Isabelle Moreira Lima
Ativismo contra o preconceito (até no vinho)
Nada deve atrapalhar o prazer que a aventura sensorial de se provar esse incrível mosto fermentado de uvas viníferas é capaz de oferecer. Fique esperto para não ser vítima das ‘wine fake news’
Em diferentes áreas, o ativismo vem trabalhando duro para discutir temas difíceis e derrubar preconceitos. No quadrado que me concerne, venho aqui tentar melhorar um pouquinho o que se pensa sobre o vinho, lutando contra a ignorância que pode nos fazer beber pior e gastar mais.
Desde que comecei a escrever sobre vinho, meu objetivo é um só: diversão. Para alcançá-la, tento traduzir temas meio cascudos de um jeito leve e lançar mão de toda e qualquer estratégia possível para explorar ao máximo o que a bebida tem a oferecer — se tem qualquer coisa que se possa fazer para o vinho ficar melhor, porque não fazê-lo? Seja obedecer a temperatura ideal, servi-lo com a comida que é a melhor acompanhante ou esperar seu tempo certo.
Listo aqui frases que ouvi por aí e que podem nos atrapalhar no exercício do hedonismo. A elas.
Há muito vinho bom e baratex por aí. Bom para levantar o jantar, tomar despretensiosamente, à piscina, e não quando se quer brincar de crítico
Usar decanter melhora a bebida
Há dois usos para o decanter. O primeiro deles é decantar de fato, ou seja, separar um líquido de sedimentos formados no fundo do recipiente. Isso faz sentido especialmente em vinhos antigos, que formam sedimento com o passar do tempo, algo absolutamente normal, que não denota problema na qualidade nem na conservação.
O outro uso do decanter é o de aerar a bebida. Os vinhos jovens mais intensos podem se beneficiar muito do contato com o oxigênio, que “abre os aromas”, torna-os mais evidentes e a bebida mais prazerosa. Pelo mesmo motivo, na degustação, giram-se as taças, estimulando o contato do líquido com o ar.
Acontece que vinhos mais antigos, já em ponto de decadência, o oxigênio pode ser fatal para uma bebida, pode “matá-la” rapidamente. A oxidação, se não for uma caraterística do vinho (como os oxidados do Jura, por exemplo), é um defeito.
Champagne só na flûte/ Para cada tipo de vinho, uma taça/ Na Itália se toma vinho até em copo tipo americano
A flûte tem um sentido: sua forma alongada faz com que o pérlage (as borbulhas) leve mais tempo para percorrer o caminho até a borda e que, portanto, seja mais duradouro na taça. Mas ela tem um pecado: por ser fechada, não libera todos os maravilhosos aromas que um Champagne oferece. Portanto, minha dica é: use uma taça universal, sirva pouco a cada vez e aproveite tudo o que esse incrível espumante francês tem a oferecer.
Há taças para cada tipo de vinho — brancos, tintos ao estilo Bordeaux, tintos ao estilo Borgonha, fortificados, etc. Mas você não precisa ter todas elas. Uma boa taça universal (ou uma Bordeaux) dará conta do recado.
É claro que você pode tomar o vinho no copo que bem entender, mas uma taça bojuda permite que o vinho gire no recipiente sem que você faça um estrago na camisa. A existência de uma haste também tem razão de ser: faz com que a temperatura da bebida se conserve, uma vez que deixa a mão longe de onde está a bebida evitando seu contato com o calor da pele.
Quanto mais velho melhor
Os vinhos não têm data de validade clara, mas existe uma estimativa, que é informada na ficha técnica (recomendo sempre pesquisá-las ao comprar ou antes de beber). Há rótulos feitos para serem guardados por anos antes de serem abertos. Eles evoluirão com o tempo, se tornaram algo mais especial (uma vez eu ouvi a brilhante sommeliere Alexandra Corvo dizer que provar um Vega Sicília, um ícone espanhol, tão jovem quanto aquele, aos três anos de idade, era um infanticídio). Mas esses vinhos são mais raros (e caros). A maioria é para ser consumida jovem, com um, dois, três anos de idade no máximo. Esses vinhos são melhores assim.
Se tem screwcap não deve ser bom
A screwcap é uma tampinha absolutamente eficiente, que barra qualquer entrada de oxigênio na garrafa. Ela é perfeita para os vinhos que não precisam envelhecer. E pode ser usada em vinhos caros também, como acontece bastante na Alemanha. O preconceito contra ela ainda é forte no Brasil, mas, recomendo, abra-se para os vinhos de tampa de rosca.
Teor alcoólico alto é sinal de qualidade
Não exatamente. O alto teor de álcool tem mais a ver com a variedade da uva usada (Garnacha e Primitivo, por exemplo, entre muitas outras), lugar onde foi produzida (quanto mais quente, mais chance de álcool porque a uva vai ter um teor maior de açúcar), data de colheita (quanto mais tarde, mais doce será a fruta porque amadureceu mais e logo tem mais açúcar e açúcar = álcool), estilo do vinho (os fortificados como Porto e Jerez recebem uma dose extra de álcool na vinificação) e até o aquecimento global, que vem aumentando o teor alcoólico das uvas nos quatro cantos do mundo. Um Riesling alemão com baixo teor alcóolico é uma bebida complexa e riquíssima. O que dá a falsa ideia de que álcool é sinal de qualidade é o gosto do crítico americano Robert Parker por vinhos robustos, que geralmente são alcóolicos.
