Isabelle Moreira Lima
O odor e a delícia do vinho natural
Já ouvi de gente que encontrou uma aranha dentro de um natureba; outros, uma paixão tão grande a ponto de se levantarem bandeiras
Sempre experimento uma espécie de desespero quando me perguntam o que penso sobre o vinho natural — e essa é uma pergunta constante. A resposta não é reta e direta, digo que é meio como tudo na vida: pode ser muito bom, pode ser muito ruim. Já fui felicíssima em muitas ocasiões; em outras, jurei a mim mesma que jamais investiria um centavo sequer em outra garrafa como aquela.
Uma das minhas primeiras missões como repórter de vinhos foi investigar o uso da uva Isabel por produtores de vinhos naturais. A Isabel é uma variedade americana, usada principalmente nos vinhos coloniais e de garrafão, uma vitis lambrusca. As uvas a que você está acostumado a beber, Cabernet Sauvignon, Malbec, Chardonnay e outras, fazem parte da família das europeias, a vitis viníferas. Para mim, essa foi a primeira lição sobre os vinhos naturais: seus produtores são muito mais livres. Há seis anos, quando iniciei minha investigação, eles não precisavam se ater ao manuseio das uvas que figuram no topo de um esquisito sistema hierárquico formado pelo mercado — onde hoje, por exemplo, a Pinot Noir é uma estrela mundial.
Mas isso também deixou muita gente confusa, porque se há tanta liberdade e tudo é possível, o que define o vinho natural? A ideia imediata é a mínima intervenção. Não são usados insumos enológicos (compostos químicos e até mesmo biológicos ao longo do processo) em sua produção. Isso determinaria então que os vinhos naturais deveriam ser orgânicos, ou seja, feitos com uvas cultivadas sem nenhum pesticida ou qualquer tipo de melhoramento. Eles deveriam ser ainda veganos, o que causa uma surpresa imensa, afinal, como pode existir um vinho não vegano se eles são feitos de … uvas? É que no meio do processo, para a filtragem de um vinho, podem ser usadas gelatina de peixe ou clara de ovo, por exemplo.
Ninguém quer se afogar em um mar de vinhos ultraprocessados, mas cheiro de rato não é exatamente o que se almeja ao abrir uma garrafa
Ainda seguindo a lógica da mínima intervenção, os vinhos naturais deveriam descartar peremptoriamente o uso de SO2, ou os temidos sulfitos, que viraram o maior vilão do mundo do vinho hoje. Para os mais radicais da corrente, eles são os maiores agentes da dor de cabeça do dia seguinte e os estudos apontam que cerca de 1% da população mundial é alérgica a eles. Acontece que eles não estão apenas no vinho. São usados em frutas desidratadas e em muitos condimentos usados na cozinha. No vinho, seu papel é fazer com que ele resista ao tempo, viaje bem, não passe por uma segunda fermentação em garrafa, não sinta os efeitos do oxigênio.
O movimento do vinho natural surgiu há mais ou menos 20 anos como uma resposta à padronização e à superindustrialização no mundo do vinho. A ideia é que com menos intervenção do homem, eles são capazes de exibir toda a maravilhosidade de um incrível terroir: fica mais clara a influência da uva em certo clima, em certo ano, em certa localidade. Os vinhos seriam então únicos, vivos e saudáveis.
Há pouco menos de um ano, a França legislou sobre o que seria o vinho natural efetivamente: ele deve ser feito apenas com uvas certificadas como orgânicas e colhidas à mão e fermentadas espontaneamente com leveduras nativas encontradas em vinhedos ou no ambiente da adega, e sem as chamadas “tecnologias brutais” — osmose reversa, filtragem, pasteurização, termovinificação etc. Seguindo esses preceitos, há a certeza de que além de naturais eles serão ainda orgânicos e veganos.
Mas a surpresa vem agora: a legislação aprovada na França não veta totalmente o uso de sulfitos nos vinhos naturais. Apenas na fermentação. Ele é permitido, em quantidade modesta (30 mg por litro) ao fim do processo. Fica a cargo do produtor decidir se vai usar ou não e isso é identificado por um selo.
O movimento dos vinhos naturais fez tanto barulho e arregimentou tantos fãs que conseguiu atrair jovens para a bebida como um todo — o mercado sempre sofreu de pânico com o envelhecimento dos aficcionados sem deixar herdeiros. Mas também atraiu a atenção da indústria, que passou a forjar a produção de falsos-naturais, deixando tudo mais confuso e os defensores da bebida em pânico (leia esse artigo de uma das maiores vozes da vertente, a autora Alice Feiring).
