A máscara das 1000 faces — Gama Revista
COLUNA

Marcello Dantas

A máscara das 1000 faces

Passamos a associar a máscara não mais aos mitos e identidades étnicas que representa, mas ao posicionamento político de quem as usa – ou não usa

30 de Junho de 2021

As manifestações recentes de políticos e personalidades contra o uso de máscaras, artefato mínimo de proteção diante do poder de disseminação do vírus, me provocam a pensar sobre o papel simbólico da máscara em nossas sociedades. Esse papel sofreu uma guinada radical desde o início da pandemia. Passamos a associar a máscara não mais aos mitos e identidades étnicas que representa, mas ao posicionamento político de quem as usa – ou não usa.

O que diferencia uma etnia de outra não são os corpos, nem os anseios de felicidade e nem o instinto de vida e de amor. O que diferencia uma etnia de outra são as visões de mundo. Em praticamente todos os grupos étnicos, encontramos o uso de artefatos faciais: máscaras, adornos ou pinturas. Elas remetem a poder, transgressão, anonimato, sexualidade, sabedoria, guerra, humor, demônios, morte. A máscara carrega o símbolo de quem somos e do que queremos incorporar ao vesti-la. Os primeiros exemplares encontrados datam de mais de 9.000 anos atrás; elas são uma das manifestações criativas mais ancestrais do homem, e, curiosamente, se manifestaram em todo o mundo de forma autóctone, sem necessariamente serem influenciadas em cascata. As máscaras são a mais antiga evidência de nosso desejo de transcender e de nos conectarmos com uma dimensão mítica. E são, acima de tudo, uma demarcação de território tribal, de identificação de uma maneira de pensar e de pertencer. Atualmente essa expressão se dá nos diferentes tipos e estilos de máscaras usadas e também pelo ato de rebelar-se e não se usar as máscaras, expõe mais a face interior do caráter de cada tribo.

Uma inspiração é a abordagem do mitólogo Joseph Campbell, autor de “O poder do mito” e “O herói de mil faces”, sobre o papel que tais instrumentos desempenham na vivência dos mitos (algo próximo do que são as imagens no inconsciente coletivo). Campbell nos revela que existe uma unidade mítica dentro da diversidade exterior, como se, por meio de distintas portas, pudéssemos chegar ao mesmo Olimpo mítico. O passaporte para alçar esses voos são as máscaras e no caso atual a ausência dela.

Paradoxalmente, um pouco antes da pandemia, mais de 20 países da Europa, Américas e Oceania haviam tornado ilegal o uso de máscaras em manifestações públicas

A máscara também tem o atributo fundamental de ocultar a face de seu portador. Na era digital, a relação entre máscara e identidade ganha mais complexidade. Com o reconhecimento facial e a inteligência artificial, o rosto é lido como um conjunto de dados que diferencia cada indivíduo, um reconhecimento permanente que suprime o anonimato. Por trás de cada um desses objetos reside o único espaço de privacidade que ainda nos resta, o exíguo espaço que separa um rosto de uma máscara. Nesse contexto, o simples ato de se mascarar pode ser subversivo – símbolo de revolta e de não conformidade. O artefato torna-se uma arma, um recurso para quebrar um controle imposto, alheio ao consentimento pessoal.

Paradoxalmente, um pouco antes do acontecimento da pandemia, mais de 20 países da Europa, Américas e Oceania haviam tornado ilegal o uso de máscaras em manifestações públicas. Para além do anonimato, a simbologia da máscara aciona medos profundos: um mascarado em um aeroporto hoje representa ameaça tão iminente quanto uma bomba. Ocupam o nosso imaginário alguns atos brutais de nossa história recente, relacionados à figura de carrascos de membros de grupos extremistas, como o Setembro Negro, da Ku Klux Klan, e Jihadi John, do Estado Islâmico, e suas execuções televisionadas. Hoje, no Brasil, um exército de motoqueiros desmascarados exerce um terror equivalente. A máscara empodera indivíduos, os liberta de eventuais amarras e conecta a ideais que podem levá-los à cometer atrocidades. Este tipo de símbolo tornou-se universal na cultura midiática e conformou uma nova linguagem partilhada, com manifestações produzidas e consumidas globalmente.

As máscaras mostraram um caminho para reconhecer a necessidade humana de experimentar outro estado de consciência e de espírito, de exercer um poder validado por seu grupo. São um artifício que toda a humanidade encontrou, independente de sua origem ou realidade cotidiana. Se por um lado elas permitem incorporar códigos reconhecidos pela sua cultura de origem, quanto mais nos tornamos diversos e miscigenados mais aprendemos a reagir a esses códigos.

As máscaras que nos lembravam que éramos tantos, hoje nos reduziu a apenas dois. E fico pensando se algum dia ainda sairemos de máscaras no Carnaval

Passamos a entender que as máscaras são onipresentes e que criam uma linguagem universal de si mesmas. Uma linguagem que não depende dos idiomas e que permite que nos comuniquemos por símbolos que, até então, não haviam se universalizado. A beleza de uma linguagem não-verbal como a das máscaras é que ela abre nossa cabeça para a formulação de perguntas para as quais não temos respostas. O artefato físico da máscara é a evidência dessa linguagem. O que existe na sutil conexão entre diversas manifestações culturais é algo que pertence somente à percepção humana.

O ser humano não se basta e essa busca por outra dimensão é algo que sempre se manifestou, seja onde for. Mas no presente, essas buscas se conectaram. Nunca a diversidade foi algo tão visível para tantos e nunca ficou tão evidente o desafio e a oportunidade de se conviver num lugar tão repleto de signos. Temporariamente, este poço infinito de diversidade foi substituído pelo abismo da polarização e uso das máscaras passou somente a significar um posicionamento binário de concordância ou revelia ao bem comum. As máscaras que nos lembravam que éramos tantos, hoje nos reduziu a apenas dois. E fico pensando se algum dia ainda sairemos de máscaras no Carnaval.

Marcello Dantas trabalha na fronteira entre a arte e a tecnologia em exposições, museus e projetos que enfatizam a experiência. É curador interdisciplinar premiado, com atividade no Brasil e no exterior

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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