Cheire a rolha, ela vai dizer se o vinho está bom ou ruim
A rolha, sozinha, não quer dizer quase nada. Ela só conseguiria apontar para um defeito específico, que é o pela contaminação por TCA, o que se chama de bouchonée. Para saber se há problema, melhor ficar atento ao que está na taça: aspecto, aroma e paladar têm muito mais a dizer. E, para se certificar sobre se o que está vendo e sentindo na bebida é o esperado ou um acidente de percurso, vale checar a ficha técnica e trocar uma ideia com alguém que possa provar aquela mesma garrafa também. Há cursos que se baseiam apenas em defeitos do vinho.
Se o rótulo é lindo é porque o produtor é cuidadoso e o vinho não tem como ser ruim
Não caiam nessa, amigos designers! Às vezes o investimento está todo no rótulo. Ou, ainda, trata-se de um produto de entrada de um grande conglomerado cujo refugo vai justamente para a garrafa descolada e que é usada para atrair a atenção de jovens bebedores, iniciantes no exercício da degustação. O inverso também pode ser verdadeiro: outro dia quase caí da cadeira quando vi uma garrafa de um Grand Cru da Borgonha estampada por Comic Sans (!!!???).
Não pode, jamais, gelo no vinho
Se está um calor de rachar e você tem um vinho simplezinho que ainda não está na temperatura ideal, a primeira taça pode receber uma pedra de gelo sem grandes sofrimentos enquanto a garrafa vai para um balde cheio geladíssimo. (E, para o balde ser mais eficiente, sempre deixe o gelo com água e gire a garrafa ali algumas vezes para aumentar o contato.) Agora, se é um vinho de qualidade superior, o gelo vai derreter e a água vai diluir um líquido precioso. Evite.
Vinho importado é sempre melhor que nacional
Mil vezes não. Há excelentes vinhos produzidos em todos os lugares do mundo hoje. O Brasil já tem tradição em fazer espumantes vivazes e agora diversifica essa expertise com os pét-nats, tem uma cena de vinhos naturais efervescente e arrisca produzir em áreas ainda não desbravadas, com resultados surpreendentes. Esse é, talvez, o preconceito mais bobo da lista inteira.
Quanto mais caro, melhor
Os vinhos caros, geralmente, são feitos com mais cuidado, com uvas mais nobres, muitas vezes de uma única parcela de vinhedo. Diferenças no processo de produção podem encarecer a bebida, como por exemplo o uso de uma madeira nobre para estágio depois da fermentação, a colheita manual. Pesam no preço também a dificuldade de produção da uva, em locais ermos ou de difícil acesso. Porém, há também a lei do mercado. Na Califórnia é comum que se “escondam” rótulos para que fiquem mais escassos e, logo, seu preço suba (na Europa, por lei, há um limite do que se pode fazer nesse sentido). Agora, o que eu nunca consegui entender (aceito insights, com alegria) é porque um vinho custa R$ 3 mil, enquanto outros tão instigantes quanto podem custar R$ 600 (o que não é exatamente barato, mas, enfim, é menos caro).
Por fim, é importante dizer que há muito vinho bom e baratex por aí. Bom para ocasiões específicas, para uma noite em que se quer levantar o jantar, tomar despretensiosamente com os amigos, à piscina, em qualquer ocasião em que não se deseja brincar de crítico. Vinho caro geralmente é bom (mas nem sempre valem os milhares de dinheiros que custam), mas os baratos não são necessariamente maus.
Saca essa rolha
HARMONIZE COM O CALOR
Trunfo do Chile, a uva País está cada vez mais comum nas prateleiras das lojas especializadas e até mercados. Ela chegou por aqui numa pegada mais rústica, produzida à moda antiga chilena, nos pipeños. Mas sugiro aqui um país do outro lado do espectro, elegantíssimo: o Las Veletas Estate País 2018, que lembra um Beaujolais na drinkability e é delícia para uma noite mais quente. O La Causa País 2018 também vale muito a pena e fica no meio do caminho, nem tão rústico, nem tão elegante. Vem de Itata, região chilena para se ficar de olho.
LEVE PARA A PISCINA
Seu irmão tinto já esteve por aqui, mas agora é hora de falar do Seival Sauvignon Blanc, feito pela Miolo. Ele deve ser meu hit do verão porque tem boa acidez, é cítrico como eu gosto no calor e tem um preço excelente, como há muito não se vê neste país. É um vinho simples, que fique claro, para ser tomado geladinho sem se preocupar, degustando mais a vida que a taça.
EXISTE VINHO CHIQUE? SIM, É ESSE AQUI
A Alsácia faz vinhos muito perfumados, florais no ponto certo, com acidez brilhante, muito elegantes. O Bott Geyl Alsace Métiss 2018 é bem isso, extremamente representativo. Você vai se sentir como esses personagens curiosos que vemos por aí, que não têm medo de usar linho branco para passar o dia fora. Piadas à parte, é uma beleza para comemorar qualquer coisa, nem que seja a chegada do fim de semana.
Isabelle Moreira Lima é jornalista e editora executiva da Gama. Acompanha o mundo do vinho desde 2015, quando passou a treinar o olfato na tentativa de tornar-se um cão farejador
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