Trecho de Livro: A Casa dos Significados Ocultos, de RuPaul — Gama Revista

Trecho de livro

A Casa dos Significados Ocultos

Em livro de memórias, RuPaul revisita infância e juventude numa exploração da sua trajetória como um dos artistas e drags mais famosos do mundo

Leonardo Neiva 08 de Março de 2024

RuPaul dispensa apresentações. Mesmo assim, a Mãe das Drags, há 15 anos à frente do popular reality “RuPaul’s Drag Race” (2009-), decidiu se apresentar no livro de memórias “A Casa dos Significados Ocultos” (Intrínseca, 2024). Desde a infância como uma criança negra e queer vivendo na cidade de San Diego até a construção de uma identidade própria nas cenas punk e drag em Atlanta e Nova York, RuPaul vai destrinchando sua trajetória da juventude à idade adulta, do complexo relacionamento com o pai ausente e a mãe temperamental ao casamento com Georges Le Bar, seu marido até os dias de hoje.

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Além de ser um dos principais ícones drag e LGBTQIA+ do mundo e de estar à frente de um dos maiores reality shows da atualidade, RuPaul se tornou o primeiro artista negro a receber 12 prêmios Emmy, com a franquia de realities que inclusive ganhou recentemente sua versão brasileira. Em “A Casa dos Significados Ocultos”, que tem tradução de Helen Pandolfi, volta ao passado para explorar sua formação como artista, produtor e ícone do entretenimento. No Brasil, RuPaul também já publicou “Arrase” (HarperCollins Brasil, 2017), um guia de moda, beleza e autoestima.

Contrapondo a família com a qual o autor cresce e aquela que vai escolhendo ao longo da vida, a obra celebra em cada página as características que nos tornam quem somos, num dos livros mais íntimos e reveladores de RuPaul. “É preciso destruir o velho para abrir espaço para o novo”, diz no prólogo, em que revisita a cidade de Atlanta, perdido em memórias da juventude. No livro, o passado não é bem destruído, mas reconstruído pela perspectiva de uma vida plena e bem-sucedida, numa intensa homenagem ao poder da transformação.


Quando era criança, eu sempre pensava em quem seriam as pessoas mais inteligentes do mundo. O que estariam fazendo? No que estariam pensando? Tinha quase certeza de que não seria ninguém muito conhecido, como políticos de Washington ou estrelas de Hollywood. Achava que as pessoas mais inteligentes do mundo eram aquelas de quem ninguém nunca ouvira falar, porque eram espertas o suficiente para ficar de boca fechada. Tinham consciência de que seriam queimadas em uma fogueira se os outros descobrissem o quanto elas sabiam das coisas.

Em quase toda história de faroeste, o mocinho — que é o xerife — sempre parte em busca do vilão, enquanto o sub-xerife prende um inocente. De alguma forma, os habitantes da cidade conseguem tirar a pessoa acusada injustamente da cela e a enforcam antes que o xerife tenha tempo de retornar à cidade. Quando finalmente chega com o verdadeiro criminoso, ele pergunta:

— O que vocês fizeram?

Eu compreendia o que essas histórias queriam dizer: a mentalidade de turba é uma coisa insensata e perigosa. E a turba nunca busca justiça, quer apenas sangue. Nosso inimigo número 1 é a falta de discernimento, e eu sempre soube que poderia ser perigoso demonstrar ser diferente dos demais.

Minha família paterna, assim como as pessoas do bairro onde eu morava em San Diego e meu pai, ainda eram escravizados. Eles tinham medo de tudo. Sempre buscavam validação para atenuar os próprios medos, e isso fazia com que se sentissem bem por um breve momento, mas eles não eram livres. Eu sabia que aquela não era a minha comunidade; compartilhava o senso de humor deles, mas nada além disso. Em termos de sensibilidade, me via mais na ancestralidade francesa de minha mãe.

