Coluna da Isabelle Moreira Lima: Vinhos para o frio — Gama Revista
COLUNA

Isabelle Moreira Lima

Um vinho e um casaquinho

Não pense que estamos entrando na ditadura dos tintos. No frio, tudo vale a pena se o corpo e o álcool não são pequenos

19 de Maio de 2021

Como você se prepara para o inverno? Piscou e estou aqui congelando, começando a tirar moletons e pijamas de fleece do alto do armário. Nos últimos fins de semana, já sob o efeito do frio noturno, fiz escolhas erradas. O cashmere estava certo, mas o tinto, leve demais, um suquinho perfeito para a piscina. Era um vinho delicioso, mas que pareceu menor por ser “refrescante demais”. Ele ficou triste, eu mais ainda. Peguei como lição: dai ao inverno o que é do inverno — ele não chegou ainda, mas já podemos nos esquentar e preparar a adega.

Dias (e especialmente noites) frios pedem vinhos com muito corpo e muito álcool. Regiões mais quentes costumam fazer vinhos mais amplificados e alcoólicos — a lógica é quanto mais sol mais açúcar na fruta, ou seja, mais material para ser transformado em álcool. Alguns bons exemplos são o Primitivo da Puglia, na Itália; o Cabernet Sauvignon do Maipo, no Chile; os Merlots do Sul do Brasil, os Malbec da Argentina. Gosto também quando há textura, quando os tintos fazem alguma “bagunça na boca” e não passam lisos até a garganta, que tenham alguma textura interessante. Dito isso, melhor manter os vinhos refrescantes e cítricos (ou aqueles que lembram balinha de cereja) na adega até um dia quente nos surpreender.

Não se assuste, não quero aqui impor regras ao seu hábito de beber vinho, nada mais chato e ultrapassado que isso. Justifico: dá para ser mais feliz de pantufa do que de chinelo quando o termômetro cai a 15, certo? Se você está perto de congelar, vai querer um cozido ou um ceviche? No vinho é meio assim também.

Dias frios pedem vinhos com muito corpo e muito álcool. Regiões mais quentes costumam fazer vinhos mais amplificados e alcoólicos

Isso não quer dizer que estamos fadados a beber somente tintos por meses. Rosés mais dramáticos caem bem, não são só acessórios de verão. Sim, você vai ter que pesquisar mais, não é nem uma questão de preço, mas eles são menos comuns nas prateleiras. Convencionou-se que rosé bom é aquele ao estilo da Provence, tão clarinho que é quase branco, com acidez alta e praticamente neutro em aroma e sabor. Esqueça isso e procure os que vêm da Península Ibérica, do calor argentino, da Itália — rótulos que falam mais alto e trazem mais personalidade.

Os brancos também não devem ser esquecidos quando a temperatura cai. Nada mais delicioso que branco de inverno, e do Douro vêm grandes vinhos, muitos com passagem por madeira, seja porque foram fermentados em barrica, o que dá um toque “cremoso”; ou porque amadureceram nelas, o que pode conferir notas abaunilhadas ou amanteigadas.

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É engraçado, o inverno pede o que o mundo do vinho mais afinado com os tempos contemporâneos parece fugir: uma boa barrica. O carvalho é a segunda planta mais usada na produção do vinho — sendo a primeira, obviamente, a videira. É dela que vem um dos melhores suportes para “amadurecer” a bebida, quando a fase de fermentação é finalizada. Além de uma estabilização mais eficaz do que a feita em tanques, o carvalho traz uma cor mais profunda para a bebida e a integração de taninos, algo crucial para a longevidade de um vinho. Há ainda um efeito aromático, quando notas como chocolate (ou cacau), fumo de corda e caixa de charutos, coco, baunilha e um certo tostado, entre outros, surgem.

Mas o pobre carvalho vem sendo demonizado já há alguns anos e a culpa é dos produtores que pesaram a mão em seu uso, fazendo verdadeiros sucos de barrica em que esses aromas mais ricos passam por cima da própria fruta e de seu frescor, que são justamente o santo graal dos bebedores mais antenados hoje.

