Coluna do Marcello Dantas: "A morte como direito humano" — Gama Revista
COLUNA

Marcello Dantas

A morte como direito humano

Aproveitando o viés mais democrático que o país tomou, seria importante debater e ampliar as garantias legais que permitem que os cidadãos decidam até quando querem viver

24 de Janeiro de 2023

Um dos filmes mais tocantes que já assisti foi Mar Adentro, de Alejandro Amenabar, com Javier Bardem. A obra narra a história verídica de Ramón Sanpedro, que sofria de uma paralisia total, e a sua luta jurídica pelo direito à eutanásia na Espanha.

No último ano, dois amigos decidiram que era hora de partir. Desenharam suas mortes como quem faz um plano de voo ou uma escultura, com precisão, ponderação e amor. Eles avaliaram suas condições físicas e suas perspectivas, e usaram de todo o afeto que tinham ao seu entorno para se fortificarem com a coragem necessária para tomar essa atitude de forma assistida.

Ao reencontrar suas companheiras, vi uma força no olhar delas de que o amor permaneceu de forma viva e latente, sem consternação. Com sorriso de quem sabe que a partida foi em paz, decidida, conversada e amadurecida. Esse direito de escolher não sofrer e não imprimir o sofrimento a quem se ama é algo que me comoveu.

Poucos países do mundo permitem o suicídio assistido, apenas Suíça, Holanda, Espanha, Bélgica e alguns estados norte-americanos. E ainda menos países possuem regras claras para os atenuantes de condições terminais, como o uso de psicodélicos e substâncias que permitam acessar a dimensões espirituais que nos retire o medo diante da passagem.

Está na hora de partirmos para um debate mais sério e profundo sobre direito de morrer

Paradoxalmente, substâncias como a cannabis medicinal, os cogumelos psicodélicos e a ayahuasca, que podem auxiliar pessoas para enfrentar a vida em momentos extremos de dor, são ilegais ou semi-legais. Porém, aquela que pode te tirar a vida é uma versão turbinada de um remédio para dormir. Os métodos existentes são o uso de barbitúricos como o pentobarbital ou nembutal, medicamentos que em doses altas levam a um sono profundo, ao coma e a morte, sem dor.

Está na hora de partirmos para um debate mais sério e profundo sobre direito de morrer. Sem os dogmas cristãos, nem os tabus arraigados. Uma sociedade evoluída e plural precisa ter uma cláusula de escape clara. Aproveitando o viés mais democrático que o país tomou, seria importante debater e ampliar as garantias legais que permitem que os cidadãos decidam por conta própria até quando querem viver.

Eu amo viver. Esses meus amigos eram pessoas positivas, cheias de vida, de amor e de realizações. Teceram amor e germinaram vida e muitas ideias. Ainda assim, pode chegar um dia em que viver não é mais a melhor opção. Cabe a cada um ter a sabedoria de entender qual momento é esse. Algo dentro deles compreendeu onde se situaria esse limite entre o desejo de ficar e o medo de partir. Acima de tudo, é sobre exercer o direito de decidir com dignidade. Quem sabe faz a hora, não espera acontecer.

Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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