Coluna do Fernando Luna: Que saudade do futuro — Gama Revista
COLUNA

Fernando Luna

Que saudade do futuro

Nesta Antologia Profética, versos desgraçadamente atuais sobre caipirinha de cajá e o país do futuro, a alegria como resistência, um Milton Friedman de colete de gominhos e o jeitinho brasileiro de agonizar

17 de Maio de 2021

“Que saudade do futuro”

Murilo Mendes, 1945

O problema do futuro é que a gente precisa atravessar o presente pra chegar lá. Aí, complica.

Dá um trabalho danado lidar com o Brasil de hoje.

O elenco não ajuda: Jair Bolsonaro, Carla Zambelli, Flávio Bolsonaro, Eduardo Pazuello, Carlos Wizard, Fábio Wajngarten e Ernesto Araújo, pra ficar só com alguns dos nomes gravitando em torno de uma CPI tão bizarra, mas tão bizarra, que faz até o Renan Calheiros parecer uma figura decente.

O argumento não para de pé: contra tudo isso que tá aí, vamos eleger o pior de tudo isso que tá aí. Menos com menos dá mais, né? O cara recebe 57 milhões de votos e passa os dias correndo com caixa de cloroquina atrás da ema e dando rolezin de moto com o véio da Havan.

Vamos precisar duma amnésia alcoólica de corote pra um dia rir disso.

Pelo menos já entendemos que aquele papo de país do futuro era só empolgação de gringo turistando em Salvador – quem não se anima depois de uma caipirinha de cajá na baía de Todos-os-Santos? Aposto que o Stefan Zweig tomou uma antes de começar a ter ideia.

(Sempre me pareceu péssimo presságio que o austríaco, autor de “Brasil, um País do Futuro”, tenha se suicidado seis meses depois de publicar o livro, logo após se mudar definitivamente pra cá. Vai lá que eu não vou, não.)

Sejamos realistas: o Brasil é o país do passado.

O agronegócio segue como lastro da economia nacional, só trocamos o pau-brasil pela soja. Seguimos tratando os índios como se Borba Gato e Anhanguera fossem copresidentes da Funai. Os negros ainda presos na senzala-rebranded do encarceramento em massa. Os anões do orçamento cresceram, se multiplicaram e abocanharam R$ 3 bilhões.

O festival de besteiras que assola o país nunca foi tão familiar, nem tão letal.

Pra azeitar as asperezas de hoje, um toque do surrealismo de Murilo Mendes. Seu poema “Mundo Estrangeiro” passa por imagens delirantes, como “dia fantasia/ noite açoite” e “pesada carruagem/ despede relâmpagos”, pra evitar o presente e declarar saudade do futuro.

Hoje, dá saudade de ter saudade do futuro. Bons tempos.

“A alegria é a prova dos nove”

Oswald de Andrade, ano 374 da deglutição do Bispo Sardinha

Antes da pandemia, as conversas começavam assim:

– Oi, tudo bem?

– Tudo.

E seguia o papo.

Não importava se tava tudo bem. Nunca foi sobre isso. Esse diálogo era apenas uma espécie de teste de som, tá escutando?, um artifício de linguagem pra checar os sinais vitais do interlocutor e então entrar no assunto propriamente dito.

Todo mundo sabia perfeitamente que nunca tá tudo bem, tipo tudo-tudinho-mesmo-vai-bem. A vida não tem sentido, deus tá morto, o sol vai se apagar e fizeram uma nova temporada de “No Limite” com ex-BBBs.

Apenas os chatos aproveitavam a oportunidade pra explicar, detalhadamente, um problema qualquer no trabalho, uma aflição menor com os filhos, um incômodo no pré-molar quando mastiga.

Com a pandemia, as conversas obrigatoriamente começam assim:

– Oi, tudo bem?

– Tudo bem não tá, né?

Sim, é melhor ser confundido com um chato do que passar por insensível, negacionista ou, esconjuro, bolsonarista.

Todavia, dado que estamos há mais de ano nesse lodaçal virótico donde não escaparemos tão cedo, podemos dispensar a formalidade de relembrar a cada começo de conversa que não, não tá tudo bem.

Eu sei, você sabe, todo mundo sabe que as coisas nunca estiveram piores. Nunca. Dito isso, “Tudo bem?” volta a ser uma pergunta retórica e “Tudo”, uma resposta retórica.

O que não significa esquecer dos mais de 420 mil mortos de covid, da chacina no Jacarezinho recebida com aquele velho silêncio sorridente, dos 3 bilhões gastos com tratores superfaturados em vez de vacina.

O corona escancarou nosso cortejo de horrores.

Por isso mesmo, se não for pedir muito, podemos até ficar alegres de vez em quando. Um tantinho, que seja. Sem culpa. Amar alguém ainda que tudo em volta pareça desmoronar, comemorar um projeto profissional apesar de tanto desemprego, festejar a mudança pra casa nova, rir sem ofender ninguém.

Em seu Manifesto Antropófago, Oswald de Andrade escreve e repete, pra não deixar dúvida, que “A alegria é a prova dos nove” – o gabarito do nosso Enem existencial.

