Coluna do Fernando Luna: "Só há tempo pra luz & amor" — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Só há tempo pra luz & amor

Nesta Antologia Profética, versos desgraçadamente atuais sobre a família contra a familícia, a estranha sensibilidade do cidadão de bem, uma escolha nada difícil e o dilema suicida entre o iceberg e o navio

19 de Setembro de 2022

Não há mais tempo pra choro & ranger de dentes, só há tempo pra luz & amor

Lawrence Ferlinghetti, 1976

Olá, seja bem-vindo ao Grupo de Apoio a Quem Tem Parente Próximo que Vota no Bolsonaro.

Primeiro passo: admitimos que somos impotentes perante a lavagem cerebral inoculada em pessoas queridas, graças a anos de noticiário enviesado sobre a Lava Jato e a milhões de disparos de fake news estrambólicas.

Coragem, você não tá sozinho nessa.

Se o pior presidente da história do Brasil tem inexplicáveis 30% das intenções de voto, mais ou menos, são uns 46 milhões de brasileiros cogitando digitar 22 na urna eletrônica. Estatisticamente, deve ter gente da família aí.

Com sorte, apenas um tio distante ou um primo de segundo grau – ninguém que vá fazer falta na ceia de Natal.

A realidade, todavia, pode ser bem mais cruel.

Talvez o bolsonarista de estimação seja seu pai, sua mãe ou seu irmão – pessoas que você ama de verdade.

Pois é, acontece nas melhores famílias. Receba minha solidariedade.

Mas se Bolsonaro já destruiu a saúde, a educação, a economia, a cultura, o meio ambiente e o decoro, o Grupo de Apoio a Quem Tem Parente Próximo que Vota no Bolsonaro não vai deixar que ele destrua também seu relacionamento com quem mais importa.

Tarde demais? Nunca. Segura na mão de Lawrence Ferlinghetti e vai.

Em 1976, ele lançou o livro “Quem Somos Nós Agora”. Provavelmente você tem feito essa mesmíssima pergunta, diante das manifestações políticas da sua parentela. Fica, então, com os versos apaziguadores do “Manifesto Populista”: “Não há mais tempo pra choro & ranger de dentes, só há tempo pra luz & amor”.

Aqui é um espaço seguro quem tenta levar um pouco de bom senso aos almoços de domingo. Aqui é um lugar de acolhimento quem alerta que a distância do kkkkkkkk pra KKK tá cada vez menor. Aqui é um ambiente humanizado pra quem tenta virar voto na festinha do afilhado. Aqui é um círculo de apoio pra quem sabe que esse pesadelo já tá quase acabando – e a família continua depois de outubro.

Meu nome é Fernando e tô há 24 horas sem brigar com nenhum parente por causa de política. É hora de pacificar o Brasil – um grupo de Zap de cada vez. Obrigado.

Preferimos o iceberg ao navio

Elizabeth Bishop, 1946

Dada a várzea do primeiro debate presidencial, com direito a briga de torcidas no salão anexo, adoto os métodos da crônica futebolística. Notas pra atuação dos candidatos:

LULA: nota 5.

Caminhou em campo, sem empolgar torcedores ou indecisos. Parecia cansado do baile no “Jornal Nacional”. Raros lampejos do debate-arte, da argumentação-moleque – como na resposta à candidata que dizia não ver o país descrito por ele, ao relembrar seu governo: “Mas seu motorista viu, seu jardineiro viu, sua empregada viu”. Olé.

BOLSONARO: nota -5.

Seu estilo é ruim, sua visão de jogo é ruim, seu time é ruim, enfim, é o próprio coisa-ruim. Deixa tudo pior lembrar que, ainda assim, tem 32% de intenções de voto. Talvez um pouco menos depois do debate, em que não perdeu nenhuma oportunidade de insultar as mulheres – maioria do eleitorado brasileiro.

CIRO: nota zero.

Triste fim do candidato que caminha pra terminar sua quarta disputa presidencial com menos votos que da última vez. Insistiu numa versão perversa do extraordinário poema de Elizabeth Bishop, “O Iceberg Imaginário”: Ciro prefere o iceberg ao navio, o naufrágio da reeleição ao bote salva-vidas, a mágoa de Lula ao ódio bolsonarista.

SIMONE TEBET: nota 7.

Destaque da rodada. Com marcação dura, foi bem no confronto direto à direita e à esquerda do campo democrático – sem caneladas e sem deixar dúvida que o grande adversário do país é o próprio presidente. Dos três terceiraviers, foi quem jogou melhor. Se repetir a atuação, periga dobrar as intenções de voto de 1% pra 2%.

SORAYA THRONICKE: nota 4.

A candidata tem um Aerotrem pra chamar de seu: o imposto único. Assim como Levy Fidelix era fixado no monotrilho, ela tentou sempre o mesmo drible: a reforma tributária de uma nota só. Num belo contra-ataque, lembrou que Bolsonaro é tchuchuca.

FELIPE D’ÁVILA: nota 3.

