Coluna da Maria Ribeiro: Múltipla escolha — Gama Revista
COLUNA

Maria Ribeiro

Múltipla escolha

Fazer nada seria o mais normal, fazemos isso há séculos. Ficar e lutar, uma ideia quase romântica. Partir e deixar tudo pra trás… Ai que medo de não saber como vai ser daqui para frente

03 de Março de 2023

Fazer nada. Ficar e lutar. Partir. Assim começa o último filme da Sarah Polley, “Entre Mulheres”, que estreou ontem no país. A história, como em todos os filmes da diretora norte-americana, é sobre mulheres. Neste caso, mulheres violentadas por homens que as fazem crer que os estupros noturnos aos quais são submetidas há anos – cometidos quando estão dopadas – são praticados por fantasmas.

Um dia, uma delas consegue ver o agressor. Não era imaginação. Não era loucura da sua cabeça. Mas estamos em uma colônia norte-americana ultracristã e isolada do mundo, e, mesmo em 2010, perdoar é a única forma de conseguir a pulseirinha VIP do camarote do reino dos céus. Daí o plebiscito.

Fazer nada seria o mais normal – fazemos isso há séculos, somos boas do esporte, “ah, semana que vem a gente esquece”. Ficar e lutar, por outro lado, é uma ideia quase romântica: a chance de perder uma briga para homens violentos é, ainda hoje, um 7 a 1 antes do jogo começar. Ganhamos menos, ocupamos menos lugares de poder, etc., etc. E, por último, partir e deixar tudo pra trás, “ai que medo de não saber como vai ser daqui pra frente…”.

Não vou dar spoiler, o filme é imperdível, inspirado em um livro que tem como base uma história real e com várias indicações ao Oscar. Mas, mais importante do que a decisão em si, são as conversas entre as personagens. São mães e filhas, avós e netas, adolescentes, irmãs, cúmplices, oponentes, todo tipo de análise combinatória. E atrizes absolutamente maravilhosas, incluindo a primeira rainha Elizabeth de “The Crown”, Claire Foy; a deusa da Rooney Mara; a deusa vezes dois Frances Mcdormand; e Jessie Buckley roubando a cena.

Desde que o ano começou, embora o ano só esteja começando agora, fiquei parada em algumas histórias do ano passado. Quer dizer, de fevereiro. Quer dizer, da vida toda. Luana Piovani, impedida pela Justiça de falar sobre os filhos e o ex-marido, um rapaz que não se expõe, a não ser no BBB.

Titi Muller, impedida pela Justiça de…ai, desculpa, eu não queria me repetir, parece que não tenho repertório, mas é que o caso é mesmo parecido. Titi também tem uma ordem judicial que a proíbe de citar o pai de seu filho (se fosse uma série eu juro que ia criticar o roteirista, poxa, o povo não pode nem variar os abusos?).

São mulheres com falas tão poderosas que os rapazes precisam de juízes ou de ameaças de morte para que elas fiquem quietas

E, finalmente, Livia La Gatto, aquela mina brilhante que faz músicas e sátiras em seu Instagram, e que foi ameaçada de morte por um rapaz com uma harmonização facial estranhíssima e que parece que tem um canal para ensinar homens a serem homens (isso a gente está mesmo precisando). A treta, ao que tudo indica, é que Livia teria usado o sujeito esquisito como inspiração pra um ou dois vídeos sensacionais. Aliás, quando teremos prêmios para vídeos assim? Várias queixas, como na música dos Gilsons.

Enfim. Três mulheres que ganham a vida falando, e cujas falas são tão poderosas, que os rapazes que estão no conteúdo precisam de juízes ou de ameaças de morte para que elas fiquem quietas. Ah, tem também o recurso do exame psicológico. No caso da Titi, ouvi dizer que o advogado já requereu. E que aí o Daniel Alves ficou com inveja e pediu também, para ver se a garota que ele estuprou na Espanha não é maluca. E se não inventou tudo, mesmo tendo sido ele o autor de várias e contraditórias versões já derrubadas. É que a mulherada hoje faz mesmo tudo pra aparecer, temos que entender o lado deles, não é, não? Ah, agora falando sério – sim, a frase anterior era irônica – no filme da Sarah Polley tem um cara legal. Eles existem. Aqui na minha casa tem dois. E eles nem chegaram aos 20.

Volto ao filme da Sarah Polley. Fazer nada. Ficar e lutar. Partir.

Pra minha decepção, me dou conta de que não tenho feito nada, embora tenha partido algumas vezes. Minha lista de silêncios é cheia de vaidades: ser legal, cool, bem resolvida, pagar de superior. Meu #metoo particular está em votação interna há algum tempo, e sempre termina no Whats App. Enquanto não entro na moda, vou ao cinema e ouço mulheres. E para aqueles que não podem falar, quero dizer que estou aqui. Pronta para falar por elas.

Maria Ribeiro é atriz, mas também escreve livros e dirige documentários, além de falar muito do Domingos Oliveira. Entre seus trabalhos, destacam-se os filmes "Como Nossos Pais" (2017) e "Tropa de Elite" (2007), a peça "Pós-F" (2020), e o programa "Saia Justa" (2013-2016)

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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