Coluna do Fernando Luna: Diamantes tem à vontade — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Diamantes tem à vontade

Nesta “Antologia Profética”, versos desgraçadamente atuais sobre um app de controle filial, uma transa adiada, Xandão de Brasília & Xande de Pilares e a epidemia de mortes de famosos

21 de Agosto de 2023

Diamantes tem à vontade, esmeralda é para os trouxas

Murilo Mendes, 1932, Antologia Profética

Agora que a Controladoria-Geral da União obrigou Jair Bolsonaro a entregar as joias, podia mandar devolver nossos parentes.

Nem todos, porém.

Pode ficar com o tio-avô e o concunhado, que jamais disfarçaram seus pendores autoritários e nem a nostalgia de um fictício Brasil lindo e ordeiro das cartilhas de Educação, Moral e Cívica.

Mas depois de anos sem reconhecer tanta gente querida, passou da hora de ter de volta pai, mãe e os galhos mais amados da árvore genealógica – que ainda insistem em convicções fantasiosas mesmo diante de fatos comprovados.

Bolsonarismo é uma doença crônica, apesar do efeito agudo – foi capaz de matar milhares de brasileiros durante a pandemia, 10% das mortes com apenas 3% da população mundial.

Combater essa hipertensão social exige mais que a CGU.

A polícia federal devia usar melhor o hacker de Araraquara. Seus conhecimentos de informática por correspondência, que impressionaram o ex-presidente, seriam úteis no desenvolvimento de um aplicativo pra defender os progenitores mais vulneráveis a fake news.

Em vez do controle parental de telefone celular, Walter Delgatti Neto criaria um app de controle filial de telefones celulares.

Quando sua mãe recebe um vídeo no Zap com o Bolsonaro comendo pão de boca aberta pra fingir desapego, aparece um link pra reportagem sobre o colar de 4 milhões de reais e 3161 diamantes da Michelle.

Se encaminham com frequência pro seu pai um meme desqualificando o Xandão de Brasília, abre automaticamente seu tocador de música na faixa “Diamante Verdadeiro”, versão do Xande de Pilares.
Contra a desinformação em massa, uma massa de informação.

Desde sempre, as notícias destes tristes trópicos são duvidosas. Mas até a exagerada carta de Pero Vaz traz verdades. Em sua paródia no livro “História do Brasil”, o mineiro Murilo Mendes diz o que vê por aqui: “Diamantes tem à vontade,/ esmeralda é para os trouxas”.


Mora na filosofia

para que rimar amor e dor

Monsueto Menezes, 1955

“Transa” foi o melhor show do Caetano Veloso que não vi.
Nem eu e nem alguns milhares de pessoas que foram domingo à noite até a Marina da Glória, no Rio, tentar celebrar 50 anos de um dos melhores discos da música brasileira – mas desistiram diante do caos.
Parecia imperdível.
Jards Macalé, Tutty Moreno e Áureo de Souza, três dos quatro integrantes da banda original – o baixista Moacyr Albuquerque morreu em 2000 – tocando “You Don’t Know Me” e companhia. A promessa de que seria a única apresentação esgotou 15 mil ingressos.
Em vez disso, tivemos cinco horas de atraso debaixo de chuva, em cima de lama e cercados de filas e desinformação por todos os lados.
A organização do Doce Maravilha (contém ironia, agora sabemos) deixou o público no escuro, literal e figurativamente: simplesmente anunciaram que o show tinha sido adiado.
Adiado? Pra dali a uma hora? Duas? Só mais 72 horas, patriotas?
Às dez da noite, uma hora e meia depois do horário programado, um sinal nas redes sociais do Caetano, igualmente vítima da esculhambação: “Estamos no local do evento desde cedo acompanhando a situação”.

A situação? Tava chovendo.
Uma chuva besta. Nenhuma área da cidade alagada, nenhuma sirene apitando em zonas de risco, Defesa Civil sossegada em casa assistindo Larissa Manoela virar Britney Spears no “Fantástico”.
Na véspera, o arraso que foi Gil com Baiana System também atrasou – e uma ventania foi a culpada da vez. Se fizesse sol, atrasaria por causa do calor. Esse festival precisa acontecer no vácuo, com a vantagem extra de que seu som ruim não se propagaria.
“Mora na Fil0sofia”, samba de Monsueto Menezes e Arnaldo Passos, recomenda não rimar amor e dor. Tá no lado B de “Transa”. Vou lhe dar a decisão, Doce Maravilha: seu caso não é de ver pra crer, tá na cara a
incompetência.
Tocaram essa ali pelas duas da madrugada. Assisti pelo You Tube, debaixo das cobertas.

