Coluna do Observatório da Branquitude: A emergência climática desfocada pela miopia branca — Gama Revista
COLUNA

Observatório da Branquitude

A emergência climática desfocada pela miopia branca

As tragédias não são tão democráticas como se pode imaginar, uma vez que não atingem a sociedade de igual forma. Pelo contrário, há grupos causadores e grupos atingidos

20 de Outubro de 2023

Aparentemente, problemas de visão como miopia e astigmatismo, em grau moderado, não impõem barreiras significativas aos indivíduos no dia a dia. Seus efeitos comuns, a sensibilidade à luz, a dificuldade de leitura ou de enxergar à distância, são passíveis de correção com o uso de óculos ou por meio de uma cirurgia pouco invasiva. Porém, a incapacidade de focalizar objetos ao longe — a miopia — pode ser, também, metáfora para um fenômeno socialmente construído que molda práticas. Uma espécie de miopia epidêmica que, diferente da disfunção ocular moderada, assume caráter deliberado, ganha força em âmbito global à medida que favorece a percepção de lonjuras e cisões entre pessoas, territórios e experiências. Anula diversidades, aprofunda hierarquias e renova o ciclo de produção de mundos apartados, vazios em direitos e garantias para populações inteiras, sobreviventes.

O desenho da sociedade brasileira expõe uma certa predileção pelo reinvestimento nesta epidemia míope. Decerto há múltiplos gozos no que se expressa como um compromisso com a perversidade, quase um acordo tácito que desnuda a monstruosidade das relações de poder. Aqui, nos interessa explorar — e fazer saltar aos olhos — um modelo de violência que não mais se pode ocultar, encarnado nas mudanças climáticas em ação no Brasil, sobretudo em 2023, ano em que ficaram ainda mais evidentes os desafios de um futuro incerto.

A seca na Amazônia, as chuvas torrenciais na região Sul, os deslizamentos de terra carimbados anualmente na região serrana do Rio de Janeiro e na zona metropolitana de Recife. As perguntas evocadas pelos eventos citados parecem um misto de “como deixamos chegar até aqui?” e “o que precisamos fazer para poupar o amanhã?”. Contudo, os desastres anunciados deixam nítido que a herança de um porvir incerto é entregue com mais intensidade a quem não tem escapes às desigualdades sociorraciais. Àqueles cuja existência está fora de foco, cujas vidas passam ao largo do campo visual dos tomadores de decisão.

A população ribeirinha, dos morros, de favelas são atingidas sem recursos de recuperação. A quantas entrevistas já assistimos com pessoas aos prantos dizendo uma mesma frase, “essa casa era tudo que eu tinha”? Era tudo mesmo, o que exige começar uma nova vida do zero. Repetidas vezes e em diferentes anos, começar do zero. Mas um entendimento que acumulamos sobre desigualdades é que são complexas. Não podemos equacionar problemas sociais e raciais e achar que são cálculos de fácil resolução. Não nos cabe a ingenuidade.

A herança desse futuro caótico foi entregue por quem consegue se blindar dos impactos. Os donos das grandes indústrias, responsáveis pelas maiores emissões de carbono na atmosfera e pela extração de territórios de reserva são os mesmos que têm suas casas em locais seguros. A casa não é tudo o que eles têm. Os paralelos entre quem causa e quem sofre são importantes para visualizar as assimetrias e perceber que as tragédias — por vezes — não são tão democráticas como talvez se possa imaginar, uma vez que não atingem a sociedade de igual forma. Pelo contrário, há grupos causadores e grupos atingidos.

Entender o posicionamento dessas peças é a chave da discussão de justiça climática. A branquitude porta, de modo inerente, uma miopia em relação aos grupos que com ela não se assemelham. Os efeitos de suas ações, combinados à força do capital, à produção acelerada, contínua e avassaladora atravessam as terras dos outros e não as suas próprias terras. A periferia tem cor, sabemos bem. A cor que estampa o jornal ao reportar a perda de 11 familiares em um desastre “natural”. A cor que não consegue frequentar a escola devido à seca. A cor que tem o acesso à saúde prejudicado. A branquitude, por sua vez, ao olhar para tudo o que está fora de si nutre uma visão turva, embaçada. Parece não enxergar as repercussões de seus exercícios de mando sobre os outros.

A associação entre os avanços dessa lógica de mercado e o desrespeito com os recursos naturais se estabelece em um casamento muito estável que une a manutenção do poder a grupos raciais brancos. A posição de superioridade branca se retira do páreo quando necessita ser identificada e racializada em suas ações. No entanto, tal omissão não se reflete no menor impacto de seus atos.

Enchentes, secas prolongadas, intensas ondas de calor, nuvens de fumaça tomando os ares: nada parece abalar a ação distópica da branquitude na construção de ambientes interditados à vida

Pensar nos eixos de sustentabilidade, em medidas de contenção de danos para os efeitos da emergência climática demanda igualmente considerar os recortes de quem sofre e de quem explora como racialmente diferentes. Portanto, o pressuposto da justiça para a discussão sobre clima indica o reconhecimento da existência de populações que são, em larga escala, mais atingidas do que outras populações, por todo acúmulo de desigualdade que populações negras, ribeirinhas e periféricas carregam.

Em consideração a este cenário descrito, o Observatório da Branquitude realizou uma pesquisa exploratória, a ser lançada em breve, a fim de acompanhar a destinação das verbas públicas de pesquisa para os eixos de mudanças climáticas e meio ambiente. A composição racial desses eixos e a distribuição do dinheiro são o foco da análise, que permitiu identificar grupos que recebem mais financiamento, as regiões e as unidades federativas em que situam. Os achados trazem indícios sobre onde e quem tem pautado essa discussão na produção científica.

A figura da miopia que ilustra esta coluna também veste os resultados obtidos. As diferenças entre os estados, regiões e os perfis que recebem mais verba apontam para a perpetuação míope, insistente nas lentes e no foco que conservam privilégios, alcançando os rumos da verba pública destinada à produção de conhecimento.

Estas e mais discussões terão espaço no 1º Seminário “Emergência Climática: Uma herança da branquitude”, a ser realizado pelo Observatório da Branquitude no dia 8 de novembro, no Rio de Janeiro. As inscrições são gratuitas e podem ser feitas por meio do link disponível em todas as redes sociais do Observatório.

Enchentes, secas prolongadas, intensas ondas de calor, nuvens de fumaça tomando os ares: nada parece abalar a ação distópica da branquitude na construção de ambientes interditados à vida. É imperioso o debate que coloca em risco toda a humanidade sob a ótica da identidade racial branca e suas estruturas de poder. Na busca por caminhos rumo a um futuro possível, olhar para sistemas de dominação, o colonialismo e o racismo, é premissa incontornável se quisermos, juntos, dar tratos à herança lesiva e de expropriação por eles deixada.

Carol Canegal é mestre e doutora em Ciências Sociais (PUC-Rio). Atuou como pesquisadora no Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação (CAEd/UFJF) e analista de políticas públicas no Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ). Atualmente é coordenadora de pesquisas do Observatório da Branquitude.

Nayara Melo tem Formação em odontologia e mestrado em sociologia pela UFPE, atualmente doutoranda em sociologia pelo IESP-UERJ. Com experiência de pesquisa em desigualdades com foco em ensino superior e saúde. Atualmente, é analista de pesquisa na OdB.

Observatório da Branquitude é uma organização da sociedade civil fundada em 2022 e dedicada a produzir e disseminar conhecimento e incidência estratégica com foco na branquitude, em suas estruturas de poder materiais e simbólicas, alicerces em que as desigualdades raciais se apoiam.

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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