Coluna da Bianca Santana -- Doença de sobreviver — Gama Revista
COLUNA

Bianca Santana

Doença de sobreviver

Que gestos e atitudes nos permitem afirmar que somos resistência, em vez de cúmplices, a tantas mortes? Por covid, por fome, por bala?

07 de Julho de 2021

Essa semana, uma amiga que estuda ayurveda — medicina tradicional indiana — me perguntou se eu poderia ser uma de suas cobaias: a partir de uma consulta inicial, ela me levaria como um caso a ser analisado por seu grupo.

— Vamos lá.

— Me conta a sua história de vida.

— Inteira?

— Do ponto que parecer importante.

Minha própria surpresa com a pergunta me espantou. Eu mesma já comecei entrevistas assim, sob orientação da falecida professora Ecléa Bosi, do Instituto de Psicologia da USP, em uma disciplina de pós-graduação chamada Cultura e Memória Social: a História Oral. No curso, Ecléa propunha que ouvíssemos os testemunhos de pessoas velhas, trabalhadoras e trabalhadores manuais, e depois produzíssemos ensaios ressaltando o que havia de memória coletiva e social nas narrativas individuais. Receber ensinamentos de Ecléa foi imenso. Tanto quando entrevistar minha tia Guida, costureira, e a partir da vida dela contar de festas populares do interior de São Paulo, da migração rural-urbana na metade do século 20 e tanto mais.

Na primeira entrevista com Sueli Carneiro para “Continuo preta”, que publiquei recentemente, pedi à Sueli que me contasse sua vida.

— Só isso?

Ao ouvir a história de vida de Sueli Carneiro, ouvi parte da história da minha vó, partes da minha mãe, e também minha. Ouvi memórias coletivas do movimento de mulheres negras, do movimento negro, desses tempos de Brasil. Sueli Carneiro é testemunho, mas também porta-voz, como me disse em 2017, e sobrevivente. O genocídio negro, em curso desde pelo menos 1888, faz de pessoas negras sobreviventes neste país. Assim como já eram sobreviventes os mais diversos povos indígenas. Mas neste 2021, não negros e não indígenas são também sobreviventes de políticas genocidas que, durante a pandemia, já abandonaram mais de 527 mil pessoas à morte.

O genocídio negro, em curso desde pelo menos 1888, faz de pessoas negras sobreviventes neste país. Assim como já eram sobreviventes os mais diversos povos indígenas

Ser sobrevivente não traz só alívio. Há muito pesar em enterrar nossos entes queridos e também desconhecidos que ainda teriam tanto a viver, amar e reclamar. De algum modo, fica em mim a sensação de que somos também cúmplices. Estamos aqui assistindo, enquanto acreditamos estar fazendo tudo o que é possível.

“Aquela é a Ecléa Bosi. Ecléa não toma aspirina porque a Bayer se comprometeu com os campos de concentração nazista”, ouviu Marilena Chauí quando viu Ecléa pela primeira vez, em 1967”. Em uma palestra de homenagem à amiga, em 2006, Marilena afirmou: “Isso para mim definiu para sempre a Ecléa. Da recusa da aspirina, ontem, à luta contra as usinas nucleares, hoje, ela é capaz de atitudes e gestos que, enquanto tais, não mudam o mundo e, no entanto, exigem uma mudança completa de nossa relação com o mundo”.

Que gestos e atitudes nos permitem afirmar que somos resistência, em vez de cúmplices, a tantas mortes? Por covid, por fome, por bala?

Pelo pouco que entendi da ayurveda, nossas experiências e como as percebemos ficam no nosso corpo e podem gerar desequilíbrios e doenças. Individuais, é evidente. Mas também coletivas e sociais. E quando olho para dentro, converso com quem está perto e tento apreender o todo, é óbvio que estamos bastante doentes, em tantos níveis.

Como contar a história de vida ao sobreviver?

Bianca Santana pesquisa memória e a escrita de mulheres negras. É autora de 'Quando Me Descobri Negra'. Pela Uneafro Brasil, tem colaborado na articulação da Coalizão Negra por Direitos

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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