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A untuosidade é outra característica desejada nos brancos, ela casa naturalmente com o inverno e com as comidas da estação. Como verificar isso tudo? A ficha técnica é seu mapa. Por mais que não se entenda tudo o que está ali, é possível desvendar alguns mistérios seguindo suas pistas. Não falo das notas de degustação, mas das informações sobre produção: região, uvas, uso da madeira, presença de taninos, corpo, e, especialmente, as melhores combinações de harmonização.

No frio também caem muito bem os laranja. Azedinhos, encorpados, e muitas vezes até ricos em taninos (aquele elemento dos tintos que traz alta adstringência e que aqui aparecem pela maceração das cascas da uva), são o “branco de inverno” por excelência. Afinal, o que é um laranja se não um branco que ficou tempo demais com as cascas justamente para ter mais corpo e presença? São muito versáteis, acompanhantes ideais tanto para sopas cremosas quanto para as caldeiradas.

O Brasil, e mais precisamente a região da Serra da Mantiqueira, entre São Paulo e Minas, faz o “vinhos de inverno” literal

Se o seu lance é espumante, fuja dos mais leves, dos proseccos, dos de método charmat, dos pét-nats super-refrescantes. São os borbulhantes mais complexos, os que trazem mais aromas de pão do que de fruta, que caem bem no inverno pois têm mais peso. A má notícia é que eles costumam ser mais caros porque pedem mais tempo de amadurecimento em contato com as leveduras, o que encarece a produção. Outra alternativa aos vinhos tranquilos são os fortificados: Porto, Jerez, Moscatel de Setúbal. Tudo o que recebe uma dose de aguardente vínica — ou que é feito de uvas passificadas (que viram passas), como o Amarone — vai esquentar o corpo, além de trazer complexidade ao paladar.

Se todos esses são vinhos bons para o frio, o Brasil, e mais precisamente a região da Serra da Mantiqueira, entre São Paulo e Minas, faz o “vinhos de inverno” literal. Isso porque, diferentemente do resto do mundo, as uvas ali são colhidas na estação e por isso ele foi batizado assim. Há cerca de uma década, a região passou a cultivar videiras e a inverter o seu ciclo, podando no verão, quando o resto do país colhe, e colhendo no inverno, quando os dias são quentes, as noites frias e o clima seco, ideal para a vindima. A explicação é que assim não há perigo de diluição da fruta pela água da chuva durante a colheita, o que pode arruinar a bebida.

Na Mantiqueira, a casta que melhor se adaptou foi a Syrah (já ouviu falar na vinícola Guaspari? Em Espírito Santo do Pinhal, São Paulo? Eles foram os pioneiros e fazem grandes exemplares com a variedade), que é também estrela no Rhône, na Austrália e na África do Sul, e que traz notas de especiarias, além de todas as outras características de um bom vinho de inverno. Fica aí então essa dica derradeira e semântica para a sua lista de compras.

Saca essa rolha

UM LARANJA E UM ROSADO QUE ESQUENTAM
O Trebbiano on the Rock é um vinho brasileiro natural feito pelo grande Luiz Henrique Zanini. É uma bebida a ser desvendada, um evento, cheio de camadas de aromas e sabores e, creio eu, harmoniza com qualquer mesa. O Sonrojo Rosé Garnacha é uma baladinha, alegríssimo, tem corpo para aquecer e é perfeito para acompanhar um papo entre amigos (fez minha alegria num zoom com as migas).

BRANCOS ENCORPADINHOS
Brancos de inverno têm mais a mostrar do que apenas uma acidez viva. O Atlântico é uma pechincha e perfeito para harmonizar, do bacalhau ao porco, passando pela moqueca. Já o Mouton Noir é vinho de fim de semana, igualmente versátil e mais complexo, uma delicinha.

TINTOS MIL, DA MACIEZ À TEXTURA TOTAL
Não tem jeito, podemos e devemos beber tudo no inverno, mas às vezes tudo o que se quer é um tinto. Aqui há quatro: o português Monte Velho 2019, um show de fruta, álcool e de maciez abaixo dos R$ 100; e os espanhois La Doncella de Las Vinas Tempranillo 2018, que é elegante e complexo e cheio de textura; o Insensato Garnacha Rioja 2019, que é a versão mais rústica dele, um pontinho mais musculoso; e o Navajas Rioja Crianza 2015, que é a mais clara tradução de prazer e ainda dá uma chance de se provar um vinho com seis anos de estrada.

Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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