O Mundo Desdobrável
Neste livro de ensaios, Carola Saavedra fala de literatura, arte, da luta dos povos originários e da língua das baleias para pensar num possível pós-fim do mundo
“Ensaios para depois do fim” são as palavras que formam o subtítulo deste “O Mundo Desdobrável” (Relicário Edições, 2021), primeira incursão da escritora brasileira Carola Saavedra pelo universo dos ensaios. Ainda que não seja sempre o tema central dos textos contidos no livro, o fim está marcado e presente ao longo de toda a extensão da obra.
A sociedade desgastada, a política desacreditada, a natureza posta sob um risco cada vez maior. Todos esses problemas gerados no capitalismo, em meio a uma suposta progressão da humanidade, colocam em dúvida até mesmo a existência de um futuro para a civilização e o planeta. Frente a tudo isso, como falar sobre imaginação, ficção, criação literária, conceitos que podem parecer a alguns tão pouco relevantes?
É passeando entre recortes do cotidiano, alternando suas vidas na Alemanha e no Brasil, o contato com as várias formas de arte, com a literatura, com a ecologia e a luta dos povos indígenas, que Saavedra vai tentando responder essa pergunta capítulo após capítulo. A resposta vem não numa linha reta, mas por vezes diagonal ou oblíqua, desfilando ainda por questões como a psicanálise, o significados dos sonhos, furacões e a língua das baleias. Todas, sem exceção, formas de pensar um possível (ou impossível) pós-fim do mundo como o conhecemos.
A caligrafia enquanto coreografia
1.
Paraty, qualquer ano, caminho pelas ruas de pedra durante a Flip. O centro pitoresco da cidade. As ruas cheias, escritores, leitores, interessados aleatórios que vêm de várias partes do Brasil, mas principalmente Rio e São Paulo, para vivenciar esse momento único da cultura, a Flip. As famosas pedras de Paraty. No chão, junto às pedras, grupos de homens e mulheres vendem artesanato, colares de contas, instrumentos musicais, penas coloridas. Indígenas (há aldeias Guarani aqui perto, alguém comenta), crianças que acompanham, correm, eu compro um tamanduá talhado em madeira. Guardo na bolsa. Mas a palavra artesanato fica ecoando, essa quase arte. Continuo pelas ruas de Paraty. A festa.
2.
São tantas as vezes em que passamos assim, despercebidos pela vida, pelo mais importante da vida. Passamos incautos, sem prestar atenção, sem ver, sem enxergar. Como um livro que compramos por impulso e logo esquecemos, até que um dia, distraídos, nos lembramos dele, tiramos da estante, olhamos, mas não lemos, guardamos novamente porque não gostamos da capa ou porque o título nos pareceu estranho ou porque alguém nos chamou lá da cozinha, o café está pronto, ou fulaninho chegou. Então, passam-se anos, talvez décadas, até que num domingo à tarde, ou nas férias de verão, começamos enfim a leitura e pronto, tudo se transforma. E ficamos ali, surpresos, nos perguntando, como é possível? Todo aquele tempo essa possibilidade estava ali, ao alcance da mão. Por que só agora? Por que não antes?
São tantas as vezes em que passamos assim, despercebidos pela vida, pelo mais importante da vida
3.
Bienal de São Paulo (2018), chego um pouco atrasada para a inauguração. O público se aglomera do lado de fora onde é possível comprar bebidas e algo para comer. Peço uma empanada boliviana e uma taça de vinho; a decoração lembra vagamente uma festa popular, ou ao menos me parece ser esse o objetivo. Encontro algumas pessoas, vejo outras, e depois dessa breve festa inaugural me dirijo ao centro da Bienal. Logo me chamam atenção um imenso painel onde se lê “antes tudo era um” e, nos ciceroneando, a foto de dois indígenas, o rosto pintado com linhas brancas verticais, cada um com seu gorro de pele. Uma imagem impressionante, e não só essa. Caminhando pelo pavilhão me deparo com uma série de outras fotografias no mesmo estilo, indígenas com o corpo pintado, às vezes usando estranhas máscaras e acessórios. Parecem espíritos de um lugar anterior, uma vida anterior, um inframundo. Têm algo arquetípico, ao mesmo tempo sublime e assustador. Passo por eles, me aproximo da placa onde é possível ler as informações sobre as imagens; o texto explica que o fotógrafo é Martin Gusinde e também diz algo sobre os espíritos ou entidades que aquelas imagens representavam. Fico sabendo também que Gusinde nasceu em 1886 em Breslávia, na Polônia, e morreu em Mödling, Áustria, no ano de 1969. As placas me informam também sobre o ano em que foram feitas as fotos, todas em 1923. Sobre os indígenas ali retratados, nada me parece estranho, mas não penso mais no assunto, apenas naquelas imagens que me acompanhariam por muito tempo. Como um sonho, ou um pesadelo.
4.
