. Pois bem, cá estou eu agora, cá estou eu agora sentado, pensei, e me senti vazio, como se o tédio tivesse se transformado num vazio. Ou, melhor dizendo, numa espécie de agonia, porque senti um medo em mim enquanto estava ali com o olhar fixo adiante, fitando o vazio, como estivesse diante do vácuo. Do nada. Que conversa é essa, pensei. Diante de mim está a floresta, só a floresta, pensei. Então foi até a floresta que esse ímpeto de dirigir me trouxe. Poderia dizer de outra maneira, que alguma coisa, não sei bem o quê, me conduziu a alguma outra coisa, fosse lá o que fosse, a uma coisa distinta. Contemplei a floresta à minha frente. A floresta. Sim, árvores próximas umas das outras, pinheiros, um pinhal. E entre as árvores o solo marrom, ressequido. Eu me senti vazio. E também com essa agonia. Do que eu sentia medo. Por que estava com medo. O medo era tamanho que não consegui nem sair do carro. Não me atrevi. Quer dizer, eu estava aqui, nessa estrada, no meio da mata, para onde dirigi e fiquei preso, quase onde a estrada termina. Vai ver por isso senti essa agonia, porque deixei o carro empacar no fim de uma estrada no meio da floresta, e bem aqui, no fim dessa estrada, não havia espaço para manobrar. Não lembrava, depois que peguei essa estrada, ter passado por algum trecho em que pudesse retornar. É bem possível. Sim, porque se eu tivesse avistado um retorno decerto teria parado o carro e dado meia-volta, pois dirigir por uma estrada tão estreita cortando essa paisagem de colinas onduladas não diminuía minha agonia, pelo contrário, só a aumentava. Mas não passei por nenhum retorno, provavelmente era isso que eu esperava acontecer o tempo todo, sim, avistar um lugar adiante para encostar o carro, engatar ré, avançar um pouco, talvez repetir esse movimento algumas vezes, sim, até conseguir manobrar e voltar para a rodovia, e então prosseguir para algum lugar, mas para qual, para um lugar em que tivesse gente, e lá eu pudesse comprar alguma coisa para comer, quem sabe um cachorro-quente, ou talvez, podia muito bem ser, chegar a uma lanchonete no acostamento da rodovia para fazer uma parada e comer. Era bem possível. De repente me dei conta de que já haviam se passado dias, não lembro quantos, desde a última vez que tinha feito uma refeição decente. Se bem que provavelmente é sempre assim com quem mora sozinho. Cozinhar é um estorvo, sim, é bem mais fácil recorrer ao que está à mão, uma fatia de pão, se houver pão em casa, com o que estiver na geladeira, na maioria das vezes maionese pura e simples e umas fatias de salame. Mas isso lá é coisa para ficar remoendo, como se eu não tivesse coisas mais importantes com que me preocupar. Mas com o que então. Que estupidez me perguntar, até mesmo pensar sobre isso. Estou com o carro preso numa estrada na floresta, não tem ninguém por perto, e não consigo tirá-lo daqui, então suponho que isso já seja o bastante para me ocupar, sim, ocupar a cabeça, como se diz, me ocupar imaginando como tirar o carro daqui. Pois o carro não pode ficar preso aqui como está agora. Óbvio que não. Tão óbvio que chega a ser uma bobagem pensar isso. Cá estou eu olhando para o carro e ele apenas me devolve o olhar, estúpido. Ou será que esse olhar estúpido é o meu. Repare como ele parece estúpido ali, enganchado num montinho, como se diz, no meio da estrada, que se prolonga mais alguns metros até se transformar numa trilha pelo coração da floresta. Que diabos eu vim fazer nesse lugar. Por que vim dirigindo até aqui. Por que eu tinha que inventar isso. Por que motivo agi assim. Nenhum motivo. Nenhum. E por que dirigi até essa estrada no meio da floresta. Por puro acaso, talvez. Sim, não há outro nome para isso. Mas o acaso, o que é mesmo. Não, não vou começar a pensar essas baboseiras. Nunca leva a nada. O que preciso agora é fazer meu carro andar. E depois manobrá-lo. Mas há outra coisa.
- Brancura
- Jon Fosse
- Editora Fósforo
- 64 páginas
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