Marcello Dantas
Ser Moderno
É muito mais do que não ser antigo, às vezes moderno pode ser o próprio resgate da ancestralidade
Em 1922, um grupo de artistas ligados à elite de uma São Paulo recém alçada de vila a metrópole criou um evento que entrou para a história como um dos maiores fracassos da sua época: a Semana de Arte Moderna. O tempo passou e começamos a entender o quão disruptiva essa iniciativa se tornou e tudo que se inaugurou a partir daí.
A celebração dos cem anos da Semana de Arte Moderna deveria versar sobre a criativa e inovadora arte brasileira criada desde então. Uma arte transgressora, influenciada por muitas origens mas conectada, com raízes profundas que revelam uma identidade que, essencialmente, significa diversidade, o nosso maior patrimônio.
Nem os Andrades, nem Villa-Lobos, nem Tarsila inventaram o Brasil em 1922. Os Brasis já estavam lá, diversos, vivos, resistentes
Mas as razões que nos fazem querer comemorar este centenário são similares às que nos fazem acreditar que em 1500 o Brasil tenha sido descoberto, ou que Tiradentes tenha sido um herói da independência. A história do Brasil é repleta de revisionismos históricos que servem a propósito de ideologias vigentes no momento de seu resgate. No fundo, a Semana de 22 ganhou tamanha notoriedade por uma vontade de resgatar heróis e afirmar nacionalismos e regionalismos, para que alguns possam ser chamados de desbravadores e bandeirantes de descobridores de um país que, até então, não se manifestava. Este ponto de vista é similar à ideia eurocêntrica de “descobrimento”. Os Brasis sempre existiram com sua imensa diversidade e cultura multifacetada. Nem os Andrades, nem Villa-Lobos, nem Tarsila inventaram o Brasil em 1922. Os Brasis já estavam lá, diversos, vivos, resistentes. A semana de 22 foi usada para incensar os movimentos em busca de um protagonismo intelectual de São Paulo, em resistência ao governo Vargas, e foi engajada para sustentar pensamentos ultranacionalistas, como o próprio golpe de 64. O subtexto implícito é que o verdadeiro grande acontecimento foi que a São Paulo urbanizada redescobriu o Brasil. A urbanização não aristocrática fez surgir o pensamento moderno nacional.
Independente do questionável protagonismo de seus partícipes durante a semana de 22, o Brasil teve um século pujantemente moderno nas artes visuais, na arquitetura, na música, na literatura, no pensamento. Isso sim faz sentido celebrar. Apesar de quem tentou se apropriar, os Brasis conseguiram se manter originais dentro de suas territorialidades. Não foi a semana, mas sim três expoentes absolutos da nossa criatividade que marcaram a divisão de águas de um país colônia para um pais que desejava ser cosmopolita. Villa Lobos, Mario de Andrade e Oswald de Andrade foram holofotes que iluminaram esse caminho do pensamento pequeno para o pensamento universal. Isso não aconteceu em fevereiro daquele ano, mas durante toda suas trajetórias de vida. A mais importante senha deixada neste labirinto infinito que a cultura brasileira nos proporcionou em um século é exatamente a ideia de enigma. Toda vez que se tenta enquadrá-la dentro de um escaninho, ela se revela mutante. Além de antropofágica, a cultura brasileira se revela fascinantemente autofágica. Capaz de regurgitar a si mesma diante de qualquer um que se apresente à sua frente.
Hoje ser inclusivo, a favor da diversidade, bioagradável, antirracista, periférico é o denominador mínimo para se ser moderno e consciente
A pergunta que resiste não é definir o indefinível – “o que é ser Brasil?” – e sim “o que é ser moderno?”. Essa pergunta nos obriga a contrastar uma energia que separa moderno de seu antônimo: o antigo. Ser moderno é muito mais do que não ser antigo, às vezes moderno pode ser o próprio resgate da ancestralidade. Moderno é o lugar onde se abrem frestas, a rachadura por onde a luz entra e que rouba nosso olhar para algo que não sabemos definir ao certo. Esse lugar, recheado de fissuras indefiníveis com os termos existentes, é o lugar mais bem ocupado pela criatividade brasileira no último século. Um lugar inquieto, que nos escapa as mãos e aos sentidos e que nos obriga a expandir constantemente a definição do que pode a nossa arte. Mentes como Hélio Oiticica, Lygia Clark, Ariano Suassuna, Antônio Nobrega, Emicida, Chacrinha, Waly Salomão, Tom Jobim, Glauber Rocha, Carlos Drummond de Andrade, Oscar Niemeyer, os Tropicalistas, Zé Celso e Pabllo Vittar estão constantemente inventando um território para o que se pode chamar de o Modernismo Brasileiro. Hoje ser inclusivo, a favor da diversidade, bioagradável, antirracista, periférico é o denominador mínimo para se ser moderno e consciente. Amanhã já não sabemos. Mas as mesmas forças que atuavam na dialética de 1922 se revelam latentes e atuantes em 2022. Muito foi feito, mas ainda nos encontramos encurralados entre direções opostas de visões de mundo. Uma parte deseja a treva submissa e outra deseja a orgia galáctica.
Diminuir o alcance dessa arte que se revela pujante e universal por um projeto nacionalista é o mesmo que tentar vestir um indígena com uniforme de escoteiro. O que aconteceu em 22 foi que um grupo de artistas abriu as portas das identidades brasileiras para que a sociedade urbana da época ficasse escandalizada com o que viu. Coube a uma outra geração construir a linguagem que seria celebrada a partir desse momento e inventar o que de fato é ser moderno. Cabe a quem estiver por vir manter acesa essa chama de querer ter uma voz na dimensão contemporânea.
*Marcello Dantas é o curador da Mostra “Cem Anos Modernos” no MIS São Paulo e na 13ª Bienal do Mercosul, em Porto Alegre
Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior
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