Coluna do Fernando Luna: Gente é pra brilhar — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Gente é pra brilhar

Nesta “Antologia Profética”, versos degraçadamente atuais sobre o palavrão como arma de guerra, crossfit para os neurônios, ganhar na mega-sena sem jogar e a força civilizatória de duas mães

28 de Fevereiro de 2022

Gente é pra brilhar

Vladímir Maiakóvski, 1920

“Navio de guerra russo, vai se foder”, falou o soldado ucraniano.

Ou, como li por aí, vai se f****, com asteriscos preservando a moral e os bons costumes. Curioso alguém diante de uma guerra se ofender com um palavrão. Enfim, difícil encontrar um verbo tão bem empregado assim.

Mas como em qualquer batalha a primeira vítima é sempre a verdade, vai ser difícil checar se a coisa realmente aconteceu desse jeito, se o guardinha de fronteira realmente usou a palavra exata na hora certa.

Duvido que os fatos sejam melhores que essa versão, donde me atenho à versão até prova categórica em contrário. Alguém já deve estar pensando em adaptar a história pro cinema – não sei se com Clint Eastwood ou Whindersson Nunes no papel principal.

Imagina os 13 ucranianos de bobeira numa ilhota no Mar Negro. Todos felizes por estar longe da frente de combate, todos desmoralizados por estar longe da frente de combate quando até sexagenários lançam coqueteis Molotov.

Aí um navio russo se aproxima daquela pedra não muito maior que um shopping center, e manda a real pelo rádio: “Baixem as armas para evitar derramamento de sangue, caso contrário vocês serão bombardeados”.

Uma rápida discussão se instala em terra. São poucas as alternativas. a) Morrer lutando, em nome da pátria amada. b) Aceitar o conselho e se render, depois a gente vê como explica em casa. c) Mandar se foder.

As três opções terminam do mesmo jeito: os 17 milhões de quilômetros quadrados de território russo ganham mais 0,1 quilômetro quadrado.

O que tá em jogo, portanto, é por quais meios o fim será atingido. Nesse caso, nada como mandar uma das maiores potências bélicas do mundo se foder – que, inclusive, deve soar melhor em língua eslava.

Não é uma bravata, é um tratado filosófico-existencial.

Diante do absurdo, a pilhéria. Niilismo na prática. E o mesmo ar de superioridade dos versos de “A extraordinária aventura vivida por Vladimir Maiakóvski no verão na Datcha”, quando o poeta russo (que também se desentendeu com a Rússia) se compara ao sol.

Lutar com palavras é a luta mais vã

Carlos Drummond de Andrade, 1942

A melhor coisa de jogar “Termo” é que não parece que você tá jogando joguinho no celular.

Nada disso.

Joguinho é Candy Crush, Free Fire e quetais, variações de crack em forma de algoritmo, alienações digitais altamente intoxicantes.

Termo é diferente. Ou pelo menos tento me convencer disso.

Você não perde tempo jogando Termo, você previne Alzheimer. Você não procrastina adivinhando uma palavra de cinco letras em até seis tentativas, você aperfeiçoa suas habilidades cognitivas. Você não segue pistas baseadas nas cores em que as letras aparecem, você pratica crossfit com seus neurônios.

Então vou arriscar uma palavra, pra começar o jogo: “Cerol”. Por que “cerol”? Bem, por que não? Meu psicanalista que lute pra interpretar.

Incrível: três letras certas e no lugar exato da palavra. Viu? Até aqui, nenhuma meritocracia e bastante sorte. Agora é hora de raciocinar. Hum, “Xerox”? Não. “Herói”? Também não. “Feroz”! Feroz, absolutamente certo.

“Fenomenal”, é como o Termo classifica essa performance, bem, fenomenal. Apenas quatro tentativas pra decifrar tamanho enigma linguístico. Chora, Champollion. Fe-no-me-nal. Eu? Imagina, sou apenas um operário das letras. Um pouco acima da média, talvez… De fato, nem precisei da quinta tentativa, muito menos da sexta. Ora, deixemos a modéstia de lado. Fenomenal, obrigado.

Tô me sentindo pleno e quero mais.

Hoje, porém, só amanhã. Você só pode jogar Termo uma vez por dia. Suficiente pra viciar, pouco pra overdose. Pode até tentar um substituto, como Letreco e Worldegame, ou o próprio Wordle, a versão original e em inglês do Termo.

(O New York Times já comprou o Wordle, por um “valor baixo de sete dígitos” – nada mal, quando se lembra que o menor valor de sete dígitos é 1 milhão de dólares, e que 2 ou 3 milhões de dólares podem perfeitamente ser considerados um “valor baixo de sete dígitos”.)

Vai encarar? Carlos Drummond de Andrade, um Muhammad Ali da linguagem, advertiu no poema “O Lutador”, publicado em seu livro “José”: “Lutar com palavras é a luta mais vã”. Boa sorte.

