Coluna da Winnie Bueno: Eu não aguento mais morrer — Gama Revista
COLUNA

Winnie Bueno

Eu não aguento mais morrer

Todos os dias a brutalidade do ódio antinegro mata uma pessoa que é igual a mim

07 de Fevereiro de 2022

Tremor. Angústia. Quente no estômago. Lágrima presa na garganta. Falta de ar. Dor não sei aonde. Não consigo respirar. Súplica para não morrer que não é ouvida Outro corpo negro estendido no chão. Morto a facadas. Morto aos socos. Morto por engano. Propositadamente executado. Por que mesmo escrever essa coluna ? Por que mesmo organizar outro protesto? Ninguém me ouve. Ninguém atende nossas súplicas para poder viver. Nossos punhos erguidos pedindo direito à vida são respondidos com mais uma morte. Com desaparecimento de pessoas negras. Com outra bala encontrada no corpo de uma mãe. Todos os dias a brutalidade do ódio antinegro mata uma pessoa que é igual a mim. Que tem a pele igual a minha: preta. Eu penso, eu escrevo, eu formulo, eu frequento reuniões onde tentamos frear nosso próprio extermínio enquanto somos exterminados. Não há o que falar em guerra. Numa guerra os dois lados são capazes de atacar. A violência que nos atinge não nos dá espaço para reação. Nossa indignação não é respondida. Estamos sendo abatidos como moscas.

Sentei numa via e chorei minhas primeiras lágrimas de desespero do entendimento que não há vida para pessoas como eu. Tremi sentada na mesa de um bar onde as pessoas pretas tentam seguir vivendo. Olhei aquelas pessoas negras como eu e me vi desesperada porque cada um de nós pode ser vítima do ódio escancarado que limita nosso viver.

Quando morre uma pessoa negra, eu morro também. A chance de eu ser morta é multiplicada por quatro: mulher, negra, de terreiro, bissexual

Quando morre uma pessoa negra pela brutalidade, eu morro também. Eu ando pelas ruas com a consciência de que a chance de eu ser morta é multiplicada por quatro: mulher, negra, de terreiro, bissexual. Meu corpo é um alvo. Meu caminhar uma ameaça. E todos os dias eu morro. Todos os dias eu sou brutalmente assassinada.

Morro também porque me envergonho da minha dor; sinto vergonha de estar cansada de pedir para pararem de me matar. Meu constrangimento é resultado do que sei, do que vejo, do que presencio quando mulheres negras mais velhas organizam coletivamente formas de acolher outras mulheres. Me constrange meu choro desesperado e exausto porque as mães dos meninos negros que são executados pelo estado brasileiro organizam seu luto para lutar, enquanto eu choro copiosas lágrimas solitárias em uma rua cujo nome não sei.

Eu queria exercer meu direito de flutuar na água do mar sentindo o sol tocar minha pele e esvaziar meu cérebro de angústia e dor. Queria organizar o descanso. O sono. A alimentação adequada. O direito ao lazer. Queria ler livros de ficção e assistir a comédias românticas. Queria andar de mãos dadas com alguém que amo e correr na chuva. Queria ter um filho com um nome africano. Pôr um vestido florido e andar pela rua com uma sandália colorida. Eu gostaria de viver.

Minha garganta dolorida e arranhada é prenúncio das muitas mortes que eu já sofri. Meu estômago frágil é resultado das muitas dores que eu sinto. Eu morri de novo essa semana. Morrerei na próxima e você vai assistir. Quantas vezes mais eu vou morrer até você cansar de dar play no vídeo que retrata o detalhe da minha morte?

Por que é mesmo que você assiste tantas vezes a minha morte? Que prazer lhe causa me ver morrer? Será que é a certeza de que você não vai morrer assim, pedindo para não ser morto? Deve ser uma espécie de calmante saber que, enquanto eu morro todos os dias por um motivo diferente, você vive uma motivação diferente todos os dias.

Nós somos muito diferentes. Você me mata. E eu morro. Você pode vir à praia , você pode correr. Você pode exigir o seu salário e ele lhe será devidamente pago. Você não será lido como uma ameaça, sua presença não causa aversão.

Para que mesmo escrever essa coluna? Por que mesmo expor a dor em palavras? O que acontece quando você terminar de ler? O que te causa a minha morte? Ela atinge suas férias? Minha morte te tira o sono? Te desespera? Te causa espanto? Você se importa?

Quantas palavras de ordem eu vou ter que inventar para te convencer de que eu não mereço morrer?

Quantas palavras de ordem eu vou ter que inventar para te convencer que eu não mereço morrer? Que eu não mereço sentir dor? Quantas organizações e protestos terei que frequentar para poder respirar tranquilamente e descansar minha cabeça no colo quente do meu amor ?

Tem alguém que me ama, acho que você não sabe. Quando você me mata sem pudor, todo mundo que me ama se despera, chora, morre também.

Você matou a mim e também a minha mãe. Matou meus irmãos e meus amigos. Matou minha família e meus sonhos. Você matou minha juventude e minha vontade de dançar.

Fez isso ano passado e fez isso neste ano de novo. Quantas vezes mais você vai me impedir de viver?

Eu combinei que não ia morrer, fiz um acordo. Não consigo cumprir. Todos os anos eu morro.

Eu não aguento mais morrer.
Eu sinto muito Moïse.
Eu sinto muito Durval.
Eu sinto muito João.
Eu sinto muito por todos vocês; por todos nós, sinto muito não poder fazer nada além de escrever e tentar não morrer mais.

Eu não aguento mais morrer.
Não aguento mais a dor.
Me deixem viver.

Winnie Bueno Winnie Bueno é iyalorixá, pesquisadora e escritora daquelas que gostam muito de colocar em primeira pessoa sua visão do mundo e da sociedade. É criadora da Winnieteca, um projeto de distribuição de livros para pessoas negras

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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