Erga essa cabeça, mete o pé e vai na fé/ manda essa tristeza embora

Xande de Pilares, 2009

Um Alexandre redime o Brasil novamente. Mas desta vez é o Xande de Pilares, não o Xandão de Brasília.
Se o ministro do Supremo Tribunal Federal foi o último homem na linha de defesa contra o esfacelamento nacional, agora o músico contorna a falsa polarização entre samba do morro e a MPB do asfalto.
Assim como o histórico “Gal canta Caymmi”, “Xande canta Caetano” funciona como uma reverência e também uma reinvenção – daí sua força.
Na conversa musical entre duas gerações, a distância ajuda a descobrir um novo território comum. Daí a claridade inédita da luz do sol que a folha traga e traduz, por isso a palavra cantada pode espantar mais uma vez.
O álbum resgata uma ideia utópica de nação.
O cruzamento de Pilares com Santo Amaro da Purificação dá uma potência extra ao subúrbio carioca, ao Recôncavo Baiano e ao país em geral – tudo junto e misturado, pra se tornar algo maior que a soma das partes.

(Enquanto isso, o grande mentecapto mineiro propõe uma frente sul-sudeste contra o norte-nordeste: outra evidência de que a disputa é sempre entre quem crê no convívio entre diferentes e quem tenta excluir as diferenças.)
O disco mexeu com geral, a começar pelo próprio homenageado.
Ele chora de soluçar enquanto escuta a versão de “Gente”, no vídeo que circulou semana passada nas redes – um teaser de lançamento capaz de fazer inveja à estratégia de marketing de “Barbie”.
Só discordo de quem diz que enfim o biscoito fino de Caetano chega às massas, como se ele não fosse gravado desde os anos 1960 por figuras popularíssimas como Roberto Carlos, Maria Bethânia e Ivete Sangalo.
Além, claro, dele mesmo atravessar os cercadinhos de gênero desde sempre.

Pra ficar num exemplo a calhar: fez cover do grupo de pagode Revelação em “Ofertório”, cantando em coro com os filhos a criação de Xande, Gilson Bernini e Carlinhos Madureira: “Erga essa cabeça, mete o pé e vai na fé”.

Tudo fora deste momento é mentira

Charles Simic, 2008

Parece que todo dia morre um famoso. Às vezes, mais de um.
Semana passada, as cantoras Doris Monteiro e Leny Andrade nos deixaram na mesmíssima segunda-feira, provocando lutos generalizados e um cada vez mais comum congestionamento de obituários.
(Sem falar na avalanche de charges homenageando o falecido com um par de asas, legendas do tipo “festa no céu”, editores correndo pra atualizar a Wikipedia e, acima de tudo, posts em que o autor do post sorri ao lado do famoso, mais comovido com sua aparente intimidade do que com a morte.)
Em seguida, foi a vez de Sinéad O’Connor, num mês que já havia perdido João Donato, Jane Birkin e Tony Bennett – fazendo dos necrológios o line up mais louco da história da música. Sem falar em Zé Celso, Milan Kundera e, por que não, nos ex-ministros Sepúlveda Pertence e Sérgio Amaral.
A bruxa tava solta em julho?
Não creio. Basta lembrar de outras figuras que nos deixaram de janeiro pra cá: Rita Lee, Cormac McCarthy, Gloria Maria, Astrud Gilberto, Kenzaburo Oe, Ahmad Jamal, Palmirinha, Tina Turner, Mary Quant, Ryuichi Sakamoto, Harry Belafonte, Boris Fausto, Burt Bacharach, Martin Amis, Wayne Shorter, Gina Lollobrigida, Paco Rabanne, Alain Touraine e Carlos Saura, pra ficar naqueles de quem vou sentir mais falta.
Morreu até quem vivia pra matar, como o terrorista Ted Kaczynski, o Unabomber. Morreu até quem você nem sabia que tava vivo, como o astro do k-pop Moonbin. Morreu até o famoso “quem?”, aquele que exige uma explicação pormenorizada: fez o papel de fulano na série tal, uma ponta assim
no filme assado, lembra?
Se tá difícil de acompanhar, pode se preparar. Vai piorar.
Essa epidemia de mortes célebres começou com Andy Warhol. Não com seu funeral, mas com sua previsão: “No futuro, todo mundo vai ser famoso por 15 minutos”. Pois esse futuro começou há tempos.
Com cada vez mais notáveis por aí, de prêmio Nobel a influenciador, a única certeza é a morte notável – e que “tudo fora deste momento é uma mentira”, no memento mori do poeta Charles Simic, outra vítima de 2023.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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