Não sei como a USP pode ser considerada a melhor universidade da América Latina — Gama Revista
COLUNA

Marilene Felinto

Não sei como a USP pode ser considerada a melhor universidade da América Latina

Ocorre que o ensino público, de baixíssima qualidade, não explica a USP aos estudantes, com raras exceções

15 de Dezembro de 2023

Quando o marceneiro entrou na Cidade Universitária, o principal campus da Universidade de São Paulo na zona oeste desta cidade de São Paulo, foi como um alienígena que caísse em um planeta fora do seu sistema cósmico natural.

Ele disse que já tinha trabalhado em todos os bairros ao redor do campus, mas que nunca tinha entrado ali. Acompanhei esse marceneiro conhecido meu até a Universidade de São Paulo outro dia. Ele foi entregar o móvel de uma professora.

O profissional estava com dois ajudantes, dois jovens que também nunca tinham pisado no lugar, nem sabiam direito do que se tratava. Naquela cena, era como se a USP pairasse acima de tudo o que é mortal – eis a impressão que o episódio me provocava.

Pouco importava que outros marceneiros conhecessem o território uspiano. Chamava a atenção o desconhecimento daqueles, o olhar de surpresa deles diante da beleza arborizada e organizada do espaço. Para mim, sobrava somente a pergunta de por que a USP nunca se apresentara, nunca se mostrara pelo menos aos dois homens mais jovens.

Vão dizer que não é papel da universidade apresentar-se, que isso cabe ao ensino público, de onde vinham os rapazes, um de 18 anos, que tinha recém-completado o Ensino Médio, e outro de vinte e poucos, que só chegará até o segundo ano do mesmo ciclo. Ambos eram meio pretos, meio pardos, só que um deles tinha olhos verdes.

Ocorre que o ensino público, de baixíssima qualidade, não explica a USP aos estudantes, com raras exceções. Para não falar do desempenho do alunado brasileiro na educação, muito revelador do tamanho da catástrofe: menos de 50% dos estudantes dominam o básico em ciências e matemática.

A impressão inicial avolumava-se em forma de pergunta na minha cabeça: não sei como a Universidade de São Paulo pode ser considerada a melhor universidade da América Latina, tão desumana, hierárquica ao ponto do conservadorismo, fortemente centralizada na autoridade, indiferente (eu ia dizer “insensível”…) a seu entorno, à continuada exclusão social da juventude pobre que ainda ignora a existência dessa instituição.

Já era assim quando entrei lá, há mais de 40 anos – indiferente, elitista, branca e racista –, e pouco importa ter instituído recentemente (uma das últimas a fazê-lo entre as universidades públicas) ações afirmativas como cotas raciais e de classe. O corpo docente, contudo, continua majoritária e vergonhosamente branco. Ou seja: A USP pode até ter garantido ou criado direitos, mas não desmontou privilégios.

Para não falar de questões de sobrevivência básica (financeira e psíquica) da camada do alunado que vem da pobreza e constitui hoje parte de seu corpo discente, questões para as quais a universidade ainda faz vista grossa. Não é de hoje a queixa pela melhoria das políticas de permanência, alimentação e moradia dos estudantes, por exemplo. Desde os meus tempos ali, o Crusp, como se chama a residência universitária do campus, já era considerado uma pocilga de alojar alunos pobres.

Não sei como a USP pode ser considerada a melhor universidade da América Latina. É este o lugar que a instituição ocupa num desses rankings mais recentes, que a mídia divulga, que ninguém sabe direito o que são ou que credibilidade têm. A mídia contribui para acentuar a imagem de uma universidade que paira por algum cosmos especial, ela mesma um planeta inatingível ainda para muitos e com sua fria aura de excelência.

Não sei como, com tantos governos neoliberais direitistas, obtusos e antipopulares no Estado de São Paulo, a USP pode se manter neste primeiro lugar, seja em que categoria for. O governo paulista passou das décadas de hegemonia pró-ricos do PSDB para cair nas mãos da administração liberal-fascista do bolsonarista Tarcísio de Freitas. Verdadeira hecatombe a se desenrolar por mais três anos.

A USP pode até ter garantido ou criado direitos, mas não desmontou privilégios

Vão dizer que a liderança da USP se deve à qualidade da pesquisa científica, que é o papel da universidade etc. Acontece que a vocação científica da universidade não deveria, em hipótese nenhuma, reproduzir a estrutura social brasileira e seu sistema institucionalizado de exclusões raciais, sociais, políticas e culturais, como diz Marilena Chauí.

“A ampliação social da universidade pode não corresponder às condições de formação e da pesquisa científica”, afirma Chaui. “A equação perversa que parece estabelecer-se, portanto, é de que a boa realização da vocação científica afasta uma vocação democrática da universidade e reforça uma política de desigualdades culturais”.

Volto aos marceneiros, para concluir o que é evidente: que nem todo marceneiro precisa cursar a universidade. Sim, pelo contrário, estão muito bem no necessário e admirável ofício da marcenaria. Mas todo marceneiro tem o direito de saber que existe uma universidade sustentada com dinheiro público, considerada a melhor da América Latina, onde ele poderia ter optado por estudar.

Todo marceneiro tem o direito de escolher se quer entrar na USP ou permanecer na marcenaria ou ambas as condições. Ou seja: não é justo que eles, marceneiros, apenas gravitem ao redor do campus, sem acesso ao ensino superior ali oferecido.

Para os jovens ajudantes do marceneiro, fiz meu discurso de “self-made woman” que tinha se formado ali, mais pobre do que eles, com menos democracia ainda na minha época, com nenhuma democratização do acesso a estudantes de escolas públicas como eles e eu. Fiz o discurso: que eu estudava no curso de Letras pela manhã e trabalhava à tarde e à noite para sobreviver.

Fiz o discurso: para que eles tentassem entrar, prestassem o Enem, se esforçassem, que tinham direito àquilo etc. Mas a fala foi logo por água abaixo… Esforço, universidade, academia… Palavras ao vento, ideia besta, fundada no espírito “empreendedor” em voga. Ridículo, porque nada daquilo mudaria a instituição-monstro, a USP, como não mudou em 40 anos. Fui embora com o rabo entre as pernas… e pensando em como durante mais de dez anos, entre graduação e mestrado não concluído, alisei os bancos daquela universidade…

E pensando que a USP oficial nunca tinha me convidado para falar nas suas dependências, nem como ex-aluna, nem escritora, nem como tradutora, nem como jornalista, nada! Sei que não tenho importância nenhuma, mas como já falei em diversas outras universidades do país e do estrangeiro, sempre estranhei a falta de convite da universidade onde me formei.

Até que, finalmente, neste ano de 2023 que se encerra, fui convidada a dar uma pequena palestra lá. O convite não veio da USP oficial (do professorado), mas do alunado, de um grupo de estudantes de pós-graduação da FFLCH (Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas), para um evento anual que eles organizam.

Fui falar em outubro último. Mas isso é outro episódio, que conto na minha próxima coluna aqui, a sair em 29 de dezembro. O título será mesmo este: não sei como a USP etc.

Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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