Sou muito equivocada. Embora minha pequena trajetória aponte alguns pódios e eu seja aplaudida de vez em quando, minha história é em cima do equívoco. Atrapalhada, estabanada, cometendo gafes, um erro em pessoa. Transito bem por agora porque afinal já são quase 40 voltas ao sol, portanto já me queimei muito e aprendi a manter distância. Das pessoas e de mim mesma às vezes. Ainda erro um bocado mas estou lidando melhor. Sinto que é por ser assim que admiro muito pessoas excelentes. Porque eu mesma não sou. Começo uma coisa, interrompo, paro, desisto, um caos. Mas muitos amores, amigues, são pessoas obcecadas. E eu fico ali, hipnotizada, admirando a excelência dessas pessoas em qualquer área. Não sou excelente em nada. Não sofro com isso. Que bom que gostam dos meus tropeços. Meu trabalho envolve mais emoção do que técnica apurada. É como vibro, é como sei ser. É o que consigo. “Conseguir é melhor do que ter”, como um dia me contou Calvin em alguma tirinha genial.
Quando tinha 19 anos saí da faculdade de letras para fazer teatro na CAL. Tentei manter as duas mas impossível. O campus da UFRJ era muito longe da minha casa que era muito longe do Cosme Velho (onde é a CAL). Já vibrando mais com as artes cênicas, fiz uma escolha por logística mas também por intuição, a qual agradeço muito. Nos dois últimos anos apareceu um rapaz por lá e eu bem senti uma flecha no coração. Ou um raio na cabeça. Ou uma lâmpada acendeu. Não éramos da mesma turma, mas havia o antes, recreio e o depois das aulas. Todo mundo se misturava, se pegava, tocava violão, fumava, combinava festas pra todo mundo se beijar. Era uma maluquice muito gostosa. Não sei como eu não bebia. Passei o teatro todo sem beber. Não disse que sou equivocada? Paulo Gustavo era de Niterói, falava muito rápido, pontuava tudo com uma piada ácida, tinha um humor rascante e quem orbitava tinha que embarcar no pacote completo. Logicamente fiquei hipnotizada por aquela existência. A excelência se apresentava pra mim e eu paralisava estupefata.
É uma sensação peculiar observar pessoas-cometas. “Todo homem, toda mulher, é uma estrela”, como cantou Raul Seixas em Sociedade Alternativa. Em 2014, num show em homenagem a ele, eu acrescentei no meu grito: todo gay, toda sapatão, toda travesti, todo LGBT é uma estrela. Paulo Gustavo, sem dúvida alguma, era uma estrela, mas tinha um brilho a mais. Fosse porque durava mais (era incansável) ou fosse porque o universo quis assim. Universo, Deus, o que você quiser. Era inegável: ele não tinha luz, ele era luz.
Era tudo tão vivo e forte, que não tinha muito tempo de pensar o que eu fazia: como qualquer outra pessoa jovem, eu só era
Mesmo tendo me formado antes, ficamos próximos. Em 2004, recebo um convite dele irrecusável. Ele e Fábio Porchat iam estrear uma peça chamada “Infraturas”, mas já tinham se comprometido em participar de um festival de esquetes, onde eles faziam várias pequenas cenas e inclusive uma das cenas era um embriãozinho de Dona Hermínia e seu filho. Chamaram Marcus Majella para ser meu parceiro nas esquetes. Se liga onde a equivocada foi parar: Paulo Gustavo, Fabio Porchat e Marcus Majella. Pois. Eu substituiria o Paulo em todas as cenas. Enquanto eu o assistia (mais de uma vez), anotava seu gestos, suas pausas, entonações. Era um desafio muito grande e eu não era excelente, então me vali de tudo que eu podia pra tentar esbarrar no cometa. Fizemos a apresentação e a temida crítica teatral Bárbara Heliodora quase me elogiou, disse que o festival teve “atuações satisfatórias, principalmente de uma atriz alta e loura”. Meu nome não estava no programa porque estávamos substituindo. Fiquei feliz com aquilo. A errada se elevar ao nível de satisfação me causava tanto ineditismo, foi uma fase engraçada da minha vida. Fomos chamados para nos apresentar no festival de esquetes de Cabo Frio. Eles com “Infraturas”, e a gente com as esquetes. Lá fomos nós dentro de um carro pra Cabo Frio. Estrada, gargalhadas, praia, ensaio, teatro. Era tudo tão vivo e forte, que não tinha muito tempo de pensar o que eu fazia: como qualquer outra pessoa jovem, eu só era.