“O que sobreviverá de nós é o amor”

Philip Larkin, 1956

Paulo Guedes não é um economista ortodoxo nem heterodoxo. É fatal.

Depois de Jair Bolsonaro aperfeiçoar a necropolítica, o ministro da Economia idealizou a necroeconomia – tipo um Milton Friedman segurando a foice, de túnica preta e colete de gominhos por cima.

Ele desenhou a solução final dos problemas econômicos. Basta a mão invisível e gelada do mercado dar um empurrãozinho fatal no cidadão à beira do abismo, e voilà: morreu.

Tá resolvido o problema de todo mundo querer viver 100 anos, 120, 130, atravancando o progresso. Eles passarão, eu estilingue de caçar passarinho. O momento exige sacrifícios. Dos outros, naturalmente.

Hora de partir dessa pra uma melhor, e não tá difícil imaginar uma melhor que essa. Já deu. A fila anda – a não ser a fila da vacina, que se andasse reduziria a mortalidade e comprometeria mais o PIB.

Chega de wellness, o futuro do nação exige illness.

Em vez de buscar o bem-estar, cultivemos o mal-estar na civilização. Mente doente num corpo doente. Talvez agora o Chicago Boy consiga criar ao menos um novo emprego, nem que seja pra ele mesmo: Coach de Illness.

É aquele cara especializado em deixar sua vida pior e, de preferência, mais breve. Nada mais ageless que um CPF cancelado. Estado mínimo, sofrimento máximo e classe média com camisa da seleção na avenida Paulista.

E esquece aquela história de esperar o bolo crescer pra então dividir as fatias (só que não). Melhor tirar logo o bolo da mesa. Suspende também o arroz e o feijão, porque o frango já sofreu impeachment há tempos.

Você pode substituir alimentação balanceada pela fome. O governo se antecipou, inscrevendo 19 milhões de brasileiros neste programa detox: jejum intermitente, com duração prevista até 2022.

Quem sobreviver, verá. Mas eles não vão se livrar de nós tão facilmente.

Se tudo der errado, fazemos como o conde e a condessa dos versos do inglês Philip Larkin. O casal está representado eternamente de mãos dadas, felizes pra sempre, na escultura que cobre “Uma Tumba de Arundel”.

O amor assombra a morte, e aquele pessoal de Brasília odeia o amor.

“Assim expira o mundo/ Não com uma explosão, mas com um suspiro”

T.S. Eliot, 1925

Ou melhor: assim expira o Brasil. Apesar de tudo, e põe tudo nisso, suspiramos ao invés de explodir.

É o jeitinho brasileiro de agonizar.

Quietinhos, sem incomodar ninguém, definhamos cordialmente. Sem alvoroço, quebramos recordes de mortalidade. Sem gritaria, assistimos o atraso da vacinação. Sem reação, vemos a história nos atropelar.

Onde o governo trabalha contra e não a favor do vírus, começa a haver diminuição das mortes – embora a transmissão seja mais difícil de frear sem a aplicação simultânea de vacina e lockdown, pro desespero dos negacionistas.

Por aqui, abril é o mais cruel dos meses, superando 70 mil vítimas fatais de coronavírus. Ainda temos alguns dias pra ampliar a marca da maldade: morrer de uma doença pra qual existe imunizante dá uma volta extra no parafuso da perversidade.

Mas nem sinal de manifestações de protesto.

Queria acreditar que essa pasmaceira é apenas uma insuspeitada responsabilidade sanitária, maturidade cívica mesmo. Afinal, seria estranho ignorar o distanciamento social justamente pra gritar numa passeata contra a irresponsabilidade federal.

(Nem sei se poderia existir uma aglomeração por motivo justo, mas sem motivo justo tem por todos os cantos do país, diariamente.)

Como desgraça nunca vem sozinha, a fome avança rápida como o vírus. São 19 milhões de brasileiros em insegurança alimentar grave, eufemismo técnico pra descrever a fome, com panela e barriga vazias.

Cultivamos o pior dos dois mundos, e agora colhemos uma supersafra de desgraça. Nem suspendemos as atividades a ponto de estancar a propagação da pandemia, nem mobilizamos recursos capazes de manter a economia girando pra botar comida na mesa.

Seguimos sem saúde nem dinheiro. Sem indignação, também. Pelo menos sem uma que vá além dos panelaços, redes sociais, notas de repúdio ou manifestos inócuos.

“Os Homens Ocos”, título de um dos grandes poemas de T.S. Eliot, fala em “força paralisada, gesto sem vigor”. Descreve a impotência de homens vazios, habitantes de uma terra morta, suspensos num limbo existencial. Bestializados como nós.

Fernando Luna é jornalista, modéstia à parte. Foi diretor de projetos especiais da Rede Globo, diretor editorial da Editora Globo, diretor editorial e sócio da Trip e um monte de coisas na Editora Abril

Os artigos publicados pelos colunistas são de responsabilidade exclusiva de seus autores e não representam as ideias ou opiniões da Gama.

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