Dois anos depois a minha vida havia se transformado completamente. Eu me mudara para a Alemanha e agora era professora de literatura e cultura brasileira na Universidade de Colônia. Estava pesquisando sobre arte indígena quando me deparei com a performance de Denilson Baniwa, um artista indígena que vem adquirindo cada vez mais espaço e reconhecimento artístico. A performance Pajé-Onça Hackeando a 33ª Bienal de Artes de São Paulo pode ser vista num vídeo de 15 minutos que mostra o artista diante daquelas mesmas fotos que tanto me impressionaram. Ele, descalço, sem camisa, usando uma capa com estampa de onça e uma máscara amarela de onça, caminha pela exposição carregando uma maraca e algumas flores. O escasso público que passa por ali o observa com desconfiança, como se se tratasse de um estranho personagem. Alguém pergunta se ele faz parte da programação oficial, ouve-se uma voz dizendo “eu não sei, eu só estou aqui para filmar”. O Pajé-Onça passa diante de cada uma das fotografias do grupo indígena e numa atitude de reverência e luto põe flores diante de cada uma. Depois de andar pelo resto da exposição vai até a livraria dentro da própria Bienal, compra o livro Breve história da arte e, colocando-se novamente diante do imenso painel com a fotografia da entrada, tira o seu traje de Pajé-Onça e anuncia, enquanto rasga o livro: “breve história da arte, breve, mas tão breve, que não tem índio nessa história da arte, mas eu vejo índios nas referências, eu vejo índios e suas culturas roubadas”, e enquanto aponta para as fotos “Isso é o índio? (…) É assim que querem os índios, presos no passado? Sem direito a futuro? Lhes roubam a imagem, lhes roubam o tempo, lhes roubam a arte (…) arte branca, roubo (…). Estamos vivos, apesar do roubo, da violência, e da história da arte. Chega de ter branco pegando arte indígena e transformando em simulacros.” A performance termina e ficam algumas perguntas no ar. Que etnia é aquela? Quem são aquelas pessoas que aparecem nas fotografias? O que aconteceu com elas? E como o próprio Denilson Baniwa indaga, por que não há nenhuma informação sobre isso? As perguntas ficaram ressoando. Como toda a arte que valha, ela não nos oferece respostas, mas nos faz as perguntas que nós mesmos não soubemos (ou não quisemos) formular.
Como toda a arte que valha, ela não nos oferece respostas, mas nos faz as perguntas que nós mesmos não soubemos (ou não quisemos) formular
5.
Sou uma mística cética e, diante de certas coincidências (Jung as chamava de sincronicidades), eu olho com divertido interesse. Como quem observa algo curioso, um cisne azul ou um papagaio neon. Eu acabara de assistir à performance de Baniwa, os pensamentos naquela etnia misteriosa e nas perguntas que não me fiz, quando recebo uma mensagem de uma amiga que diz: “assisti hoje, não teve como não pensar em você…” e vem acompanhada de um link para um filme que há muito eu queria assistir, mas que se perdera na correria do tempo, El botón de nácar, documentário do cineasta chileno Patricio Guzmán. Na mesma hora abro o link no computador, assisto. As primeiras cenas são de um bloco de quartzo e a voz de Guzmán que narra: “Este bloco de quartzo foi encontrado no deserto do Atacama, no Chile, tem 3 mil anos e contém uma gota d’água.” Lembro imediatamente das flores, quer dizer, sementes adormecidas no mais árido do deserto do Atacama que, de quando em quando, vem uma chuva inesperada e elas florescem – essa vida encapsulada que a qualquer momento nos surpreende. Mas o filme, El botón de nácar, como todos os filmes do autor, é sobre a memória, sobre como o país lida com a sua memória. E nesse caso trata-se também da memória da água, não só da água encerrada no tempo, uma única gota, mas de todo um oceano, o oceano Pacífico que recebeu os corpos assassinados pela ditadura de Pinochet. Os mergulhadores resgatam os restos do que um dia foi uma pessoa: um botão de nácar. Tudo o que sobrou. Um botão que talvez uma família possa enterrar, levar flores para o botão, fazer enfim seu luto porque sem luto o morto nunca acaba de morrer. É um filme sobre um país genocida, que assassina a sua população – poderia ser o Brasil, poderia ser qualquer país do continente. Caminhamos todos sobre esse chão de mortos, essas flores do Atacama que a qualquer momento voltam, coloridas, fantasmagóricas. Continuo assistindo. O filme fala de genocídio e é quando, de repente, o mistério mostra o seu rosto, a sincronicidade (eu não acredito em coincidências), e surge então a mesma foto da Bienal de São Paulo, a mesma foto para a qual aponta Denilson Baniwa, a etnia sem nome. E é quando descubro quem são. Os Selk’nam. Selk’nam, repito, anoto num papel. Eu não sei nada sobre os Selk’nam. No filme descubro que estão extintos e que eram uma etnia originária da Terra do Fogo. Foram extintos em poucas décadas no início do século XX. Compro toda a bibliografia que consigo encontrar, mas há algo para sempre perdido.
Um botão que talvez uma família possa enterrar, levar flores para o botão, fazer enfim seu luto porque sem luto o morto nunca acaba de morrer
- O Mundo Desdobrável
- Carola Saavedra
- Relicário Edições
- 216 páginas
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