Tive uns dinheiros — perdi-os… Tive amores – esqueci-os

Manuel Bandeira, 1944

Acordei disposto a realizar o sonho de todo brasileiro: ganhar na mega-sena sem jogar.

Pulei da cama e fui logo acessar o tal site do governo, Sistema de Valores a Receber, pra descobrir se esqueci dinheiro em algum banco. Não sou de esquecer coisas, ainda mais dinheiro em banco, mas vai quê.

Com mais de 8 bilhões de reais dando sopa nos cofres-fortes, há de haver algum pra mim. Só falta ligar o nome ao CPF. Seria como receber uma herança inesperada de um tio de segundo grau, sem que ninguém precise morrer – nem mesmo um tio de segundo grau.

Melhor que achar um troco no bolso da calça, só mesmo encontrar um cascalho deixado pra trás há muitos anos numa conta corrente distante. Até fiquei feliz em pensar nos juros exorbitantes do Brasil. Imagina: com juros compostos calculados em cima das maiores taxas de juros do mundo, o cascalho deve ter virado uma montanha.

Cliquei no link do Banco Central como quem pega a estrada na véspera de feriado, com a certeza de um engarrafamento virtual e a perspectiva de que o aborrecimento valeria a pena.

(Na primeira tentativa, o site saiu do ar logo depois de entrar: “Demanda de acessos muito acima da esperada”. O que esperavam, diante da quarta maior taxa de desemprego entre as principais economias do planeta? Se pra votar no BBB o povo queima o plano de dados, imagina pra ganhar uma bufunfa.)

Dinheiro grátis? Também quero.

Pra minha supresa, não apenas consegui acessar de primeira como descobri que, sim, eu disse sim, eu quero Sim: sou um dos 24 milhões de brasileirinhos e empresas de brasileirinhos com alguma grana pra receber.

Já rico na minha imaginação, comecei a traçar planos extravagantes como completar o tanque do carro e fazer um churrasco. Mas logo a realidade se impôs. É preciso aguardar um mês pra saber qual a parte que me cabe nesse latifúndio monetário.

O mais provável é que seja algo bem parecido com o espólio do “Testamento” de Manuel Bandeira, publicado em seu “Lira dos Cinquent’anos”: “No maior desespero/ rezei: ganhei essa prece”. Oremos.

Para um amanhecer maravilhosamente claro/ Eu me levanto

Maya Angelou, 1978

Duas mães se encontraram nesse último sábado, na praia da Barra da Tijuca, no Rio.

Ivone e Bruna falaram de seus filhos, como tantas mães são capazes de falar por tantas horas. Mas, dessa vez, não falaram com alegria. Ivone Lotshove Laysi é mãe de Moïse, Bruna da Silva é mãe de Marcus Vinícius.

Todo mundo sabe quem é Moïse Kabagambe.

Todo mundo, apesar do esforço da polícia pra deixar quieto o que aconteceu no quiosque Tropicália. Empurrou o inquérito com a barriga e intimidou a família de Moïse, assassinado aos 24 anos, até que a barbárie das imagens da câmera de segurança embrulhou o estômago do país.

Todo mundo já soube quem é Marcus Vinícius da Silva.

Mas, três anos depois do garoto de 14 anos ocupar o noticiário, provavelmente pouca gente ainda liga o nome à pessoa. Afinal, de lá pra cá, foram mais de 150 mil homicídios do Brasil. Marcus Vinícius era o aluno da Escola Estadual Vicente Mariano, no Complexo da Maré, também no Rio, atingido por um tiro da polícia a caminho do colégio.

(E ninguém venha falar de bala perdida. Bala perdida é como racismo reverso: uma bizarra pirueta de linguagem pra disfarçar o óbvio. A bala de Marcus Vinícius é tão perdida quanto o taco de beisebol que matou Moïse. A bala e o taco conhecem o caminho: Moïse e Marcus Vinícius são negros, como são negros 7 em cada 10 vítimas de assassinato no Brasil.)

Ivone e Bruna são mães paralelas, com homicídios paralelos atravessando suas vidas paralelas.

(“Mães Paralelas” é o recém-chegado e ótimo filme de Pedro Almodóvar. O título, que parece se referir às personagens principais, uma mãe tardia e uma mãe adolescente, se revela mais amplo. Mães paralelas também são aquelas dos filhos assassinados pelos fascistas na Guerra Civil espanhola. E, por extensão, todas as mães que perderam seus filhos pra estupidez.)

“Você pode me matar com seu ódio/ Mas ainda, como o ar, eu vou me levantar”, escreve Maya Angelou, mãe de Guy Johnson, em “Ainda assim Eu me Levanto”, poema que dá nome a seu livro mais conhecido.

Ivone e Bruna estão de pé. São uma força civilizatória.

_______

Toda segunda, o jornalista Fernando Luna (@fluna) apresenta sua “Antologia Profética”, com versos desgraçadamente atuais.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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