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A primeira vez que provei um vinho natural, que sorte a minha, foi um ícone brasileiro, o Era dos Ventos Peverella 2013. Minha litragem ainda era baixa, eu ainda estava impressionada com aromas tão esquisitos quanto petróleo em um vinho tão delicado como o Riesling (na verdade, estou até hoje), mas mesmo assim ele foi capaz de mostrar que ali havia algo diferente mesmo. Fiquei interessada em como ele atacava minha boca em diferentes pontos e fui atrás de saber onde comprar. Vi que não era um vinho para o fim de semana, talvez para o meu aniversário, porque barato não era. E essa passou a ser uma triste constatação desde então: os vinhos naturais de que mais gostei eram os mais elegantes e, por algum motivo (posso imaginar qual), os mais caros. Os mais baratinhos, para mim, acabam resvalando nos aromas de “pano de pia” (o que aprendi a chamar, educadamente, de “aroma rústico”), e pior ainda é o “souris”, ou cheiro de ratazana, comum a alguns exemplares e que aparece no retrogosto.
Ninguém quer ser levado pela correnteza da industrialização e se afogar em um mar de vinhos ultraprocessados, mas cheiro de rato não é exatamente o que se almeja ao abrir uma garrafa.
Por isso, me animei ao descobrir que, para além dos naturais, outros vinhos “menos convencionais” são interessantíssimos, não só pela filosofia de produção, mas pelo resultado na taça mesmo. Os biodinâmicos, que são feitos com uvas cultivadas a partir dos preceitos de Rudolf Steiner, com base no movimento dos astros. A lua dita então o momento de plantar, podar, colher, fermentar e engarrafar. Parece misticismo, mas quando pensamos que a lua também interfere nas marés, por que não nas plantas? Ao visitar uma vinícola biodinâmica, a Koyle, no Chile, entendi a importância de se ter a biodiversidade local preservada como prega esse tipo de cultivo. Entre os corredores de vinhas havia flores selvagens, outras árvores frutíferas, animais. Isso tudo faz com que o ecossistema se autorregule e que haja menos intervenção no manejo dos vinhedos.
E para mim talvez esteja aí no fim dessa frase o segredo: o manejo do vinhedo. Quanto mais esperto ele é, mais gostoso é o vinho que sai de suas uvas. A ideia do vinho natural, quando é livre de radicalismos, é maravilhosa. E por isso eu incentivo que se prove os naturais, assim como os biodinâmicos, os orgânicos, os veganos, todos os tipos de vinho. Mas, especialmente, que se pesquise antes: quanto mais se souber sobre o produtor, mais sucesso pode-se ter ao abrir uma garrafa. Já ouvi de gente que encontrou uma aranha dentro de um natureba; outros, uma paixão tão grande a ponto de se levantarem bandeiras. É questão de sorte, mas os relatos dos que já beberam, seja em sites especializados ou em aplicativos de vinho, podem servir como mapa para achar o pote de ouro no fim do arco-íris.
Saca essa rolha
SIGA ESSE MAPA E EXPLORE OS ORGÂNICOS
Os vinhos da vinícola chilena Emiliana são um sucesso, o preço é excelente e eles são corretíssimos, gostosinhos, e vão ficando mais interessantes a cada linha. Outra vinícola do mesmo país que faz um trabalho brilhante é a Odjfell, que tem um Sauvignon Blanc e um Cabernet Sauvignon fantásticos. O rosé Chakana Nuna também vale sacar a rolha.
OS BIODINÂMICOS
Nunca provei nada mais ou menos do produtor francês Vincent Caillé, do Loire. Tudo é maravilhoso. Destaco, já que é verão, o Je T’Aime Mais Je Soif 2019 e seu Côt 2019, que é a versão francesa da Malbec. Estou igualmente apaixonada pelo espumante espanhol Loxarel Clàssic Penedès Vintage Brut Nature Reserva 2015.
OS NATURAIS
O espumante italiano Cantina Indigeno Bisint – 2018 passa por fermentação espontânea com leveduras indígenas em cubas de cimento e fica oito meses em contato com suas lias. É finalizado sem filtragem, estabilização ou clarificação, não tem sulfito adicionado, somente o gerado pela própria fermentação. Ou seja, uma nova roleta russa ao abrir cada garrafa. Tive coragem e dei sorte.
E OS VEGANOS
A Bodegas Pinoso, espanhola, tem dois vinhos, um branco e um tinto, fresquíssimos e perfeitos para o verão.
Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.