Coluna da Isabelle Moreira Lima: Quero beber como um bom vegetariano — Gama Revista
COLUNA

Isabelle Moreira Lima

Quero beber como um bom vegetariano

Restrição alimentar não significa necessariamente menos possibilidades de harmonização, especialmente para os amantes dos vegetais

02 de Fevereiro de 2022

Como glutona (ou gourmand, para ser mais chique), fiquei muito impactada ao ler que a empresária inglesa Victoria Beckham come o mesmo prato todos os dias há 25 anos, peixe grelhado e legumes no vapor. Todos. Os. Dias. Casado com ela há mais de 20 anos, o ex-jogador de futebol David Beckham diz que “se emociona com comida e vinho” e lamenta seus hábitos alimentares. Com o perdão do trocadilho, questiono: como então conseguem se manter harmonizados?

Refleti muito sobre o tema e pensei que, mesmo comendo um único tipo de prato, o mundo do vinho é tão vasto que Victoria pode ter diferentes oportunidades de harmonização. Claro, o peixe vai mudar. Um atum pode ir com Pinot Noir; um bacalhau, com um Alvarinho; um robalo com um rosé da Provence. Se houver manteiga no preparo (embora eu duvide), um branco com passagem por madeira; se for azeite, por que não um Soave?

Com essa, afirmo com segurança: uma dieta restritiva, seja lá qual for, não restringe as opções de harmonização. Vegetarianos podem ser muito felizes com tintos robustos, invariavelmente associados a carnes, como bem explica o Wine Folly. Veganos podem experimentar os vinhos que abriríamos com proteínas animais para acompanhar as vegetais (se eles forem vinhos veganos, claro); é tudo uma questão de fazer a combinação certa.

Mesmo comendo um único tipo de prato, o mundo do vinho é tão vasto que Victoria pode ter diferentes oportunidades de harmonização

Para chegar a ela, não se pode subestimar a matemática, é preciso fazer análises combinatórias. As primeiras dicas para qualquer boa harmonização são “quebrar” os elementos da comida e os da bebida, como se ela também fosse um ingrediente, e saber que a escolha pode ocorrer por semelhança (um prato aromático com um vinho aromático), por contraste (um prato gordo com um vinho ácido) ou geografia (cozinha de uma região da França com o vinho feito lá).

Um exemplo bem básico: uma massa simples ao molho de tomate. Se a massa é simples, é leve, deve ser acompanhada por um vinho de corpo leve a médio, afinal de contas é básica, mas é uma massa e não uma salada. Se o molho é de tomate, sem grandes ingredientes que roubem seu protagonismo, podemos supor que há bastante acidez (tomates são ácidos, afinal, mesmo quando apresentam doçura) e ir na linha de acidez alta para a bebida também. Uma harmonização clássica seria um vinho feito com a Sangiovese, a uva do Chianti, que traz bastante acidez. Neste caso, seria uma harmonização por semelhança e geografia.

Agora, claro, há certos complicadores. O teor de gordura da comida é sempre um elemento fundamental a ser estudado e gorduras animais e vegetais são bem distintas. Logo, o que é determinante para encontrar o casamento perfeito é o equilíbrio entre acidez e o peso dessa untuosidade. Um brie de leite de vaca é mais pesado que um queijo vegetal. Para o primeiro, pensaríamos em Chardonnay com passagem por madeira. No caso dos queijos vegetais, por exemplo, o óleo de coco costuma ser um ingrediente superpresente e vai lindamente com Rieslings.

Para as alternativas à carne, como os hambúrgueres plant-based, entre outros, a dica é apostar nos tintos mais robustos mas optar pelos que têm menos taninos (tanino limpa gordura e aqui haverá menos que na carne animal), são mais redondos e aveludados. Se for uma data especial, vale investir nos que já têm mais tempo de garrafa e ser muito feliz com um vinho evoluído – e aí, já digo, ponha o pé na porta e mergulhe em cogumelos também.

Cogumelos, aliás, grandes amigos dos vegetarianos e veganos, são ótimos companheiros do vinho também: estão na roda de aromas para exemplificar notas de evolução em vinhos com tempo de garrafa e usados até em aulas dos cursos mais tradicionais para explicar o que é exatamente o sabor umami (o quinto sabor no grupo com doce, salgado, azedo e amargo).  Quer testar? Trinta segundos do microondas fazem com que o cogumelo praticamente fale a palavra umami.

Um bom vegetariano, aberto a tudo o que o solo tem a oferecer, bebe melhor que um carnívoro com restrições

Os cogumelos são excelentes para dar complexidade a qualquer prato e levar a diferentes possibilidades de vinhos: se você é fã dos brancos, prove aqueles com bom corpo e sedosos ou os que passam por fermentação em barrica, como Chardonnay mais comumente e alguns Sauvignon Blanc (lembro do chileno Matetic e já salivo). Vão ainda com Viognier, Marsanne e Roussanne. Se você prefere tinto, a depender do cogumelo e de seu preparo, o leque vai de um Pinot Noir mais magro até um Primitivo bem aveludado, passando por um Syrah mais terroso.

Posto tudo isso, o mundo dos vegetais é tão rico e, logo, as possibilidades de combinação são tão vastas que me arrisco a dizer até que um bom vegetariano, ou seja, aberto a tudo o que o solo tem a oferecer, bebe melhor que um carnívoro com restrições, enjoado para temperos, legumes e outros. Quanto à Victoria, continuo pensando nela, torcendo para que seja generosa consigo mesma e que varie os legumes e os peixes com que se alimenta para poder aproveitar a incrível adega que construiu ou ao menos um vinhozinho quando estiver à mesa com o David.

Saca essa rolha

VINHOS PARA PEIXES
O Terras de Estremoz Special Selection Regional Alentejano Branco 2020, além de ter um nome enorme, é ótimo pra peixes em preparos mais complexo porque tem corpo e um toque a mais de álcool. Para peixes brancos grelhados, um Sauvignon Blanc Leyda é o ideal, com alta acidez e corpo leve, além dos aromas cítricos e herbáceos. Para peixes mais gordos, o rosé francês Claude Val é um casamento #semdefeitos.

VINHOS PARA PLANT-BASED
Aqui o lance é focar em tintos redondos e aveludados. Três ideias: o italiano A. Mare Primitivo Puglia IGP 2020, que é um xuxuzão sem arestas; o argentino Cordero con Piel de Lobo Malbec 2021, que é simples mas honesto, muito fácil e tem um preço legal; e o português Vinho Rapariga da Quinta Select 2019, que é puro prazer e descomplicação.

VINHOS PARA COGUMELOS
O Pequenas Partilhas Cabernet Franc é um sucesso, com aromas de fruta bem madura e um toque de tabaco mais terroso, via superbem com funghi. Com sorte, você pode encontrar safras mais antigas no mercado (eu tive e tomei um 2011 que era um estouro!). Os Syrahs chilenos da Santa Carolina e da Ventisquero são show, muito corretos e fáceis, e o Primeira Estrada, da Mantiqueira, vale para uma data especial: é mais complexo, muito agradável, mas mais caro também.

Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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