Não se nasce “musa” do Carnaval, compra-se a vaga na passarela — Gama Revista
COLUNA

Marilene Felinto

Não se nasce “musa” do Carnaval, compra-se a vaga na passarela

As endinheiradas das classes altas, antigamente mais vistas em bailes de máscaras ou desfiles de fantasias em seus clubes fechados, ganharam a rua

09 de Fevereiro de 2024

O Carnaval que abriga mulheres milionárias, geralmente brancas, que pagam para desfilar como destaques nas escolas de samba, especialmente do Rio de Janeiro, pode ser uma descoberta de espanto para o folião ou o espectador leigos.

A magnífica festa popular perde um tanto do seu brilho natural quando se considera o submundo de transações monetárias e trocas de interesses duvidosos em que também se estrutura o evento.
Para não falar do histórico envolvimento do crime nas escolas de samba do Rio: os contraventores do jogo do bicho, por exemplo, que têm, desde sempre, domínio sobre várias agremiações cariocas, para as quais fazem altos aportes financeiros.

Nenhuma novidade nisso, afinal, a ideologia do capital neoliberal não estaria ausente dos intestinos do Carnaval, como não está de nada, e segue deformando o que havia de genuinamente original na folia profana, o sentimento de comunidade, de compartilhamento do que é comum a um grupo social, a despeito da separação de classe que já se encontrava nos primórdios dessa festividade.
Voltando às “musas” milionárias, também categorizadas como “rainhas” das escolas, a presença de algumas delas nos desfiles é assunto de colunistas do universo das chamadas “celebridades”, em mídias diversas.

Na plataforma do Uol, por exemplo, há pouco mais de uma semana (01/02), o colunista Lucas Pasin comentava um caso, em tom de noticioso: “Salgueiro tem nova ‘musa queridinha’ – Tati Barbieri, que doou o montante de R$ 950 mil para patrocinar a comissão de frente, tem sido tratada como rainha (…)”.
Importante ressaltar que a informação mais significativa do texto sobre Tati Barbieri – que vai, então, desfilar este ano como destaque branco na Salgueiro – é ser casada com um “magnata” russo, além de ser “ex-atriz de pegadinhas da Rede TV”.

Espanta ver até onde vai a precificação da festa carnavalesca, fundada em negociatas de marketing e publicidade

A segunda informação digna de nota sobre essa “ex-atriz” é tratada pelo colunista como uma disputa pela vaga de “musa” com a irmã do jogador Neymar: “(…) com a possibilidade de perder Rafaella Santos – ela não irá desfilar este ano – e, com isso, perder também a generosidade da irmã de Neymar, que já doou R$ 600 mil para o Salgueiro, a direção da escola tem apostado todas as suas fichas em agradar Tati Barbieri”.

Chamada pelo apelido de “Neyrmã” na coluna de Pasin, sobre Rafaella pesa, segundo o colunista, a especulação de que “não tinha samba no pé” e, por isso, estaria sendo preterida como destaque.
Fato é que a atitude desse tipo de mulheres se dá no campo do retrocesso total e constrangedor para as lutas por emancipação e igualdade de direitos das mulheres ao longo dos séculos. Talvez Barbieri e Santos nem percebam que se apresentam como meros apêndices de seus homens ricos (o marido, o irmão), expondo-se numa tentativa de se consagrarem (a quê? a sucesso e prestígio?) por meio de seus corpos artificialmente trabalhados e exibidos na passarela. Talvez nem percebam que são tratadas assim, como “não pessoas”, figuras subalternas e objetificadas.

Nenhum julgamento moral ao nudismo característico da folia pagã que desde a Idade Média celebra a liberdade de expressão e movimento imediatamente anterior à abstinência de carne exigida pela Quaresma católica.

Nem ninguém está questionando as cifras milionárias, sempre úteis (imagina-se), que entram por essa via nas favelas. O que espanta é ver até onde vai a precificação da festa carnavalesca, fundada em jogadas de marketing e publicidade – disfarçada de “generosidade” – que associam a beleza do corpo (da mulher branca) ao poder de compra e ao ego.

Também não se está falando aqui de mulheres empoderadas que se fizeram sozinhas (negras, brancas ou pardas), por seus talentos específicos, sua ousadia, linguagem própria e afronta aos valores patriarcais machistas – chamemos essas de Anittas, que valem quanto cobram, dentro ou fora do Carnaval, e que não saem de casa por menos de R$ 1 milhão, conforme contam os colunistas de celebridades.

Poder de compra e narcisismo, eis a questão. Que imagem de si mesmas, ou que subjetividades, acham estar construindo as “musas” vazias, forjadas na marra, sob o poder da grana e do marketing? Ou seja: não se nasce “musa” do Carnaval, compra-se a vaga na passarela.

Que imagem de si mesmas estão construindo as ‘musas’ do Carnaval, forjadas na marra, sob o poder da grana e do marketing?

Faz tempo que o Carnaval vem se transformando nisso – as endinheiradas das classes altas, antigamente mais vistas em bailes de máscaras ou desfiles de fantasias em seus clubes fechados, ganharam a rua. E vão na mesma batida das figuras famosas (geralmente brancas) da tela da Globo, escolhidas para destaques nas escolas do Rio. Com a diferença de que essas não precisam pagar porque já trazem visibilidade e outros dividendos para as agremiações do samba.

Fato é que o Carnaval é o momento em que a favela preta das escolas de samba ascende à TV Globo, especialmente nos desfiles do Sambódromo do Rio, mas não ascende sozinha. A favela negra sobe de roldão, capitaneada também pelas beldades midiáticas. A elas é que se dá o lugar do privilégio social – por mais que mulheres negras das comunidades também ganhem o merecido destaque –, como de resto se dá na sociedade toda – a elas, e não à baiana trabalhadora e sua ala, a vendedora de acarajé (sem demérito) que faz a alegria e a beleza espontânea do desfile tão brasileiro.

Aliás, como comenta Sueli Carneiro, muito oportunamente, “as mulheres negras fazem parte de um contingente de mulheres que não são rainhas de nada, que são retratadas como antimusas da sociedade brasileira, porque o modelo estético de mulher é a mulher branca”.

Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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