Barbárie contra Barbie — Gama Revista
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Barbárie contra Barbie

A ironia do filme – que não é um filme – acaba funcionando ao contrário

Ronaldo Bressane 26 de Julho de 2023

Toda crítica é um fracasso, mas criticar Barbie é um fracasso melhor ainda, porque se “falem mal mas falem de mim” é o mandamento número 1 do marketing, eis o crítico aqui trabalhando de graça para a Mattel. Já aviso que adorei “Barbie”, contudo. É o tipo de obra perfeita pra interpretar. Como um espelho deformante de parque de diversões: cada um vê o que quer.

Afinal, o filme cor-de-rosa é a elevação ao estado da arte da obra como criação de uma corporação. Turning point na indústria do cinema, dá pra fazer um bolo de análises. Terceiro exemplar do corporate thriller – gênero que nos deu o tedioso “Air” [filme sobre as origens do tênis Air Jordan] e o divertido “Tetris” [sobre o licenciamento do jogo de videogame, nos anos 1980] – a fazer sucesso em 2023, duvido que Barbie seja superado. Pois ao contrário de “Air” e “Tetris”, filmes que parecem filmes, “Barbie” não é um filme: é o próprio produto, em formato multiplex.

No começo houve o cinema de autor, depois apareceu o cinema da indústria: agora a indústria em si é o próprio autor. Chorem, Godard, Glauber e Paulo Emílio. Pra contar essa irônica aventura, ninguém melhor do que a maior representante da ironia, do cinismo e da autoparódia millenial: Greta Gerwig (e seu Ken-roteirista-pigmaleão, Noah Baumbach). O que era cinema de nicho nos anos 00 virou caixa de boneca nos anos 20. Nenhum indie escapa à tela faminta dos caubóis, e Frances Ha vai felizona à ginecologista, mas antes passa pelo Barbieverso.

‘Barbie’ não é um filme: é o próprio produto, em formato multiplex

O casal se saiu bem: criou o evento audiovisual do ano, tão irônico quanto icônico. Acusar o filme de ser superficial – qual a profundidade dos sentimentos de uma boneca? – é em si uma platitude superficial. “Há superfícies que transformam o fundo das coisas ao redor (…) A superfície é o que cai das coisas: que advém diretamente delas (…) como retalhos de uma casca de árvore (…) a casca não é menos verdadeira que o tronco. É inclusive pela casca que a árvore se exprime”, escreve Georges Didi-Huberman em Cascas (Editora 34).

O casal protagonista não podia ser mais perfeito. E a prova de que a indústria se metamorfoseia em demiurga é a ironia em antagonizar Barbie com Oppenheimer, aliás vivido por Cillian Murphy, que é colega de Harley Queen no Asilo Arkham de Christopher Nolan. Hollywood é um grande metaverso. Nada tão psicótico quanto o sorriso plastificado de Margot Robbie criado para Harley Queen, a boneca que namorava o fascista Coringa.

E nada tão destituído de sexo quanto o Ken de Ryan Gosling, o verdadeiro cômico dessa toy story. Mero apêndice da Barbie, o pobre macho não é só emasculado de virilidade – como reclamam os tiozões crentes ofendidos com a masculinidade frágil do boneco que balançaria as bases do patriarcado redpill. A escalação de Gosling lembra que ele foi o opaco androide de 2049, a continuação de Blade Runner: um ser emasculado de humanidade.

E nada tão destituído de sexo quanto o Ken de Ryan Gosling, o verdadeiro cômico dessa toy story

Philip K. Dick já havia delineado o conceito no livro que originou o filme, “Androides Sonham com Ovelhas Elétricas?”. Androides são como zumbis e vampiros. Figuras arquetípicas, mitos ocos, são seres incriados – não nasceram, portanto não podem morrer. Em seu limbo rosa, Gerwig sacou que o grande medo de Barbie é morrer. É a morte que traz sentido à vida, então como ser feliz, se imortal? A alternativa é Barbie renunciar seu posto na Barbieland e, no mundo real, ganhar uma vagina. Eis o ambíguo final feliz, irônico e contemporizador, que contenta a todos, de adolescentes descerebradas a críticos chatinhos (bem, imagino que as mulheres trans não devem ter gostado…).

“Quando o nosso exército atingiu os altos joelhos de Marilyn Monroe um jorro de fetos transparentes foi lançado para fora de uma enorme porta peluda e todos nós gritamos de medo e furor e avançamos com ímpeto contra o inimigo”, escreve José Agrippino de Paula em “PanAmérica”, o livro mais citado e menos lido dos últimos 60 anos. O fundador da Tropicália, em sua obra-prima, conta a história de um diretor de cinema anônimo que se apaixona por uma Marilyn Monroe que não tem nenhuma substância além de sua superfície.

No fim de PanAmérica, Marilyn se torna um monstro mitológico, e ao lado da Estátua da Liberdade, destrói todas as cidades-cenários que aparecem no romance, em um grande apocalipse cujas figuras de Hitler, Martin Luther King, Kennedy, De Gaulle e Karl Marx são envoltas numa nuvem de napalm. Na visão de Agrippino, Marilyn – quintessência do corpo perfeito de Barbie nos anos 1950 – seria a Besta 666, a revolucionária superfície que arrancaria qualquer conteúdo do mundo, a absorção do fundo pela figura, a planificação de todo o inconsciente, a barbárie que mastiga a cultura. O horror, o horror. Não deixa de ser irônico que, daqui da periferia do capitalismo, um artista esquizofrênico tivesse profetizado que o fim do capitalismo seria vendido como um tíquete de cinema.

Se a juventude é uma banda numa propaganda de refrigerante, a ironia só pode ser um donut plastificado consumido com uma Coca

“Sarcasmo, paródia, absurdismo e ironia são ótimas maneiras de arrancar a máscara das coisas e mostrar a realidade desagradável por trás delas. O problema é que, uma vez que as regras da arte são desmascaradas, e uma vez que as realidades desagradáveis que a ironia diagnostica são reveladas, o que fazemos? A ironia é útil para desmascarar ilusões, mas grande parte do desmascaramento de ilusões nos EUA foi feita e refeita (…) Só queremos continuar ridicularizando as coisas. A ironia pós-moderna e o cinismo tornaram-se um fim em si mesmos, uma medida de sofisticação e astúcia literárias. Poucos artistas se atrevem a falar sobre maneiras de trabalhar para redimir o que está errado, porque pareceriam sentimentais e ingênuos para os céticos cansados. A ironia passou de libertadora para aprisionadora. Como Lewis Hyde disse, a ironia não passa da canção do prisioneiro que aprendeu a amar sua jaula”, dizia David Foster Wallace.

Ao contrário da apocalíptica barbie Marylin Monroe de Agrippino, munida de uma revolucionária vagina dentata, a conformista Barbie de Gerwig/Baumbach/Mattel apenas sonha em ter uma vagina – não sabemos se para ter prazer ou ter filhos. DFW já denunciava que a ironia onipresente no pós-moderno seria engolida pela sociedade de consumo e transformada em mercadoria. Eis agora meninas de 12 anos rindo com a ironia deste vale das bonecas: se a juventude é uma banda numa propaganda de refrigerante, a ironia só pode ser um donut plastificado consumido com uma Coca. No Manifesto do Pós-Capitalismo que é Barbie, a ironia é a canção da boneca que aprendeu a amar sua caixa.

Ronaldo Bressane é escritor e editor da revista Morel. Fala de livros e filmes em sua newsletter Invenções de Morel: ronaldobressane.substack.com