Coluna do Observatório da Branquitude: Carta ao Fagundes — Gama Revista
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Observatório da Branquitude

Carta ao Fagundes

Devo dizer, Antônio, que foi uma surpresa muito positiva do lado de cá, saber que estávamos lendo o mesmo livro mas, além disso, que as palavras estavam ressoando aí tanto quanto aqui

17 de Novembro de 2023

Cara senhor Antônio Fagundes, como vai? Espero que bem.

Por algum motivo que talvez só os algoritmos expliquem, me deparei com duas coisas suas muito interessantes ao velejar pelas redes sociais. A primeira, o engraçadíssimo vídeo para o canal Porta dos Fundos sobre câncer de próstata. Achei maravilhosa a habilidade de tratar de um assunto sério, um tabu, de forma tão espirituosa.

A segunda coisa que vi sua por esses tempos é o que me motivou a lhe escrever essa singela carta, Foi um pequeno trecho de uma entrevista ao Estado de Minas na qual afirma estar lendo o livro “O Contrato Racial”, do filósofo jamaicano Charles W. Mills. Na qual cita a primeira e impactante frase do texto: “a supremacia branca é o sistema político não nomeado que fez do mundo moderno o que ele é hoje”. Uau!

Seu Fagundes, não vim te questionar, mas brindar o fato de estar lendo uma obra tão importante para os estudos de raça

Devo dizer, Antônio, que foi uma surpresa muito positiva do lado de cá, saber que estávamos lendo o mesmo livro mas, além disso, que as palavras de Mills estavam ressoando aí tanto quanto aqui. Temos algumas léguas de distância entre mim, um homem negro, de 30 e muitos anos, nascido no Complexo do Alemão, e você, um homem branco, idoso, rico e com uma super carreira. Mas veja que interessante, aquelas palavras sobre supremacia branca bateram forte em nós dois, como uma grande ficha que cai nas nossas cabeças e nos fazem perceber qual é essa estrada inominada que nos separa, que faz com que, por exemplo até hoje você seja considerado um galã e tenha papéis de destaque. Enquanto o Pitanga faça apenas pontas em especiais de TV.

Mas, seu Fagundes, não vim hoje aqui te questionar, ao contrário, vim brindar o fato de estar lendo uma obra tão importante para os estudos de raça e para a própria história da filosofia. O que Mills propõe não é trivial. Ele questiona toda produção filosófica e coloca a supremacia branca como o motor das ideias que fazem o mundo ocidental ser o que é. Poderoso, não é mesmo?

Não é possível ler “O Contrato Racial” e encará-lo como uma brisa, ele realmente muda a gente e o jeito como olhamos para o mundo. É ventania forte que faz Bruno Mezenga rodar em cima do cavalo de ouro. Mills encara de frente toda tradição de pensamento canônico e afirma que a raça não é um pano de fundo para os modelos políticos (liberalismo, socialismo, democracia, aristocracia e outros ismos), mas é o principal paradigma de construção social global. A supremacia branca fez com que o mundo caminhasse como caminhou.

Quando a gente grita esses fardos, seus irmãos de cor costumam falar que é mimimi. Já reparou o quanto é racista essa expressão?

Como é bom saber que tem pessoas brancas lendo esse tipo de coisa e ainda indicando por aí. Quando a gente grita esses fardos, seus irmãos de cor costumam falar que é mimimi. Já reparou o quanto é racista essa expressão? É a tentativa de infantilizar, nos colocar como subverbais, como se não fôssemos capazes de formular ideias importantes, como essas do Mills.

Se vivo, o jamaicano teria 72 anos, dois a menos que você. Entre a sua idade e a dele, está a mais importante filósofa brasileira, Sueli Carneiro que escreve na contracapa do livro que Mills. Ele explica não apenas como uma sociedade mais justa deveria ser formada, mas sobretudo como veio a existir uma sociedade tão injusta.

Antônio, se não for pedir muito, tenta organizar umas rodas de conversa, umas sessões de leitura ou coisa que o valha junto dos seus amigos brancos. Eles realmente precisam ter contato com essas palavras, até porque o racismo foram vocês que o inventaram; a gente sofre, resiste e luta contra, mas esse B.O. é de vocês. Chega para eles e fala: – a supremacia branca é cilada, Bino.

Ah, não precisa chamar a Regina, ela é caso perdido.

Mande lembranças para Alexandra, pro Bruno, pro Toninho, pra Dinah e Diana.

Com carinho,
Thales Vieira

THALES VIEIRA é sociólogo (PUC-Rio) e mestre em antropologia (UFF). Atuou no poder público, em organismos internacionais e em fundações. Pai da Naíma, Nina e Maya, é fundador e diretor executivo do Observatório da Branquitude.

Observatório da Branquitude é uma organização da sociedade civil fundada em 2022 e dedicada a produzir e disseminar conhecimento e incidência estratégica com foco na branquitude, em suas estruturas de poder materiais e simbólicas, alicerces em que as desigualdades raciais se apoiam.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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