Começar a arrumar essa bagunça por dentro — Gama Revista
COLUNA

Winnie Bueno

Começar a arrumar essa bagunça por dentro

A prosperidade de um país de maioria negra está diretamente ligada à reversão da profundidade das disparidades raciais

09 de Novembro de 2022

Depois de longos quatros anos, finalmente podemos respirar e pensar em um futuro melhor para o nosso país. Tá certo que foi um equívoco da nossa parte esperar esses quatro anos, mas a conjuntura também não ajudou. Apesar de alguns setores terem enfrentado o bolsonarismo nas ruas — como foi o caso do movimento social negro, especialmente a partir da Coalizão Negra por Direitos –, não dá para dizer que tivemos nesses anos uma tomada das ruas que manifestasse de forma contundente nossa indignação com tudo o que sofremos desde o momento em que Jair Bolsonaro foi eleito presidente. Aguardamos o momento da alternância de poder e das urnas e elegemos um projeto de governo que busca contemplar os mais variados setores, alguns deles inclusive divergentes, em prol da tal da democracia.

Passado o período de emoção, lágrimas e entusiasmo pela vitória de Lula, é hora de começar a pensar no futuro. Falo em futuro porque o bolsonarismo não acabou com a derrota de Bolsonaro, e não são as urnas que irão reverter processos históricos que atravessam a construção do Brasil. Os ódios instaurados apresentaram uma face monstruosa, mas não é como se eles não existissem antes — nem como se fossem desaparecer no primeiro dia de janeiro de 2023. Para enfrentá-los, precisaremos de construções mais sólidas, de mais diálogo entre as maiorias minorizadas, e essas não são tarefas simples. Mas existem sim tarefas mais simples que podem ser executadas de maneira rápida e certamente trarão novos ares para a sociedade brasileira. Uma delas diz respeito à composição ministerial. O governo de transição nos permite especular e, apesar de eu estar longe de ter alguma incidência nas escolhas por vir, me empolga pensar em um cenário diferente do que tem sido posto até aqui.

O tratamento à questão racial não pode mais ser visualizado como algo colateral ou menos importante

Nunca foi simples articular convergências, mas, para a população negra e especialmente para a vanguarda do movimento negro, sempre foi necessário. Historicamente, estamos tentando nos fazer ouvir e ocupando a linha de frente de diálogos que promovam equidade, o que produziu um sem fim de especialistas nas mais variadas áreas. Apesar do pouco reconhecimento, foram essas pessoas que mobilizaram resistências para que não sucumbíssemos nem deixássemos o país fracassar por completo. A política brasileira raramente foi sensível aos nossos programas; quando fomos ouvidos, foram criadas políticas públicas que fizeram esse país avançar. O sucesso das ações afirmativas de cotas raciais é um exemplo, e não é o único. As mulheres negras do campo da saúde trouxeram avanços consideráveis para o aumento da expectativa de vida, a maior segurança alimentar e a melhoria do saneamento básico. Embora todas essas estruturas sejam nevrálgicas para os próximos quatro anos de governo, não são as mulheres negras e seus coletivos que estão sendo ouvidas ou cogitadas para assumir ministérios centrais. Também não são os homens negros.

Apesar de não termos apego à representatividade política e mesmo sem promessas de cargos em nosso esforço para a eleger Lula, é sabido que a chave para mudar o Brasil está em reverter as consequências sócio-históricas persistentes do processo de escravização. Essa agenda não estará completa sem que se contemple as reivindicações do movimento negro e que se tenham figuras públicas negras na composição do governo, em pastas não diretamente etiquetadas como raciais. O tratamento à questão racial não pode mais ser visualizado como algo colateral ou menos importante. Passa da hora de o combate ao racismo ser uma política central, com destinação de verba e perpassada por todas as instâncias do Executivo.

As listas especulativas sobre ministros seguem a lógica da manutenção da supremacia branca

Não penso que se trate de utopia alterar a paisagem do Planalto Central para algo menos masculino e branco, inclusive porque este era um compromisso que o próprio Lula manifestou em suas falas públicas durante a campanha. Justamente por isso me causa incômodo que as especulações sobre os ministeriáveis não sigam além da refundação do extinto Ministério da Igualdade Racial. Existem muitos nomes para dentro e para fora da frente amplíssima que se consagrou vitoriosa nas eleições de 2022 que podem ocupar cadeiras ministeriais, pessoas com larga experiência em gestão pública e que certamente gozam da confiança de Lula. Mas, para além do que ele pretende, é bastante impressionante o fato de que os comentaristas da política brasileira sequer tenham a capacidade de imaginar pessoas negras como ministeriáveis. As listas especulativas até aqui seguem a lógica da manutenção da supremacia branca: a política se faz apenas com homens brancos de meia idade que não se constrangem com a lógica de que apenas eles são preparados para esses postos. Essa é uma face ideológica do racismo que urge ser encerrada.

Espero estar extremamente equivocada e poder comemorar a nomeação de pessoas negras para o primeiro escalão do governo. Mas entre o que espero e o que a história tem demonstrado, resta a necessidade de um certo grau de ousadia de Lula. Reverter o quadro da igualdade perversa que assola os espaços de poder brasileiros não pode ser feito de outra forma senão com ousadia e escuta. Estamos à disposição para o trabalho que se avizinha, queremos ser ouvidos e considerados, e já provamos que podemos. A prosperidade de um país de maioria negra está diretamente ligada à reversão da profundidade das disparidades raciais. Começar a arrumar a bagunça por dentro de casa é lição antiga, das mais velhas. Espero que Lula a execute.

Winnie Bueno Winnie Bueno é iyalorixá, pesquisadora e escritora daquelas que gostam muito de colocar em primeira pessoa sua visão do mundo e da sociedade. É criadora da Winnieteca, um projeto de distribuição de livros para pessoas negras

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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