‘São pessoas reais à beira da morte, sem ar’
A vice-presidente do Instituto Ágape, que atua nas periferias de Manaus desde 2015, relata o que viu, ouviu e sentiu ao lidar com a falta de oxigênio na cidade amazonense
“Era uma tragédia anunciada.” A fala é de Luana Rodrigues, de 30 anos e vice-presidente do Instituto Ágape, um projeto de assistência social que visa atender as necessidades de comunidades carentes em Manaus. Ela relatou a Gama sobre a falta de oxigênio, remédios, leitos e equipamentos hospitalares na capital do Amazonas.
Desde o início de 2021, a cidade vive o segundo colapso do sistema de saúde, com recorde de internações e sepultamentos. Só nos primeiros 12 dias do ano, foram mais pacientes internados do que em todo o mês de abril, e houve um aumento de 450% nos enterros por covid-19.
A seguir, Luana conta sobre o que tem vivido nos últimos dias, sobre o desespero e a impotência ao ver tantas vidas serem perdidas por falta de espaço nos hospitais, equipamento e ar.
“A situação está crítica no Amazonas desde o ano passado, no início da pandemia. O número de casos diminuiu com o lockdown que durou por alguns meses de 2020, comércios fecharam e as atividades da cidade ficaram paradas. Mas assim que a situação começou a se estabilizar, o governo afrouxou as medidas de isolamento, liberou algumas atividades, e em dezembro, Manaus já funcionava normalmente.
Era uma tragédia anunciada. Todo mundo se aglomerou
Com as festas de fim de ano chegando, o governo anunciou que haveria um novo lockdown, de 26 de dezembro a 10 de janeiro. Mas por pressão popular e dos comerciantes, que perderiam muito dinheiro com o fechamento das lojas em época de festividades, o governo voltou atrás. Era uma tragédia anunciada. Festas, confraternizações, restaurantes liberados… Todo mundo se aglomerou. E acho que o governo não se preparou o suficiente para isso, com estoques de material, por exemplo. Depois do réveillon, logo no início de janeiro, a situação começou a se agravar. Não tinha mais medicamentos, leitos, EPIs e, claro, oxigênio. Durante essa semana, vimos Manaus entrar em colapso, pouco a pouco. E ontem foi o ápice.
Logo nas primeiras horas da madrugada, chegavam mensagens, notícias, vídeos desesperadores que diziam que os cilindros de oxigênio estavam esvaziando, que acabariam em poucas horas. Era uma questão de tempo. Prontos socorros pela cidade simplesmente fecharam as portas porque não conseguiam acolher mais nenhum paciente para atendimento.
Um estado com tamanha dimensão e potência, com tanto ar para distribuir ao resto do Brasil, agora morre asfixiado
O norte do Brasil já está acostumado a sofrer. O descaso das autoridades com essa parte do país não é de hoje, não é dessa pandemia, é de sempre. Um estado com tamanha dimensão e potência, com tanto ar para distribuir ao resto do Brasil, agora morre asfixiado. Eu sinceramente não consigo assimilar. E o Instituto Ágape se levantou a partir disso, entre família e amigos que estavam dispostos a fazer alguma coisa. E agora, nos unimos a outros projetos na campanha SOS Amazonas para arrecadar doações que serão revertidas em insumos, e, eu espero, oxigênio. Porém, no caminho, nos deparamos com outro dilema: a falta do fornecimento. As empresas não deram conta da demanda, basicamente não tinha onde conseguir ar. A saída que a gente encontrou foi procurar ajuda em outros estados, e agora estamos trabalhando na logística para trazer os cilindros até Manaus. Ainda não há uma previsão de chegada, mas a luta continua.
Ontem eu fui dormir depois das 3h, apaguei com o celular na mão, enquanto trabalhava na campanha e lia as notícias dos hospitais… Acordei às 7h e ainda não parei. A sensação é de que um pouco da força voltou, conseguimos comprar alguns suprimentos que devem chegar em breve, e essas boas novas (apesar de toda dor que ainda paira sobre a cidade) iluminou um pouco o caminho.
Somos nós por nós e, mesmo exaustos, é preciso continuar
Pessoalmente, eu tenho algumas pessoas próximas, familiares, internados em hospitais públicos e privados. Por estar à frente dessa luta incessante, vivo um dilema social e pessoal. São pessoas reais à beira da morte, sem ar. E a sensação que fica é de impotência, porque parece não haver dinheiro, logística, transporte que traga ar ao Amazonas. Seguimos em constante trabalho e oração. Somos nós por nós e, mesmo exaustos, é preciso continuar.”
*As imagens usadas para ilustrar esse depoimento foram enviadas ao Instituto Ágape por pessoas que pediam ajuda
A campanha SOS Amazonas reuniu projetos que já atuavam em Manaus antes da pandemia e que agora estão empenhados em arrecadar materiais hospitalares básicos e oxigênio para a rede de saúde da cidade. Entre os projetos estão o Salaada Solidário, o Bora Ajudar, o Instituto Ágape e o projeto Mais Amor Manaus. A campanha é totalmente online, e as doações podem ser feitas por PIX ou transferência para os respectivos projetos. No perfil do Instituo Ágape estão as informações necessárias para doar, e constantemente ocorrem atualizações pelos stories sobre a quantia arrecadada.