Histórias que transbordam na vida do país
José Henrique Bortoluci montou um quebra-cabeça da sua história enquanto narrava a participação do pai nos principais momentos da história do país, das tensões e das belezas destruídas pela ganância
“Palavras são estradas. É com elas que conectamos os pontos entre o presente e um passado que não podemos acessar”. Meu primeiro destaque no livro do José Henrique Bortoluci, “O Que É Meu” (Editora Fósforo, 2023), me provocou em todos os lugares do meu corpo, senti meus pés formigarem e meu peito parecia que ia explodir.
“Como assim não consegui escrever nada parecido do meu padrinho, será que preciso escrever sobre meu pai que não conheci, mas aí teria que inventar uma história. Do meu padrinho, não.” Eu ia lendo e pensando nisso, a todo tempo com uma escrita viva e cheia de contornos de uma história que transborda na vida do país. Quem são essas pessoas que construíram o Brasil ao mesmo tempo que nos criaram da forma que puderam?
Li a história do Seu Didi e não consegui não me emaranhar nas memórias lá de casa e pensar na história do Seu Francisco, meu padrinho, que eu chamava de pai.
Todos os dias às 5h da manhã Seu Francisco estava de pé. Só me lembro daquele corpo alto e forte, mas já cansado. Não tinha descanso, talvez a cervejinha nos finais de semana, que no final da vida foram virando cervejas diárias, como quem quer acabar com uma agonia de se estar sóbrio. Mas antes era só aos finais de semana, no bar do Roque, onde eu comprava gibi (doce de amendoim) para comer na hora de chamá-lo para almoçar.
Quem são essas pessoas que construíram o Brasil ao mesmo tempo que nos criaram da forma que puderam?
Saía de casa cedo com seus ajudantes e uma mala grande de ferramentas, pesada e comprometida com o trabalho que precisava entregar. Louco pelos filhos, louco pelos netos, mas sem muito tempo para carinho, era avesso a muitas palavras. Mas com o olhar já colocava ordem na bagunça toda das crianças.
Eu tinha um orgulho danado. Ele sentava e me contava como eram as coisas do trabalho, nomes de madeiras, tipos de telhados, forros e portas. Ele podia ficar por horas assim, mas não sei se algum biógrafo ouviria Seu Francisco e se interessaria por sua história. O que teria um carpinteiro para contar?
Na história contada pelo José no livro, Seu Didi dirigia por uma estrada presenciando florestas e rios, que foram dando lugar a rodovias, garimpos, pastos e usinas, e também sentiu a política desenvolvimentista que não se importava com as pessoas nesta estrada. “Meu pai nunca se interessou por política. Para ele, como para boa parte de seus amigos e conhecidos, a política aparece como fenômeno sazonal, principalmente durante eleições, e mesmo aí sem nenhuma paixão. Sua teoria é que não importa que candidato vença nas eleições, já que no outro dia a gente vai ter que trabalhar do mesmo jeito”.
Não concordo com você, José.
É a nossa história que faz parte de um imaginário político que maltratou trabalhadores sob a justificativa de um projeto de futuro equivocado
Seu Didi, assim como Seu Francisco, ajudaram a construir um país. Eles viram isso tudo crescer. José montou um quebra cabeça da sua própria história ao mesmo tempo que narrava a participação do pai nos principais momentos da história do país, das tensões e das belezas destruídas pela ganância. É a nossa história que faz parte de um imaginário político que maltratou trabalhadores sob a justificativa de um projeto de futuro equivocado.
Seu Francisco, um homem branco, descendente de italianos, como Seu Didi, era carpinteiro. Passava os dias trabalhando com madeira, subindo e descendo escadas altas em obras de grandes casas, que nunca foram sua casa. Ganhando pouco e dividindo com os ajudantes. Fazendo o dinheiro do mercado do mês e mantendo o gato da luz e da água funcionando. Nunca soube bem como a internet funcionava.
Quando eu cheguei em casa avisando que tinha uma universidade que dava bolsa e eu conseguiria pagar metade se passasse na prova, ele sentou comigo na mesa da cozinha. Seu copo de café cheio, pernas cruzadas e o cigarro Free azul nos dedos, sorriu, e me disse que estava feliz, mas que não conseguiria me ajudar a pagar, era apertado demais para ele. Mas que eu deveria fazer e a gente via como arrumava e cuidava de tudo.
Muito trabalho, pouco dinheiro, como Seu Didi e Dona Dirce.
“Te busco no ponto de ônibus e de manhã a gente passa o bilhete único juntos, mas aí você precisa sair muito cedo comigo, tá?”. Eu aceitei, mas deveria arranjar um trabalho logo. Nas noites que eu chegava muito tarde ou não havia luz no bairro ele me esperava fumando cigarro no ponto e subíamos para casa juntos. Quatro anos depois me formei, e lá estava ele, andou 5km da avenida até o lugar da colação de grau, porque o ônibus estava demorando demais. Voltamos todos de ônibus e ele com o peito cheio de alegria.
Nessa época minha madrinha já tinha falecido. Ela é outra história longa. História de quem cria a gente é um mundaréu de páginas. Talvez uma coletânea.
No dia 27 de outubro de 2002, eu tinha 14 anos, estávamos sentados na ponta da cama, onde ele costumava assistir televisão aos domingos antes de deitar. “Lula ganhou!”, ele gritou com força e arrancou um salto para ficar de pé. Foi a primeira vez que o vi reagindo a alguma situação política. “Se a gente não morasse tão longe eu iria agora para a Paulista.” Fiquei ali, olhando a televisão, queria entender melhor o que estava acontecendo, eu não votava ainda, mas desejava tanto ter votado naquele instante.
Não soube de cartas de amor, como as que Dirce escrevia para Didi, entre Francisco e Lourdes, costureira e dona de casa. Mas presenciei o amor e o ciúme conviverem por anos. Um não fazia nada sem falar com o outro, só ela tinha segredos, ele eu acho que não. Ela protegia os filhos e netos de broncas dele e ele chamava ela na cozinha e contava tudo sobre seu dia.
Depois que minha madrinha se foi, metade dele foi também. Ele quase não chorou, arrumou toda a burocracia e sentou no quintal fumando seu cigarro depois que voltamos do enterro. Em silêncio, que aumentou como a bebida até o dia 18 de julho de 2022. Quando caiu na rua e nunca mais ouvimos sua voz — e seu olhar, que ia ao longe.
O livro que mais me atravessou de tantos que li. “O Que É Meu” transborda em sensibilidade e história. História das estradas que passam por longas distâncias de casa e dentro de seus corpos. Uma travessia entre a vida e a vida, as diversas que podemos ter. Um caminho dentro e fora do caminhão e cheio de cicatrizes.
Mariana Belmont é jornalista e membro da Rede de Jornalistas das Periferias e parte da rede de Jovens Transformadores pela Democracia, da Ashoka Brasil e militante da Uneafro Brasil. Atualmente, é superintendente de Programas e diretora de Clima e Cidade no Instituto de Referência Negra Peregum