O problema em ser bichinha era que esse não era um papel importante ou que alguém visse como o de personagem principal

Lembro que, aos 5 anos, eu estava com outras crianças quando uma delas me chamou de bichinha pela primeira vez. O que aquilo significava? Embora não soubesse ao certo, tinha noção de que era uma acusação da qual precisava me defender. Assim como foi no piquenique e acontecia na televisão, entendi que havia um teatro acontecendo de modo implícito e que, nessa peça, os papéis já tinham sido atribuídos. E a partir de então, enquanto eu estivesse em San Diego, teria que desempenhar o papel que a mim fora atribuído e que, naquela época, era o de “bichinha”. Todas as outras pessoas tinham seus papéis também, e era de suma importância que eu descobrisse quais eram, porque havia acabado de entrar em um jogo cujas regras precisava dominar se quisesse ganhar.

O problema em ser bichinha era que esse não era um papel importante ou que alguém visse como o de personagem principal. Eu recebera um papel que não era relevante dentro do sistema de valores do mundo como um todo, principalmente porque eu não fazia ideia do significado daquela palavra. Apenas sabia que tinha minha magia, mas a maioria das pessoas não conseguia enxergá-la. Teria que provar meu valor de outra forma.

No entanto, ainda que eu fosse visto como bichinha, sentia que sempre havia sido bem cuidado — até mesmo protegido.

Quando eu estava no segundo ano do ensino fundamental, era comum que as crianças comessem no refeitório lanches que levavam de casa ou que fossem para casa almoçar e voltassem a tempo do fim do recreio. Na maioria das vezes, eu ia para casa tomar mingau de aveia com passas. Mas, certo dia, cheguei lá e percebi que a porta estava trancada. Bati e ninguém atendeu. Achei estranho, porque minha mãe costumava ficar em casa. Imediatamente pensei que devia ter acontecido alguma coisa, provavelmente algo entre minha mãe e meu pai — algo no relacionamento deles —, e que por isso ela não estivesse em casa. Não havia outra razão para minha mãe ter saído. Ela nem sequer sabia dirigir.

Ainda que eu fosse visto como bichinha, sentia que sempre havia sido bem cuidado — até mesmo protegido

Fiquei sentado na varanda esperando por ela. Aguardei um tempão, até o fim do que teria sido meu recreio. Voltei para a escola com fome e, quando fizemos fila para entrar em sala de aula, comecei a chorar. Não queria chamar atenção. Mesmo naquela idade, eu sabia como manter a calma. Mas não consegui conter as lágrimas.

Uma menina atrás de mim percebeu e gritou:

— Srta. Lang! RuPaul está chorando!

Todas as crianças ficaram em silêncio e olharam para mim.

A srta. Lang era uma mulher branca e alta. Estava usando um vestido de cor sóbria, óculos de gatinho e o mesmo penteado que Mamie Eisenhower. Ela veio até mim, tirou um bloquinho de notas e um lápis do bolso e escreveu um bilhete.

— Leve isso até o refeitório — instruiu ela.

Fui até o refeitório deserto e entreguei o bilhete para a moça da comida, que me deu uma bandeja com um cachorro-quente e umas batatinhas chips. Quando fui me sentar, vi que o diretor da escola estava lá também. Ele usava uma camisa branca de manga curta por dentro da calça e uma gravata fina e longa. Coloquei a bandeja na mesa em que ele estava e nós comemos lado a lado. Naquele momento, eu soube que estava sendo cuidado. Minhas necessidades haviam sido atendidas.

Eu era especial. Mas também estava sozinho

Por que eu me lembro disso até hoje? Pela crise evitada por pouco; pelo medo visceral de não saber onde minha mãe estava; pelo desconforto físico da fome e pelo constrangimento das lágrimas. Mas, acima de tudo, lembro porque foi a primeira vez que o mundo se reorganizou para acolher o que eu estava sentindo, que era diferente, à parte dos demais. Eu era a única criança no refeitório almoçando com o diretor.

Nesse sentido, eu era especial. Mas também estava sozinho.

Produto

  • A Casa dos Significados Ocultos
  • RuPaul Charles (trad. Helen Pandolfi)
  • Intrínseca
  • 288 páginas

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