Era Paulo Gustavo dizendo ‘Amiga, eu fui lá na Globo e eu vi seu vídeo de cadastro e aquilo é muito ruim’
Assim que alguém se formava na CAL, era meio de praxe ir na Globo gravar um vídeo de um minuto atuando, e aí se alguma produtora de elenco gostasse de você, te chamava para uma ponta em alguma novela. A primeira coisa que fiz na CAL foi cantar. Era aula de música, e eu cheguei atrasada e o professor de música disse “Você aí, atrasada! Canta uma música”. Com 19 anos, muito buyyling nas costas, um tamanho corporal fora do controle, muito medo mas muita coragem, cantei “Mercedes Benz”, da Janis Joplin. Tem gente que lembra até hoje “Você agora é cantora e minha primeira lembrança da CAL, a primeira coisa que aconteceu, foi que você cantou”. Quando saí do teatro, a música já me seduzia de forma bem insistente. De modo que fui na Globo e fiz um vídeo de cadastro daquele jeito equivocado, sem muita confiança, mas fiz. Demorei uns meses. Fui para Alto Paraíso antes. Experimentei ácido, estava tentando entender coisas através de experiências situacionistas. Na volta, pensei “Tá bem, vamos fazer esse vídeo então”. Era um texto de um livro da Fernanda Young, outra criatura de Niterói, que eu tanto amava. Um belo dia meu celular toca e era Paulo Gustavo dizendo “Amiga, eu fui lá na Globo e eu vi seu vídeo de cadastro e aquilo é muito ruim”.
Enquanto digito gargalho lembrando o jeito dele. Mas na hora doeu um pouco. Paulo me achava boa para comédia e eu insistia num texto mais denso, embarcar em climas dramáticos. Eu não conseguia me defender como hoje em dia já consigo, e ele, já no reino da excelência da comédia, queria me trazer para o barco dele. E eu, com medo, sempre ele, esse maldito, fiquei ali, meio paralisada sem saber o que dizer e ouvindo o esporro do cometa, tentando aprender a ser um pouco melhor. Eu amava comédia mas eu também amava drama, eu era grega, mas era tijucana, eu não conseguia me decidir e ele já sabia tudo.
Em “Minha Mãe É uma Peça”, a peça, há apenas as vozes do filho e da filha de Dona Hermínia. Paulo me chamou para fazer a voz da filha e por algum motivo que agora não lembro, não pude. Mas fui na estreia, assim como fui depois mais quatro vezes. Em todas elas, passava mal e bem de tanto rir. Todas as vezes. A gente se via em festas, se esbarrava pelo Rio de Janeiro em boates, resumia a vida, mandava mensagem no Orkut, SMS no celular. Em algum momento a Globo me chamou para uma novela. “América”, aquela que a Deborah Secco vai tentar a vida nos EUA. Eu era uma paraguaia, colega de trabalho da lanchonete. Estava limpando quando um ator dizia “Papers?”, pedindo documentos e eu, pela primeira vez na minha história, estava na TV, só que falando em espanhol: “No tengo” E quando ele me prendeu, ainda meti um caco de “Déjame, cabrón”. Um Almodóvar erradíssimo, minha cara. Lembro de Paulo gostar. E pedir pra eu refazer o vídeo de cadastro.
É muito triste ver uma pessoa excelente morrer. Um gênio. Parece que dá mais medo
Ao longo da vida, Paulo e eu perdemos o contato, muitas coisas, lembro do nosso último encontro físico em Ipanema, sem querer. Ele estava saindo da terapia, falou sobre isso, e eu estava voltando do mar. Falamos sobre isso. Aí vieram os filmes, a carreira dele deslanchou de um jeito tipo foguete. E eu sempre confirmando internamente o que eu já sabia. Não podia ser de outro jeito. O mundo seria péssimo se não soubesse, se não acompanhasse. Tudo estava muito justo. Fui ao cinema ver os filmes, delirava com seus programas. Na pandemia nos procuramos. Nesse tempo horroroso, a memória foi bote de salvação e cuidar dos afetos foi uma maneira de se lembrar vivo. Se manter também. Trocamos vídeos e áudios hilários que vou guardar pra sempre.
É muito triste ver uma pessoa excelente morrer. Um gênio. Parece que dá mais medo. Todo mundo morre, sabemos. Mas já existe vacina e o governo negou onze vacinas, também sabemos. Só não sabemos como um governo pode continuar mesmo depois das informações da sujeira e da lama já terem sido divulgadas. Eu tenho muito ódio mas também muita vergonha desse país. Eu achava que se envergonhar e ter raiva no coração eram sensações distintas, mas estão se esbarrando muito nesse governo, nessa conduta pandêmica genocida. Quase 500 mil pessoas mortas. Tantas excelentes em suas vidas minúsculas e por isso mesmo maiúsculas. A lupa de cada pessoa, o microscópio de cada ser humano muito me emociona. Amo a grandeza das miudezas. Mas lembra que falei sobre a luz? Paulo tinha um brilho mais forte. Com todo respeito a todos os terráqueos, ele tinha. Inegável. Com o fim dessa luz, fica um breu muito desesperador. Que glória termos acesso a tantos vídeos (mas imagino seus filhos crescendo vendo o pai através dos vídeos, que dor!), que glória termos memória, mas essa luz era muito forte pra ser apagada. A gente se guiava por essa luz. Essa luz nos norteava. Sem essa luz, fica mais difícil para todo mundo. Vou tratar de tentar ser mais como ele. Tratar de buscar a excelência e a graça soberana. Tratar de continuar equivocada mas buscando ser mais luz. Luz de Paulo.
Letrux é atriz, escritora, cantora, compositora e uma força da natureza cujo trabalho é marcado por drama, humor e ousadia. Entre seus trabalhos estão o álbum “Letrux em Noite de Climão” e o livro “Zaralha”
Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.