“Sou um cidadão como você”, começou, e a internet terminou: “Como você que declarou um patrimônio de 24,6 milhões de reais”. Tá claramente jogando fora de posição, devia se candidatar a comodoro no clube Harmonia, em São Paulo.

É importante acordar a tempo

Orides Fontela, 1986

Lula ou Bolsonaro? Tem quem insista: uma escolha muito difícil. Será? Vou reformular a questão.

Lei Maria da Penha ou pistola? Dilma Rousseff ou Brilhante Ulstra? Carta em Defesa do Estado Democrático ou grupo de zap do Véio da Havan? Legalismo ou golpismo? Dois de outubro de 2022 ou 31 de março de 1964?

Política ou necropolítica?

Vacina ou cloroquina? Ciência ou negacionismo? Viva o SUS ou 684 mil mortos? Estatuto do Desarmamento ou 474% mais armas com os cidadãos de bem? Polícia ou milícia? Marielle Franco ou Ronnie Lessa? Lei de cotas ou Sérgio Camargo? Liberdade de expressão ou discurso de ódio? Biblioteca ou clube de tiro?

Paulo Freire ou Olavo de Carvalho?

Caetano Veloso, Anitta e Emicida ou Sérgio Reis, Latino e Roger Moreira? Ministro Gilberto Gil ou ministro Mário Frias? Fernanda Montenegro ou Regina Duarte? Marcos Pontes no espaço ou Marcos Pontes na política?

Fome Zero ou 33 milhões com fome?

Bolsa Família ou Auxílio Brasil? Carteira de trabalho ou carteira Verde e Amarela? Leite a 3 reais ou mamadeira de piroca?

Estado laico ou Silas Malafaia?

Pastor Henrique Vieira ou pastor Magno Malta? Supremo Tribunal Federal ou Tribunal do Santo Ofício? Procurador Geral da República ou Engavetador Geral da República? Independência na Polícia Federal ou interferência na Polícia Federal?

Transparência ou 100 anos de sigilo?

Triplex sem registro ou 107 imóveis registrados? Saúde e educação ou orçamento secreto? Transposição do São Francisco ou Arthur Lira na Codevasf? Amazônia ou Ricardo Salles? Terra indígena ou garimpo ilegal? Fazendeiro responsável ou fascista do agro?

O Brasil de 2003 a 2010 ou o Brasil de 2019 a 2022? “O Brasil feliz de novo” ou “Deus, pátria e família”? “O cara” ou “a tchutchuca do Centrão”?

Orides Fontela anotou um “Lembrete” imprescindível em seu livro “Rosácea” – “É importante acordar a tempo/ é importante penetrar o tempo/ é importante vigiar o desabrochar do destino”.

Falta menos de um mês pra eleição: a escolha não é muito difícil.

Perdoai-lhes Senhor / porque eles sabem o que fazem

Sophia de Mello Breyner Andresen, 1962

O irônico título do poema que termina nesses dois versos é “As Pessoas Sensíveis”.

Pois o Brasil criou sua própria versão desses tipinhos: o Cidadão de Bem.

É uma figura cada vez mais comum ou, talvez, comum como sempre – apenas, diante de recentes exemplos encorajadores, perdeu a vergonha de exibir publicamente seu jeito estúpido de ser.

Assim como as tais pessoas sensíveis da poeta portuguesa, os Cidadãos de Bem têm uma bússola moral peculiar: “Não são capazes de matar galinhas/ Porém são capazes/ De comer galinhas”.

(Curiosidade: o certificado de Cidadão de Bem, com letras maiúsculas como sua hipocrisia, é sempre autoconcedido. Afinal, se ele mesmo não se considerar um Cidadão de Bem, quem mais o faria?)

O Cidadão de Bem distribui marmitas.

Mas nunca aleatoriamente, senão vira bagunça. Caridade com critério, compaixão com meritocracia, solidariedade com ISO 9000. São 33 milhões de famintos, então é preciso merecer a marmita.

Nada de burocracia, basta uma pergunta: vai votar em quem?

Note que a resposta errada não faz o Cidadão de Bem perder a linha. Ele até utiliza o pronome de tratamento respeitoso, “senhora”, como cabe a um Cidadão de Bem: “A senhora peça [a marmita] para o Lula agora, beleza?”.

Tudo devidamente registrado em vídeo, porque qual a graça de humilhar alguém se não for possível compartilhar o momento com outros Cidadãos de Bem?

E se uma gente sem deus reage à sua beneficência seletiva, o Cidadão de Bem logo divulga um pedido de desculpa – aparentemente tão sincero quanto sua generosidade inicial.

Ele não pode parar, ainda tem muito a fazer pela pátria.

O Cidadão de Bem representa o país no funeral da rainha Elizabeth II, embora seja incapaz de chorar mortes do lado de cá do Atlântico. O Cidadão de Bem desenvolve um engenhoso sistema de carimbos, pra evitar que seus alunos repitam a merenda escolar. O Cidadão de Bem, que pode ser uma Cidadã de Bem, sugere à criança estuprada adiar o aborto legal, “Você suportaria ficar mais um pouquinho?”.

O Cidadão de Bem, você sabe, é uma pessoa sensível.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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