Minha primeira psicanalista foi a rua de terra — Gama Revista
COLUNA

Marilene Felinto

Minha primeira psicanalista foi a rua de terra

Em outro contexto, outro tempo, criança desestressava brincando em ruas de terra, “elaborando” suas frustrações nos jogos infantis

16 de Maio de 2024

Certo seria ser uma criança destes tempos atuais para entender seus conflitos e sofrimentos quando comparados aos de gente de cinco ou seis gerações atrás. Desconfio que não serão muito diferentes, ainda que a variável dessa equação ganhe valores tão distintos a ponto de permanecer, talvez para sempre, na incógnita.

Queria saber se as crianças de hoje são mais felizes porque lhes basta acionar teclas e comandos eletrônicos para dispor de todo um universo favorável a elas. Ou será que elas percebem frieza e impassibilidade no mundo digital das telas e da tecnologia de coisas autônomas, à base de inteligência artificial? Até que ponto serão elas também “coisas” ou autômatos dessa autonomia?

Estudos de especialistas não respondem (porque é cedo?) a questões como essas, não dizem de fato como se dão, nesta geração de crianças, as angústias que todo mundo carregou, em alguma medida, na vida, e que nunca foram (nem serão) inteiramente compreendidos pelos pais (se são eles próprios, pai e mãe, além de outros fatores, disparadores daquele sentimento ruim).

Bom seria se a metamorfose de virar uma criança de hoje se processasse. No entanto, por mais interessante que essa transformação pudesse ser, e por mais impossível, mete medo. Prefiro ter sido menina daqueles tempos antigos, porque acho assustador ser criança na complexidade da atual “cultura da conexão”.

Minha pergunta é se as crianças estão mais infelizes do que antes ou se é a oferta de tratamentos de saúde mental que aumentou – quer dizer, se uma coisa levou à outra e vice-versa. É que impressiona a precocidade com que crianças recebem suporte psicológico profissional de uns tempos para cá, independentemente do grau do trauma ou do sofrimento experimentado por elas.

Evidente que não se questiona a efetiva necessidade de apoio psíquico a crianças de qualquer idade ou situação social – ainda que o marcador de classe identifique psicoterapia como coisa de rico, e mesmo que crianças da pobreza tenham, como atualmente, mais acesso a atendimentos psi nos serviços públicos de saúde.

Quero crer que a criançada do meu tempo era mais feliz do que meninas e meninos de hoje, a despeito do isolamento daquele mundo desconectado

Resumindo de modo rudimentar: antigamente, nem mesmo criança rica frequentava psicólogo, a não ser em casos muito específicos, em geral psiquiátricos. Mas antigamente também (embora nem faça tanto tempo assim) não se formalizavam de modo tão corriqueiro diagnósticos para enquadrar ou medicalizar o comportamento infantil.

Basta observar o que se chama agora de “Transtorno Opositor Desafiador” (vulgarizado na sigla TOD) e que se atribui como diagnóstico à conduta de crianças malcriadas, inquietas, questionadoras, entre outros traços (“quando persistentes”, diz a receita). Resta saber como é que se mede essa “persistência”.

Fato curioso é que se pronuncia “TOD” como “tódi”, o que logo remete, por similaridade fonética, ao tradicional achocolatado da marca “Toddy”, mais recentemente chamado “Toddynho” em miniembalagens de papelão, ou seja, eis aí que essa paronomásia opera uma inversão de sentido não intencional, mas meio cômica, senão dramática e bastante reveladora do espírito destes tempos.

É no mínimo engraçado que aquilo que antes dava nome a um suposto ato de cuidado – já que o achocolatado era recomendado como fortificante, nutriente oferecido para o fortalecimento do corpo de crianças, e tido por elas como de sabor gostoso – tenha por coincidência se deformado em denominação de transtorno patológico!

Claro que produtos industrializados como o achocolatado em questão não são hoje considerados tão saudáveis quanto se supunha, mas até virarem nome de patologia infantil é mesmo hilário para quem ingeriu tão naturalmente esse tipo de alimento açucarado na infância toda.

Descobri muito menina que brincar era o que me salvaria da pobreza e da atmosfera destrutiva que impregnava o casamento dos meus pais

Oportuno também mencionar – a título de outro exemplo – o super consagrado diagnóstico de TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade), distúrbio de comportamento muito comumente identificado nas coitadas das crianças de hoje.

Em outro contexto, outro tempo, criança desestressava brincando em ruas de terra, “elaborando” suas frustrações nos jogos infantis, descarregando parte de sua raiva na bolada certeira que atingiria o adversário no jogo esportivo da queimada (que na minha cidade se chamava “matar-morreu”). Minha primeira psicanalista foi, assim, a rua mesmo, onde praticávamos pequenas vinganças simbólicas pela via das cantigas de roda, atirando paus em gatos, no jogo da berlinda ou no “verdade ou consequência”.

Mas isto não é uma queixa nostálgica, é somente um questionamento. Quero crer que a criançada do meu tempo era mais feliz do que meninas e meninos de hoje, a despeito do isolamento daquele mundo desconectado, e apesar da falta de recursos e de tanta infelicidade que tivemos que vivenciar (no meu caso).

Descobri muito menina que brincar era o que me salvaria da pobreza e da atmosfera destrutiva que impregnava o casamento dos meus pais. Ao longo da vida, o brincar foi se transfigurando em “escrever”, com a mesma seriedade. Só décadas depois eu leria “O Brincar e a Realidade”, do psicanalista inglês Winnicott, para descobrir que sua teoria era praticamente a minha história.

Certamente a rua não resolve a neurose de ninguém – menos ainda de quem sempre se entendeu como opositora desafiadora, hiperativa e cheia de déficits de atenção, mas ao menos ali, pés na terra e suor na cara, não nos acusavam de “transtornadas” ou anormais por isso.

Só me atribuíram mesmo (devido às minhas boladas raivosas no matar-morreu), o pejorativo de “louca”. Mas esse eu nunca quis contestar. E assim sigo, às vezes sentada num muro, cansada da brincadeira, mas satisfeita, apenas observando e tentando resolver, como fazia naquele tempo, equações da existência que me pareciam indecifráveis, tal como “caranguejo não é peixe, caranguejo peixe é, caranguejo só é peixe na enchente da maré”. A equação mais complexa, essa de ser e não ser e ser… louca.

Marilene Felinto nasceu em Recife, em 1957, e vive em São Paulo desde menina. É escritora de ficção e tradutora, além de atuar no jornalismo. É bacharel em Letras (inglês e português) pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Psicologia Clínica (PUC-SP). É autora, entre outras dez publicações, do romance As Mulheres de Tijucopapo (1982 – já na 5ª edição, ed. Ubu, 2021), que lhe rendeu o Jabuti de Autora Revelação e é traduzido para diversas línguas. Seu livro mais recente é a coletânea de contos Mulher Feita (ed. Fósforo, 2022).

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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