(In)visiBIlidade dos bissexuais — Gama Revista
COLUNA

Winnie Bueno

(In)visiBIlidade

Não abordar a minha própria sexualidade, significa apresentar uma visão distorcida das minhas próprias lutas e da minha identidade

21 de Setembro de 2022

Talvez o público leitor não saiba mas eu gosto de meninos e meninas tal qual a letra da canção. Nem sempre foi assim, mas hoje é. Sou uma mulher preta bissexual assumida que se relaciona com homens e mulheres e que se sente atraída por ambos. Se hoje é bastante tranquilo escrever isso em uma coluna para qualquer pessoa ler, saiba que nem sempre foi. Para ser bem honesta eu só descobri que era bissexual depois de achar que era hetéro e depois de ter certeza de que não era lésbica.

Escrevendo assim parece que foi tranquilo chegar até essa afirmação da minha própria sexualidade, mas saibam não foi . Eu, que já sou preta e mulher, vivendo no Brasil, tinha indícios suficientes que essas duas informações eram bastante para lidar. A propósito, quando contei para minha avó que eu estava me relacionando com outra mulher, o conselho recebido foi exatamente esse: para mim está tudo bem, só não precisa fazer disso uma bandeira. E apesar de ter começado a me relacionar com mulheres já adulta, numa idade em que eu já não devia muitas explicações para a minha avó e que já tinha lido um monte de intelectuais negras com escritos brilhantes sobresexualidade, como Cheryl Clarke, Barbara Smith, Audre Lorde, Cidinha Silva e Heliana Hemetério, eu atendi o pedido da vó e muito pouco ou quase nada me manifestei sobre minha sexualidade até bem pouco tempo atrás. Eu ouvi o conselho da minha avó até onde deu. Mas desculpa aí vó, passa da hora de falar da minha sexualidade numa perspectiva política, da mesma forma que falo da minha raça, do meu gênero, da minha religiosidade.

O heterossexismo é uma forma de opressão e foram as mulheres lésbicas que nomearam essa parada. As mulheres lésbicas e bissexuais negras deram sobrenome, evidenciando como que no cotidiano de mulheres negras políticas sexuais conservadores impedem o nosso empoderamento coletivo. O conservadorismo, no que diz respeito à expressão da nossa sexualidade, faz com que a gente precise negociar nossas experiências. Foi o que eu fiz, por conselho da vovó.

Não discutir a minha sexualidade numa perspectiva política e posicionada se tornou uma violência imposta por mim para mim mesma

Vejam, eu não vou jogar a culpa na minha avó, o conselho não era despropositado. Minha avó conhecia muito bem o meu cotidiano e as diversas atrocidades a que já tinha sido exposta apenas pela condição de ser uma mulher negra. Deixar no privado a minha sexualidade se tratava, na percepção da minha avó e de muitas de nossas mais velhas, uma forma de segurança, seria menos uma razão para ser violentada. Acontece que não discutir a minha sexualidade numa perspectiva política e posicionada se tornou uma violência imposta por mim para eu mesma. Não era proteção, era mordaça e silêncio. E o silêncio, eu já sabia, jamais iria me proteger, Audre Lorde já tinha me ensinado essa parte.

Entendo que o silêncio não ia me salvar, usei a teoria como arma. Teoria armada para entender melhor o que significava uma política sexual emancipatória para mulheres negras. Organizei aquelas coisas que eu já sabia para me proteger. Eu sabia que afirmar minha bissexualidade significava que eu seria lida a partir de estereótipos a respeito da sexualidade de mulheres negras diferentes daqueles que eu estava acostumada. Até o momento a minha sexualidade era a única coisa que não se desviava do esperado, mas agora eu era alguém que carregava uma sexualidade considerada aberrante. Não bastasse, uma sexualidade silenciada em todos os movimentos de que eu participava.

Ao longo das nossas vidas, as relações interpessoais são dinâmicas. A expressão sexual de uma pessoa pode mudar muitas vezes

A partir do momento em que eu me entendi bissexual também entendi que os sistemas de opressão não produzem nem vilões, nem vítimas absolutas. Entendi que quando pensamos em relações de poder não basta analisar meramente pertenças identitárias mas os sistemas de poder que exigem que afirmemos nossas identidades para promover políticas que não mantenham nossos corpos e desejos presos a dinâmicas de dominação. Eu precisei entender essa parte quando, ao me afirmar como lésbica por ter me apaixonado por uma mulher e ter me desinteressado por homens, percebi que era bissexual na verdade. E aí eu entendi a importância de afirmar a agência de mulheres negras – especialmente nossa agência individual –, porque ao longo das nossas vidas as relações interpessoais são dinâmicas e a expressão sexual de uma pessoa pode mudar muitas vezes.

Eu não estou confusa, não sou promíscua, a bissexualidade não é um processo evolutivo de Pokémon, que vai mais cedo ou mais tarde nos levar a um lugar mais elevado na política sexual. Muitas vezes alguns discursos na própria comunidade LGBTQIA+ acabam reproduzindo ideias de pureza sexual que se tornam obstáculos para os processos de transgressão dos códigos moralistas que permeiam as noções de masculinidade e feminilidade padrão. Sistemas de opressão funcionam de forma correlata, eles fornecem sentido um ao outro. Para enfrentar os sistemas de opressão precisamos compreender como eles funcionam conjuntamente. Diferentemente do que a vó achava, não dava pra simplesmente não carregar essa bandeira. Os efeitos do racismo e do heterossexismo na minha vida, que sou uma mulher negra bissexual, são semelhantes porque se aplicam na minha vivência não de forma separada, mais conjunta. Não abordar a minha própria sexualidade, significa apresentar uma visão distorcida das minhas próprias lutas e da minha identidade. Não falar sobre minha sexualidade é invisbilizar os esforços pela construção de políticas de liberdade. E ceder a minha liberdade é algo que não estou disposta. Ninguém deveria estar.

Winnie Bueno Winnie Bueno é iyalorixá, pesquisadora e escritora daquelas que gostam muito de colocar em primeira pessoa sua visão do mundo e da sociedade. É criadora da Winnieteca, um projeto de distribuição de livros para pessoas negras

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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